quarta-feira, 5 de julho de 2017

Greed (1924) de Erich von Stroheim



por José Oliveira

Greed é o supra-sumo da imensa e trágica arte de Erich von Strohein, onde a danação absoluta do Ser Humano tem uma correspondência formal ao mesmo nível, talvez por isso nada lhe foi perdoado, vendo Greed como praticamente todos os seus outros filmes imperdoavelmente mutilados, à imagem do que depois Orson Welles ou Michael Cimino na América experimentariam; ou Leos Carax na França - tocaram no mais perigoso dos fogos universais e subterrâneos e no mais inviolável dos segredos humanos e foram castigados pelos deuses ou pelos deuses que há dentro das vísceras dos homens. A ganância, o lado negro adormecido em cada qual, as pulsões incontroláveis, o destino a amaldiçoar o acaso e a vontade... e as formas sempre inauditas porque sempre tudo olhado de frente e para lá da casca pelo maldito Stroheim. Maldito não porque sempre quis fazer as coisas como devem ser feitas mas porque ousou olhar o que deve estar tapado para o bem de todos. Tal como carregou o espaço de nomes Bíblicos e Capitais para tudo reverter ou (nada) simplesmente mostrar o outro lado da sombra como do espelho. Foi para lá da alma e do espírito humanos e queimou-se. Por isso o que imprimiu no celulóide tanto é a mais terrível das verdades como a indesculpável ousadia. Jamais em cinema se foi tão directo e se foi tão ao fundo. E, como Murnau, Griffith ou Lang, Sjöström ou Stiller, temos o cinema no máximo do seu exponente poético e carregado com o som e a fúria que fazem as obras totais; então que não se fale com condescendência para o que antes do sonoro foi feito. O cinema, do digital ao plano Lumière é só questão de fúria. 

Sobre Hello Sister, obra derradeira que muitos sustentam ser o cúmulo da mutilação a um cineasta e onde algumas das cenas mais famosas não terão sido realizadas por Stroheim, transcrevo um texto que um dia escrevi, isto porque o olhar é o mesmo e já outra coisa que só depois do inferno na canícula terrestre foi possível: 

«Indecifrável segredo esse de o mais fulgurante romantismo advir do mais perigoso realismo. Esse que se despe de todo o sublinhado ou arabesco para olhar de frente, à distância em que as coisas se tornam por inteiro essas coisas. Era assim de forma absoluta na ausência de estilo em “Greed”, que de tanto assim insistir em ver se perdia para a danação, é assim em "Hello Sister!”, onde não só toda e qualquer substância física têm o seu peso e textura de verdade, como também os sentimentos, as alegrias, tristezas, rudezas, alvuras. Daí ao romantismo são os corações opostos aos de “Greed” que marcam a diferença, gente bonita que se magoa e deixa magoar mas se levanta. Alturas imensas as de Erich von Stroheim, que prova que o directo do nosso olhar só por algo de dentro se pode transfigurar, assim também a arte, onde o mais pavoroso dos incêndios se volve de um momento para o outro, expondo-se os amantes nus e fuzilados de ternura, no mais voluptuoso fogo-de-artifício. 

“Hello Sister!” é o conto de fadas maravilhado e perverso da doce inocente Peggy e da sua amiga que provocadas por uma gata assanhada decidem sai para a rua em busca de homens, trabalhado o acaso e a roda do destino saem-lhe na rifa duas criaturas completamente opostas que as trocam à nascença, porque, notou-se logo naquela berma do passeio, quem era para quem e só mais tarde, depois de sobes e desces e patéticas fantasias de feira, a evidência de que só Jimmy poderia envolver aquela áurea ninfa e dizer-lhe que o mundo estava em maré de sorte quando ela nasceu. 

E não há momento algum no filme em que se perca a razão e a construção cimentada, a claridade geral, nem mesmo no seu instante mais agudo e arrebatador, quando dos baixos solos onde se batiza um cão salvo à valeta de solitário, se sobe para um tecto iluminado e abrindo-o se descobrem as estrelas e as luas feéricas que a poluição e rapidez da maior das metrópoles sempre escondeu. O mais idealizado dos momentos, já em terrenos neorromânticos, frescas brisas e escaldantes clarões, irrompe da mais clássica, invisível e Baziniana das práticas, atrás da câmara de filmar e à frente dela, a felicidade e o risco dos olhos esbugalhados dos crus primeiros espantos. 

