Fomos a Chelas falar com o grande músico Sam The Kid sobre Quentin Tarantino e ele, depois de se deter em pormenor sobre a sua filmografia e de comparar o método de Quentin ao seu, escolheu Jackie Brown para esta sessão única.
Carta de amor a uma mulher, Pam Grier, carta de amor a um certo cinema dito menor, aos vencidos da vida e aos marginais, carta de amor ao seu território de Los Angeles e arredores. Adaptado de um romance de Elmore Leonard que pareceu escrito para um filme de QT, foi um fulminante e inesperado meteorito dos anos 90, resumindo-os perfeitamente.
Esta nossa próxima sessão, com o vídeo de apresentação de Sam, será realizada no Museu Regional de Arqueologia D. Diogo de Sousa como parte integrante dos Encontros Design e Multimédia da Escola Profissional de Braga.
Tarantino disse a Adrian Wootton em 1998 que Jackie Brown "não é um filme de black exploitation. Tendo dito isto, a Pam é cá um ícone. Em menor ou maior grau, é como pôr o John Wayne num filme. Se se põe o John Wayne num Western, não se está só a lidar com esta figura desconhecida a andar para ali e que se tem que conhecer. Para algum público esse vai ser o caso, mas essa não é a minha intenção. O John Wayne tem todo um passado atrás de si, e o passado dele é construído destes outros filmes. Isso é boa bagagem. Alguma bagagem pode ser muito, muito boa. Ao escolher a Pam, cataloguei isto como um filme da Pam Grier na minha cabeça, mas era um filme da Pam Grier com os pés mais assentes no chão. Isso não é deitar nada abaixo, porque o Coffy é um dos meus filmes preferidos, na verdade; Eu adoro o Coffy. A Jackie Brown é um ser humano verdadeiro. Não é uma gaja super forte - ela é uma espécie de gaja super forte para dizer a verdade! - não tem lâminas na Afro dela, e não arria Kung Fu nas pessoas, e não saca duma caçadeira de canos serrados e rebenta a cabeça de um gajo. Ela é realista; ela é uma senhora verdadeira nessas terríveis circunstâncias que eu descrevi.
"Uma das coisas que eu gostei em relação à sequência dos créditos é que se se está familiarizado com os filmes da Pam, uma data deles começa com a Pam só a andar, e contemplando a glória que a Pam é. Eu pensei, OK, vou fazer a melhor sequência de abertura da Pam Grier de todos os tempos. Acho que consegui mesmo. A estrutura da coisa é muito interessante. Não é suposto ser visto a olho nu, mas começa e ela está na passadeira rolante, e nós vêmo-la, estamos embebidos nela, estamos a absorvê-la, e ela está a caminhar pelo aeroporto abaixo e parece a criatura mais forte que um gajo já criou. Tinha tido todo este poder e força - e é a Foxy Brown 20 anos depois, é a Coffy 20 anos depois - e tem toda esta feminilidade, e é óptimo. Na última parte vemos que está a correr e a correr, e percebemos que está só a tentar chegar ao trabalho. Não está a caminhar pela rua abaixo para incendiar Harlem inteira. É uma mulher a trabalhar neste mundo, e está atrasada para o trabalho dela, e vai ser despedida se não chegar lá. Depois da grande sequência de créditos de abertura durona, dois minutos depois está a servir amendoins. Portanto começa como esta figura mítica, super-heróica e depois no fim da sequência dos créditos trouxemo-la de volta à terra."
Bruno Andrade, que nos apresentou Ball of Fire o ano passado e Heaven's Gate este ano, escreveu sobre o filme para a Contracampo em 2003, dizendo que "a primeira cena de Jackie Brown parece redescobrir algo que havia se perdido em algum momento, algo que não parecia mais ser conhecido pelo cinema e cuja ausência dava vazão a uma sensação amnésica, imemorial. Tarantino nos passa a impressão de estar descobrindo – e em cinema o que vale é sempre a impressão, aquilo que se imprime e faz-se aparente. A descoberta? Nem a parede em forma de mosaico, nem a esteira do aeroporto. Estas peças, tal qual Tarantino as escolhe filmar, nada mais são que uma inércia, um peso do qual um cineasta contemporâneo não tem como escapar. É preciso dobrá-las, implodi-las. O diretor parece querer mostrar que aquilo que o cinema (e vale lembrar já neste ponto do texto: a obra de Tarantino se funda no simples fato de que, quando chega aos seus 100 anos, o cinema deixa de ser apenas o registro de uma imagem histórica e passa a ser a própria história dessa imagem) podia conhecer com a plasticidade, já conhece por completo; conhece demais até, poderia ser acrescentado. É necessária outra pulsão que anime o movimento, que faça do cinema novamente "a imagem em trabalho" (para roubar a expressão de um dos favoritos de QT). O décor não abandona seu estatuto de natureza morta até a aparição de Pam Grier em tela. Uma vez que existe esse corpo – um corpo de mulher, e especificamente de uma dama que simboliza e compreende o fato de que certos filmes existem –, as formas ganham novamente um movimento que o cinema – e só o cinema – pode lhes dar.
"TO SET THINGS IN MOTION (pictures, movies, films, flicks)
"A expressão, que traduzindo da língua inglesa significaria algo próximo de "dar movimento às coisas", ajuda bastante a compreender algo que é profissão de fé no cinema de Tarantino. Pictures, movies, films e flicks são designações diversas para o que aqui no Brasil chamamos apenas de "filmes". Dar uma ordem de "Mexa-se!" a esse manancial – não só porque em cinema as formas se agitam devido a corpos que operam algum tipo de trabalho, como também pelo fato de que são esses corpos os que cativam a câmera a movimentar-se ao redor deles – implicará também, para Tarantino, na feitura de uma pequena (porém admirável) genealogia de sua história de cinema. Um cinema, vale salientar, que é propriedade e produto exclusivo de Tarantino, da sua inacreditável memória fílmica e sígnica e da capacidade de não traçar linhas que distinguem uma arte pretensamente nobre de outra mais indigna. Por tudo isso que no universo Tarantino não existem maiores distinções entre flicks e pictures, movies e films: finalmente (e até que enfim) John Cassavetes pode respirar ao lado de Jack Hill, Welles convive harmoniosamente com Samuel Fuller, Peter Bogdanovich pode dialogar brevemente com John Flynn e Jean-Luc Godard copia descaradamente de Brian De Palma.
"Se o que chamamos hoje de maneirismo precisou procurar por uma linha de pensamentos, referências e códigos próprios para poder se expressar, é em Jackie Brown – e não em Pulp Fiction, ainda uma grande obra – que acaba por encontrar seu registro mais sincero, poético e melhor articulado. O filme de Tarantino pertence a uma confraria que abriga obras-primas seminais da década de 90, experiências inestimáveis e fundamentais para se compreender os rumos do cinema contemporâneo: é junto a Irma Vep, Perseguido pelo Passado, O Sabor da Cereja, Chungking Express, New Rose Hotel e Eduardo Mãos de Tesoura que Jackie fica mais à vontade, mais até que dos dois trabalhos anteriores de seu diretor."
Até Terça-Feira!
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