segunda-feira, 24 de julho de 2017

70ª sessão: dia 25 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


E aí está finalmente a obra que deu nome ao nosso Cineclube. O filme que fechará (provisoriamente, sempre) o grande ciclo de cinema americano. O mais belo e puro filme do mundo realizado pelo mais secreto e fascinante cineasta que o cinema já conheceu, o inigualável Frank Borzage, fonte de todas as dádivas.

Para falar disto, só João Bénard da Costa: «Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente complexo. Só os grandes sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser tão fundamentalmente transgressor. Nunca ouvi uma história de almas tão belas como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosos e tão vulneráveis como estes. O milagre daqueles corpos - corpo de Janet Gaynor, corpo de Charles Farrel - é igual ao milagre daquelas almas. Só a carne ressuscita.»

Próxima terça-feira, dia 25 de Julho, na velha-a-branca. Com apresentação em vídeo de vários companheiros que foram passando pelo Lucky Star, de Miguel Marías a Francis Vogner dos Reis. Tragam a família toda!

Martin Scorsese, no prefácio de um livro de Hervé Dumont sobre Frank Borzage, Frank Borzage - The Life and Films of a Hollywood Romantic, escreveu que "há uns anos, vi bastantes dos filmes de Borzage todos de seguida - tantos quanto consegui encontrar. E fiquei verdadeiramente espantado. Fiquei espantado pela mestria de Borzage, pela sua paixão, e pela sua extraordinária delizadeza. Sempre que ele filma duas pessoas a apaixonarem-se, como em Lucky Star ou 7th Heaven ou A Farewell to Arms, ou duas pessoas já apaixonadas a protegerem-se uma à outra de um mundo hostil, como em Man's Castle ou The Mortal Storm, ou muitas outras variações no meio, a acção acontece no que eu chamaria de tempo dos amantes - cada gesto, cada troca de olhares, cada palavra dita conta. Borzage estava tão sintonizado com as nuances entre pessoas que era capaz de apanhar emoções que simplesmente não se vêem nos filmes de outra pessoa. Por exemplo, aquelas cenas entre Kay Francis e George Brent no coração de Living on Velvet - ela está-lhe a fazer a vontade, a deixar-se levar por ele, porque não quer perturbar o seu equilíbrio frágil; ele parece tranquilo, mas pode-se ver que sob a superfície ele está desfeito emocionalmente, que podia quebrar a qualquer momento. Muitas destas cenas são representadas em grande plano, e a intensidade dos sentimentos entre Francis e Brent é esmagadora. Mannequin também é muito comovente, por razões diferentes. A personagem de Joan Crawford acredita num ideal de amor, e Spencer Tracy sabe que consegue cumprir esse ideal mas espera pacientemente para ela o perceber: O que podia ter sido um melodrama banal nas mãos de outra pessoa qualquer torna-se um estudo sobre duas pessoas motivadas pela fé, que finalmente se juntam como se fossem um só. Till We Meet Again é outro filme que teria sido completamente banal nas mãos de outra pessoa qualquer. Ray Milland é um piloto americano cujo avião se avaria na França ocupada, e Barbara Britton é uma jovem noviça que o ajuda a escapar. Borzage leva a relação só a um nível abaixo de um caso de amor genuíno, e o facto deles não poderem agir sobre os seus sentimentos - ela dedicou a sua vida a Deus e ele é casado com filhos - torna esses sentimentos mais pungentes a esse ponto. No fim, ela martiriza-se a si mesma para o salvar, e é como se fosse a grande consumação do seu caso de amor. Há uma força espiritual nestes filmes, e em todo o melhor trabalho de Borzage - porque para ele, o amor é santificado, intocável pelo mundo exterior. Passa através de todos os obstáculos, e é mais poderoso que qualquer mal. Sente-se o poder do amor de Stewart e Sullavan depois de partirem, envergonhando as pessoas que os traíram, no final de The Mortal Storm. Em I've Always Loved You, o vínculo entre Philip Dorn e Catherine McLeod é transmitido através de uma série de grandes movimentos de câmara que os ligam enquanto fazem música juntos. E no fim de China Doll, o amor entre Victor Mature e Li Li Hua continua na filha crescida deles, pisando solo americano anos depois de ambos terem morrido."