Na mais estranha das cenas, aquando da descoberta da gravidez, o médico vai falando a Peggy de Leonardo Da Vinci, e um lento zoom vai entrando pela “Última ceia” adentro, e glorificando-se mães que dão filhos ao mundo mas também o medo de os pôr cá para fora desamparados, indo-se à bíblia dos pecados e das primeiras pedras atiradas, vamos ficar focados na figura central da famosa pintura, e do grande plano de Jesus Cristo a imagem funde a negro para ir ter com um grande plano de Peggy, noutro espaço, e é precisamente nessa ousadia e constatação que se fundem Stroheim e Da Vinci, dois dos maiores que souberam que a máxima exactidão está à beira da máxima fantasia, o rigor é primo ou irmão do devaneio, a ciência possui o terror. 

O escultor, arquiteto, matemático, pintor, poeta, etc, Leonardo, não dava asas à desordem irracional para atingir fogos-húmidos ou o inominado romantismo a que comecei por aludir, mesmo que seja só eu a vê-lo. Podemos analisar as suas Madonnas e a maníaca precisão anatómica, cores de pele, lógica do gesto e dos olhares, força orgânica e entrópica, suavidade e tensão. Essa beleza da harmonia do corpo com as reacções mas também dos fundos e da natureza liberta. Um todo renascentista, óbvio, mas para avançar mais paremos no seu “São João Batista”, na acabada pesquisa e consumação corpórea do ser, com a envolvência fogosa do claro e do escuro, o aceno enigmático para cima, o olhar para todos nós, um todo palpável. Conhecimento e técnica e então algo que também está presente em todo o “Hello Sister!”, quando se treme num atravessar de uma estrada, parafraseando Jean-Marie Straub, ou no assistir lento e compassado de um enamoramento, e que pode ser, que é, tudo aquilo que a realidade contêm intrinsecamente e que não se pode nomear, uma qualidade e propriedades no segredo de Deuses ou de ninguém, e que só dispensando delírios será possível encontrarmos uma porta entreaberta ao delírio máximo das coisas inteiras e despidas, tal como Sophia de Mello Breyner dizia das palavras cinzeladas de Homero. 

Da tinta necessária e do desenho cirúrgico do “São João Batista” que lhe ressuscita carnes e chagas, sangue e alma, até aos insertes surrealistas do filme de Stroheim, a cal a desprender-se para a cama do vizinho de baixo ou o ferro malandro a queimar a roupa, como noutros filmes dele o pássaro fatídico ou os mirrados desertos e as suas asfixiantes miragens ou os funestos ventos reveladores, uma arte total em que a evidência, filtros íntimos, irreal e insondado confluem e se atraem uns para os outros em qualquer momento, emaranhado de tudo o que se propõe existir e que existe em todos os casos, emoção do momento seguinte.» 

Pois sobre Greed propriamente dito, José Manuel Costa, director da Cinemateca, disse tudo o que acho essencial: 

«“Anjo e demónio, brinca com o fogo do inferno e a luz do paraíso”, dizia-se num texto de 1930. Greed foi o inferno de Stroheim, depois de ter começado por ser o seu paraíso. Obra charneira do seu trabalho, foi o momento em que ainda acreditou e, depois, a razão do fim de quase todas as crenças. Até à última volta de manivela foi, sem margem para dúvidas, o seu mais livre e coerente projecto, o seu manifesto e, em conformidade com isso, a obra da mais seca e total irrisão. Seguidamente, foi o alvo de uma histórica mutilação - também a mais extensa e discutida de todas - que, por sua vez, não deixou de ser base para alguns mitos e outras tantas, abusivas, simplificações. 

O carácter de charneira atribuído ao projecto começou por corresponder ao próprio contexto de produção e às mudanças que, por essa altura, recompuseram as estruturas hollywoodianas: afastado da Universal por Irving Thalberg a meio da produção do seu filme anterior (Merry-Go-Round), Stroheim iniciou um contrato com a Goldwyn exactamente no momento que antecedeu o célebre acordo de fusão desta com a Metro de Loew e o grupo Mayer. E, “apanhado” no decurso da formação da M.G.M. (o filme é produzido pela Goldwyn mas já terminado e distribuído por esta última), o autor de Greed acabou por se ver ironicamente confrontado com o homem de quem acabara de “fugir”, Thalberg, entretanto também associado ao processo e, agora, chefe de produção da nova “major”. O filme que começava como libertação do pesadelo “thalbergiano” na Universal viria a reencontrar esse pesadelo, de uma forma labiríntica cujas conotações pessoais escondiam porém algo que, obviamente em muito as ultrapassava. 

É verdade que, se as condições do contrato com a Goldwyn tinham, aos olhos de Stroheim, as cores da “libertação”, tal não se devia muito à letra desse contrato - onde se previam até ao último detalhe as penas de não cumprimento de prazos e os subsequentes cortes na percentagem de lucros - mas sim ao optimismo do realizador que, agora, tinha esperança de que não viesse a haver homem para a aplicar. E, pese embora o facto de ter acabado por haver esse homem e de ele se ter justamente baseado no acordo escrito, Stroheim avançou para a rodagem como se alheio aos pesadelos anteriores e com o firme propósito de, por esta vez, fazer obra sem compromisso. 

