quarta-feira, 12 de julho de 2017

Steamboat Bill, Jr. (1928) de Buster Keaton e Charles Reisner



por João Palhares

James Agee não esteve por meios termos ou meias medidas quando escreveu em 1949 que “o estúdio de comédias mudas foi para aí a melhor escola de formação que os filmes já conheceram, e o estúdio de Sennett era tão livre e acessível e fecundo de talento como era possível. Todos os comediantes importantes que vamos mencionar trabalharam lá, pelo menos por um bocado. E também algumas das estrelas mais importantes dos anos 20 em diante – especialmente Gloria Swanson, Phyllis Haver, Wallace Beery, Marie Dressler e Carole Lombard. Os realizadores Frank Capra, Leo McCarey e George Stevens também começaram na comédia muda; muito do que continua mais flexível, espontâneo e vivo visualmente nos filmes sonoros pode-se remontar, através deles e de outros, a esta aprendizagem muda. Toda a gente fazia basicamente o que quisesse no lote de Sennett, e as ideias de todos eram bem-vindas. Sennett não impunha regras nenhumas, e a única coisa que proibia estritamente era o álcool. Uma discussão de história de Sennett era um assunto muito informal. Durante os primeiros anos, pelo menos, só o guião mais importante é que podia ser anotado na parte de trás de um envelope. Os homens de Sennett, sobretudo, despejavam algumas ideias básicas e levavam-nas nas cabeças, com a certeza de que melhores coisas surgiriam quando estivessem a filmar, no calor da acção física. Isto pôs um peso muito grande no aderecista; tinha que ter os aparatos mais improváveis à mão – bombas, telefones falsos, o que mais fosse – para implementar qualquer ideia que surgisse de repente.” 

“Buster” Keaton não começou com Mack Sennett (apesar de terem trabalhado juntos em The Timid Young Man, de 1936) mas aprendeu tudo e deve a sua entrada no mundo do cinema a Roscoe Arbuckle, que tinha trabalhado durante anos com a unidade do veterano dos cómicos americanos. Foi ele que desmontou uma câmara à frente de Keaton para lhe mostrar os processos mecânicos e químicos do cinema e que o fizeram aderir imediatamente à indústria. No genérico de Cops, de 1922, aparece uma citação do Harry Houdini que o baptizou depois de uma queda épica aos 18 meses de idade (segundo Keaton, a palavra “buster” nesses anos era só usada como sinónimo para quedas grandes ou aparatosas e propensas a ferimentos; o pai gostou do som da palavra e a alcunha pegou), “Love smiles at locksmiths”. Parece uma descrição do trabalho paciente e obsessivo de Keaton, que, como Sennett, não escrevia guiões e descobria os seus filmes nos locais de filmagem e em conferências regulares com a sua equipa de escritores e gag men (apesar de se dizer que era ele que inventava a maior parte dos gags). Em The Playhouse, para multiplicar a sua personagem (no que com outro comediante qualquer seria um exercício puramente egocêntrico mas em Keaton se torna prova de tremenda humildade - um dos muitos e belos paradoxos espalhados pela obra de Keaton, o cómico que não sorria), reduz a exposição de luz com o seu operador de câmara de modo a filmar só uma parte do plano, dá a volta à película dentro da câmara para voltar a filmar outra parte com exposição, repetindo o processo até conseguir o plano desejado. Esta brincadeira obrigava-o a filmar as cenas com um cronómetro para se poder acompanhar a si próprio a dançar em palco. Para Sherlock Jr. a precisão ia ao cúmulo de se ter que cortar a exposição na câmara a régua e esquadro para poder encaixar filmagens de exteriores num ecrã de cinema filmado em interiores. 

Descrito com pouca arte o trabalho químico, pode-se falar agora do mecânico, comparável ao engenho de um Da Vinci e dependente de conhecimentos de carpintaria e engenharia avançadas. Os gags de “Buster” envolviam circuitos e invenções muito engenhosas para serem postos em prática, sendo ele próprio uma espécie de cientista amador que fabricava sistemas e máquinas para simplificar a sua vida do dia-a-dia (parodiou o seu próprio passatempo com a casa auto-suficiente de The Scarecrow, em que “all the rooms in this house are in one room” e, levando à letra o ditame famoso de Antoine Lavoisier, "nada se perdia, tudo se transformava" - os restos da comida em alimento para os porcos, a água de esguichar a louça num charco para os patos, etc). Como quando agrafa o carro à sua casa portátil de One Week e o motor parte sem a carroçaria, ou quando constrói o comboio de Our Hospitality que percorre carris aos solavancos por cima de pedras e pequenas elevações sem sair das linhas, ao colocar as câmaras em caixas especiais para se filmar a si próprio num mergulho profundo para salvar o dia em The Navigator, ou ao usar gruas para criar a ilusão de edifícios a serem desfeitos em Steamboat Bill, Jr., o filme que hoje vamos ver.