Hervé Dumont, no mesmo livro, debruça-se sobre o filme da nossa próxima sessão, escrevendo que "nos Estados Unidos, Lucky Star foi lançado como o primeiro filme falado de Janet Gaynor e Charles Farrell. O filme estreou a 21 de Julho no enorme Roxy Theater de Nova Iorque, equipado especialmente com Movietone. Mas a reacção do público foi morna: com a sua carência de sensacionalismo, a sua modéstia, e talvez uma espécie de tristeza no seu âmago, foi logo esquecido. O Love Parade de Lubitsch com Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald como os pombinhos chilreantes estava a ditar as modas, na altura. Em Outubro, a Fox juntou Gaynor e Farrell numa comédia cadenciada que era "sonora a 100 por cento," Sunny Side Up de David Butler, uma farsa despretensiosa interpretada numa paisagem nova-iorquina moderna e que iria estabelecer novos recordes no box office ($3,500,000). A imprensa interpretou completamente mal Lucky Star: as opiniões incrivelmente superficiais variavam entre "mau e indiferente" (Variety) e "uma mediocridade agradável" (New York Herald Tribune). Os críticos estavam satisfeitos com a qualidade do som e das imagens, mas acharam a história em si "absurda" e "simplista." Só Welford Beaton, o crítico americano da altura mais em sintonia com Borzage, declarou na Film Spectator de Hollywood: "Conta alguns capítulos nas vidas de algumas pessoas excessivamente monótonas, e passa-se em ambientes sórdidos, portanto não é um filme que vá ter uma ampla recepção popular... Lucky Star não vai ser um dos maiores filmes no box-office que vêm do lote da Fox, este ano, mas vai ser um dos melhores." Marcel Carné, então um jovem crítico na Cinémagazine, declarou: "Admito que sou parcial para com os filmes de Borzage. Eles não têm sempre a estrutura necessária, mas são obras-primas de simplicidade, imbuídas de pureza e sensibilidade apurada. A fotogragia, às vezes, é tão suave e agradável aos olhos, que o espectador sente um prazer inexprimível." No entanto, como tantos dos seus contemporâneos, permanece insensível ao final, "que provavelmente foi imposto a Borzage"!

"Sessenta anos depois, Lucky Star continua a provar que os seus críticos estavam errados. Em 1990 o Filmmuseum da Holanda descobriu, nos seus cofres, uma cópia muda do filme, a única versão aceitável, e restaurou-a. A sua estreia nos Giornate del Cinema Muto em Pordenone (18 de Outubro, 1990) teve um efeito explosivo numa multidão internacional de cinéfilos de elite que lhe deram uma ovação entusiástica. Em finais de Janeiro de 1991, o filme foi programado como uma curiosidade histórica na abertura do 20º Festival de Cinema de Roterdão. Depois de serem exibidos 186 filmes, incluíndo os últimos de Kaurismäki, Muratova, a obra completa de Nicholas Ray, filmes de Losey, Godard, Kazan, Aldrich, Fuller, e Rossellini, os organizadores do festival realizaram uma sondagem de opinião para designar o melhor filme. O público deu o primeiro lugar a Lucky Star."

Voltando a João Bénard da Costa, "Lucky Star é um filme de Frank Borzage (1893-1962). Borzage, como todos os cineastas americanos da sua geração, abordou muitos géneros. Mas há um em que ninguém lhe levou a palma: o melodrama. Mesmo Douglas Sirk (e Deus sabe quanto o amo) é menor ao lado deste maior. Mesmo Griffith, só lhe abriu os caminhos. Porque se Lucky Star, como outros melodramas dos finais dos twenties, não seriam possíveis sem Griffith (por exemplo, aquele True Heart Susie já aqui evocado), nunca houve corpos tão anímicos e almas tão carnais como na obra deste místico, por um lado muito religioso, por outro muito atento às correspondências secretas entre ritmos ocultos e aparências geométricas. Homem muito sabido em símbolos (nada a ver com alegorias) maçon cultivadíssimo, cultor exotérico. Os surrealistas não se enganaram quando o meteram na família, eles que tanto amaram The River, o filme anterior a este.

"Lucky Star tem Janet Gaynor e Charles Farrel nos protagonistas. É um dos três filmes (com Seventh Heaven e Street Angel) em que Borzage dirigiu o par, outrora célebre, dos “America’s favorite lovebirds”, como entre 1927 e 1934 foram conhecidos. Borzage criou esse par que, depois dele, mais nove vezes apareceu junto. Estranhíssimo par: ela, palmo e meio de altura, “piccina, tanto piccina, troppo piccina”, como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (foi a actriz de Sunrise, de Murnau, do mesmo ano de Seventh Heaven). Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra."

Até Terça-Feira!

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