O projecto em que se baseava Greed era, em conformidade absoluta com isto, aquele que desde sempre lhe fôra mais caro, aquele que periodicamente anunciara desde 1920 e que várias vezes tentara concretizar na Universal (onde, aliás, os direitos chegaram a ser comprados): a adaptação do romance McTeague de Frank Norris, manifesto literário do naturalismo americano, elo de ligação entre as influências de Zola e a obra posterior de Dreiser, minuciosamente interligado com dados realistas do quotidiano da região de S. Francisco na última década do século passado. Era a mais americana das narrativas escolhidas pelo autor vienense, mas Stroheim via-a, na sua universalidade, como o melhor dos seus próprios manifestos, e, tal como Renoir ao adaptar Zola - num dos muitos paralelos que sustentam celebérrimas associações feitas por homens como Bazin - Stroheim fazia-a sua parecendo encontrar nela o que sempre quisera dizer e a melhor das bases para o universo estético dos seus “sonhos de realismo”: essencialmente, a concepção “animal”, determinista, da condição humana, o primado dos valores hereditários e o papel catalisador do ambiente nas acções individuais. Isto, muito embora a fusão Stroheim/Norris não tenha deixado de, apesar de tudo, ser orientada num sentido que não é alheio a nenhuma das suas narrativas mais “vienenses” (sobretudo as que se seguiram a Greed), a saber, o sentido trágico por excelência, aquele em que o destino individual, veiculado pelo interior, é ainda mais exacerbado face ao contexto, relegando este para um nível menos determinante do que na citada tradição literária. Não foi por acaso que Stroheim apagou as referências políticas (os discursos socialistas do personagem Marcus Schouler) que, na verdade, em nada eram chamadas ao seu próprio universo, e não foi por acaso que, ao ser interrogado sobre a “pintura das condições sociais americanas”, se limitou a responder: “para mim, era como uma tragédia grega e nada mais”. 

A adaptação e os critérios de rodagem de Greed seguiram fielmente esta dupla condição: adaptar escrupulosamente a quase integralidade do romance (só retirou os “ataques ao capitalismo” e pequeníssimas sub-narrativas), e ao mesmo tempo excedê-lo nos fundamentos hereditários - a “danação” de McTeague como força prevalecente a qualquer motivo histórico - e na carga física que, segundo Stroheim e como intento maior dele, podia, no cinema, multiplicar o efeito de degenerescência dos personagens. Ou seja, ao nível do argumento, aplicar linha a linha o texto prévio, tirando pouco e acrescentando cenas de definição de personagens (não qualquer outra intriga), no que deu como resultado um argumento do “tamanho duma lista telefónica” e, desde logo, o inevitável gigantismo do produto final. Ao nível dos locais de rodagem, fugir, pela primeira vez, a qualquer resíduo de estúdio e, para além disso, filmar nos exactos locais descritos por Norris (os bairros antigos de S. Francisco, a mina, reconstruída para o efeito, de Big Dipper, e o Vale da Morte “itself”, em pleno deserto e no pico do Verão, no que deu como resultado uma das maiores odisseias de rodagem jamais havidas, com boa parte da equipa a debandar para os hospitais mais próximos e Stroheim, ele, a dar mostras de “parecer gostar daquilo”). Finalmente, ao nível da escolha dos actores e da direcção deles, manter a regra imperativa da recusa de quaisquer “stars” - McTeague foi interpretado pelo guia silencioso de Blind Husbands, Gibson Gowland - tomando-os pela identificação com os respectivos personagens e dirigindo-os de modo a exacerbar essa identificação, pedindo-lhes que fossem e não que interpretassem, e instigando um clima de tensões reais entre eles. Ficou celebérrima a descrição da rodagem da luta final, com os actores a rastejarem, literalmente ensanguentados, e Stroheim a gritar “tentem odiar-se um ao outro como ambos me odeiam a mim!” 