Keaton também voltava a filmar mesmo que estivesse em pós-produção e se, durante uma ante-estreia (que, nesta altura, se faziam por questões relacionados com o trabalho e não com a publicidade) percebesse que o público não respondia a certas sequências. Voltava ao laboratório, tentava perceber o que é que não funcionava e aparecia com novas ideias. “Percebi que, assim que os espectadores ficassem empolgados com os actos do herói, recusavam tudo o que podia desviá-lo da sua trajectória, independentemente da qualidade do gag apresentado. Tive a demonstração clara disso mesmo, alguns anos mais tarde, durante a pré-visualização de The Navigator” (in My Wonderful World of Slapstick). Para o caso, era um dos gags preferidos de Keaton, não pensando no entanto duas vezes em o remover para respeitar a integridade do seu filme como um todo. No documentário feito para a televisão em 1987 por Kevin Brownlow e David Gill sobre Keaton, Buster Keaton: A Hard Act to Follow, mostram-se imagens inéditas do realizador durante as filmagens de The Railrodder a debater-se com o sentido de um plano no meio de uma cena. “Se voltasse agora atrás para proteger esta perseguição com grandes planos, não teria a mais pequena ideia do que estava a fazer na altura em que a devia fazer, portanto não podemos fazer com que as cenas encaixem.” É difícil ilustrar com palavras a dedicação com que os grandes realizadores de comédia do tempo do mudo se atiravam ao seu trabalho, principalmente numa altura em que não se vê trabalho ou dedicação quase nenhuns numa sequência aleatória de uma grande produção de Hollywood. Recorramos outra vez a Houdini e fiquemos por “love smiles at locksmiths”, aparentemente uma contracção de dois belos versos de William Shakespeare que dizem, “were beauty under twenty locks kept fast, yet love breaks through, and picks them all at last.” 

Além de realizador, actor e escritor dos seus filmes, Keaton executava também as suas próprias acrobacias, correndo riscos impensáveis até para aqueles dias em que tudo se experimentava e aturava (sabe-se, por exemplo, que o equivalente americano da Comissão de Protecção de Menores mandou acabar com o número de vaudeville de Keaton com os pais, por envolver arremessos de “Buster” contra o cenário ou contra membros do público como se fosse uma bola de basebol). Era o que distinguia Keaton dos realizadores e actores cómicos do seu tempo, podia pensar um filme seu do movimento mais pequeno que o seu corpo conseguia executar às engrenagens dos mecanismos complexos que o desafiavam. O homem contra a máquina que é o mundo. De momentos em que se agarra a um carro a alta velocidade para fugir à polícia (Cops) a quedas de dois andares de casas que parecem projectadas por M.C. Escher (One Week), de mergulhos impossíveis através de barrigas e paredes de tijolo (Sherlock Jr.) a rolamentos épicos para escapar a pedregulhos e noivas não desejadas (Seven Chances), de saltos em altura e com a vara numa corrida contra o tempo para salvar quem se ama (College) a danças com o vento demoníaco de um furacão simulado por vários motores de aviões (Steamboat Bill, Jr.). 

Pode fazer sentido ver hoje Steamboat Bill, Jr. para recordar, então, que “Buster” Keaton não é só um executante de façanhas perigosas e um engenheiro exímio, mas também um poço de emoções, que transmitia sem um sorriso ou uma lágrima (lembra-se muito que ele nunca sorriu mas pouco se quer lembrar que também nunca chorou nos seus filmes). Keaton disse que tomou a decisão de não rir com o público quando fazia comédia porque descobriu nos números de vaudeville que eles se divertiam mais quando não o fazia. Mas o fascínio que este estoicismo intencional provoca já ultrapassa decisões práticas de trabalho ou os sofismos do próprio ofício da comédia que nos garantem que é mais divertido olhar para quem tropeça em situações cómicas se, para eles, forem a coisa mais séria do mundo. Terá até mesmo que ver com os “arquétipos primordiais” de que fala James Agee no artigo que citámos no princípio deste texto. Steamboat Bill talvez seja o filme com mais emoções de “Buster” Keaton: sobre pais e filhos, velhos rivais, paixões frustradas pela família e um furacão que em vez de destruir, pacifica (voltando aos paradoxos). 

Podemos terminar com os gags e as narrativas circulares de Keaton. Como com a casa portátil que roda sobre o seu eixo em One Week, como na perseguição que é fuga ao mesmo tempo em The Navigator, como o belíssimo plano inaugural de Steamboat Bill, também as histórias destes filmes se costumam encerrar com a recapitulação e correcção das façanhas que as personagens de "Buster" Keaton começam por não conseguir executar. Sejam as lições do atletismo para a última corrida em College, ou a condução final da manada de bois em Go West. Ou, neste caso, a condução de um barco a vapor que se começou por sabotar sem querer e, no fim, quando conta para alguma coisa (pequena nota: até pode ser que a indolência das personagens de Keaton não seja indolência nenhuma mas uma recusa muito decidida em mostrar o seu valor só para impressionar, vindo ele ao de cima quando é mesmo preciso, quando conta), se consegue utilizar para salvar todos aqueles que se ama. E qual é a moral da história? Talvez seja apropriado que, para um filme com uma história arrancada do “Romeu e Julieta”, se responda mais uma vez com o “were beauty under twenty locks kept fast, yet love breaks through, and picks them all at last.” Ou então que “love smiles at locksmiths”. 

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