No conjunto, tratava-se da aplicação ilimitada - tanto mais obsessiva quanto Stroheim se mantinha do lado de cá da câmara, concentrando-se nos seus exclusivos critérios de “mise-en-scène” - do “manifesto realista” por ele tanto e tanto reivindicado. As consequências eram totalmente previsíveis e, afinal, o corolário simples dessa peculiar situação no contexto da época. Stroheim montou uma primeira “cópia de trabalho” com 45 bobines - cerca de 9 ou 10 horas de projecção - e, muito embora tal não fosse assumido como cópia definitiva (razão dos equívocos de pretender restaurá-la a esse nível), a verdade é que, por ele, nada mais “conseguiu” cortar. E, mercê das óbvias pressões da companhia (e do recém chegado Thalberg que, justamente nessa altura, reentrou na história) Stroheim enviou o “rough cut” ao seu amigo Rex Ingram que supervisou a passagem à segunda versão, de 15 bobines (para projecção em duas sessões consecutivas) e, por sua vez, aí parou. Stroheim por um lado, Ingram por outro, não aceitavam qualquer outra redução, mas, como era também natural, Thalberg não se deu por satisfeito e entregou o material a outra e mais dócil gente - o montador final foi Joseph Farnham, antes escritor de “intertítulos” - para último e definitivo corte. E assim se fez e assim se chegou aos écrans americanos e europeus (nalguns casos com cortes suplementares da exibição), com má aceitação inicial de público e crítica e como princípio de uma longa história de reavaliações sucessivas - a evolução do cinema pós-anos 40 trouxe-o, por sua vez, aos píncaros - e de crescente mitificação do “original” perdido, fosse ele o de Ingram (ideia correcta), fosse ele, até, o “nunca visto” “rough cut” de dez horas (ideia muito pouco consistente e, em todo o caso, nunca baseada no conhecimento directo). 

Pois bem, resumida a “saga” e introduzidos os “princípios”, não nos chega o espaço e o tempo para uma leitura, por brevíssima que seja, desta obra a todos os títulos extrema de Stroheim. Greed exige obviamente muito, como obra e como factor de relação com o percurso do cinema, seja no desfasamento efectivo com os padrões de linguagem da época - a opção pelo “realismo”, na acepção de Bazin - seja em outros e variados desfasamentos - os que quebram a linearidade dessa conotação “realista” e que Bazin, do lugar em que se colocou, tinha naturalmente que subestimar. Percamos as ilusões de uma resposta sistemática e limitemo-nos a dois únicos pontos, em que estas questões perpassam: 

- O tom. Greed, dissemos, é o argumento mais coerente de Stroheim enquanto ilustração de um destino trágico, não veiculado pelas oscilações do melodrama: a curva de degenerescência é perfeitamente brutal, e todas as cenas de possível esperança são literalmente feridas por elementos visuais que, nesse preciso instante, a destroem. Durante o casamento, é uma janela aberta que deixa ver o funeral, ao fundo, no limite de profundidade campo. No início da “lua de mel” é o tema visual do pássaro e da gaiola (sempre demasiado directo para ser símbolo ou metáfora) e, depois, a mais inesquecível das cenas, com Trina a percorrer os corredores em fuga a uma aproximação desejada mas consumada como literal violação. Na luta final de McTeague com ela, é o letreiro luminoso “Merry Christmas” que, em efeito simétrico mas rigorosamente equivalente e tão ou mais lancinante, cava o negrume do instante. 

- A técnica de narração. É impossível saber o que seria a lógica precisa de uma montagem pela mão do autor mas a verdade é realmente que, no “sistema Stroheim” (aqui como em Flaherty) a montagem, por decisiva que seja, não é uma forma de significação em si. Sabemos que o ritmo não é o dele (uma das soluções de corte foi a redução do tamanho dos planos) mas sabemos, pela observação da cópia, que a lógica é, na verdade não griffithiana. Um dos exemplos evidentes disso é a cena de descrição ambiental da “queda” do par, através do quarto em desordem: a câmara colhe pormenores e acumula-os; a função é acumular e não exprimir pela própria escala ou ordem de planos. Os “blocos de realidade” de que falava Bazin são efectivamente isso e aí ele não se enganou. Greed, como modelo perfeito do “sistema”, ia a contra-corrente do que, por toda essa década, cada vez mais surgiria como fascínio máximo da linguagem do mudo. E a força brutal das sua imagens, e o carácter directo e físico do impacto delas, eram a base e a coerência última disso. Se Bazin não viu (ou não pôde ver) aquilo que excedia esse realismo não foi aí, ao nível da “linguagem”, que se enganou. Há, evidentemente, um “paroxismo stroheimiano” que remete para outros conceitos. Mas essa seria, na verdade, uma outra história.» 

«CADA UM DE NÓS É O SEU PRÓPRIO DEMÔNIO E FAZ DESTE MUNDO UM INFERNO» escreveu Oscar Wilde. Tudo isso se aplica tanto a Stroheim como a cada um dos básicos e ultra complexos protagonistas na terra aonde não pediram para serem trazidos. Na terra aonde urge sobreviver. A danação, a perdição, a destruição em que nos especializamos, sobretudo a própria, tal como depois outro Von, Josef Sternberg, nos atiraria à face em Ana-ta-han ou Scorsese em Casino, espelhos que poderiam ser continuações de Stroheim. Mas Greed vai além de tudo, de todas as análises analíticas ou grandes chavões abstractos sobre o Mal. Portanto, resta mergulhar neste mapeamento ou neste buraco sem fundo. Boa sessão.

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