domingo, 9 de julho de 2017

68ª sessão: dia 11 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Foi Harry Houdini, o mago entre todos os espíritos (segundo João Bénard da Costa), que decidiu apelidar Joseph Frank de Buster (“coisa enorme”; “something that is very big or unusual for its kind”) quando este contava apenas uns seis anos. Conta-se que foi depois de o ter visto rebolar por uma escada de caracol e chegar ao chão tão impecável como antes da queda. E terá nascido assim Buster Keaton, o genuíno super-herói, o inventor sem limites, o mágico, o génio absoluto que fará da nossa próxima sessão um constante espanto. 

Tal como Chaplin, um visionário muito à frente do seu tempo e actuando justiceiramente nele; começou com a família nos espectáculos de variedades pelo seu país fora e passo a passo foi percebendo que era no cinema que tinha de apurar a sua arte revolucionária. 

Steamboat Bill, Jr., o filme de 1928 que iremos ver, tem lá dentro todas as proezas físicas e quase suicidárias a que entregou o seu corpo, bem como todas a maravilhosas criações visuais e os truques únicos ao serviço de uma encenação pasmosa; e tem o romantismo contido, calado, em filigrana... o impassível rosto com a potência expressiva de um universo inteiro acabado de descobrir... enfim, o milagre da constante redescoberta e risco de um cinema tão delicado como total. 

E assim homenagearemos também todos os grandes burlescos americanos, de W. C. Fields a Mack Sennet, de Harold Lloyd até aos Irmãos Marx. 

Fomos mais uma vez ter com o generoso Chris Fujiwara, que já nos tinha feito um vídeo sobre Jacques Tourneur, e será ele a apresentar o filme aos Bracarenses e a todos nós. 

James Agee (pioneiro dos freelancers e inspiração maior do chamado "Novo Jornalismo", crítico de cinema, escritor, poeta e argumentista de African Queen e Night of the Hunter), em artigo para a revista Life (Comedy's Greatest Era - Mack Sennet's Maniacs and Four Master Clowns Made Action both Louder and Funnier than Words), escreveu que "a cara de Keaton quase se equiparava à de Lincoln como um arquétipo americano primordial; era assombrosa, elegante, quase bela, e no entanto era irredutivelmente engraçada; ele melhorava as coisas ao coroar tudo com um chapéu mortalmente horizontal, tão fino e achatado como um disco de vinil. Jamais se consegue esquecer Keaton a usá-lo, permanecendo erecto na proa quando o pequeno barco dele está a ser lançado. O barco vai grandiosamente pelo ralo abaixo e, de maneira igualmente grandiosa, directo ao fundo. Keaton não faz um gesto. Da última vez que o vemos, a água levanta o chapéu da cabeça estóica e flutua para longe.

"Mais nenhum comediante conseguia fazer tanto com a cara sem expressão. Ele usava esta cara formidável, triste e imóvel para sugerir várias coisas relacionadas: uma mente de um só curso perto do fim do curso da insanidade pura; imperturbabilidade obstinada sob as mais ferozes das circunstâncias; quão morto se pode tornar um ser humano e ainda estar vivo; uma espécie de paciência inspiradora e poder para resistir, próprios ao granito mas estranhos em carne e osso. Tudo o que ele foi e fez ostentava este rosto rígido e provocava risos contra si. Quando ele mexia os olhos, era como vê-los a mexerem-se numa estátua. O corpo de pernas curtas dele era todo ângulos súbitos e maquinais, governados por aplausos doidos. Quando ele abanava um braço como um semáforo para apontar, quase se conseguia ouvir o impulso eléctrico no bloco de sinal. Quando fugia de um polícia as transições dele de caminhada acelerada para meio-trote fácil para trote largo brusco para galope impetuoso até arrancada de pistão açoitado - a cara imperturbável e intocável sempre a flutuar, acima deste delírio - eram tão distintas e tão sobriamente ordenadas como uma caixa de mudanças automática."

Keaton, no seu livro My Wonderful World of Slapstick, debruçou-se sobre a rodagem de Steamboat Bill, Jr., escrevendo que "aconteceu uma coisa estranha durante a produção desse filme, a propósito. Um dos assessores de Joe Schenck convenceu-o da ideia de que uma cheia era uma coisa desastrosa para ter num filme de comédia. "Vais fazer muitos inimigos para este filme se mantiveres a cheia," disse ele a Joe. "Demasiadas pessoas perderam os seus entes queridos em cheias recentes. Vão ficar ressentidas se fizermos de um desastre destes uma piada".

"Quando Schenck me disse isto, eu salientei que um dos maiores sucessos de Chaplin foi Shoulder Arms, um filme a gozar com a guerra e tudo que a ela está ligado.

"Chaplin fez esse filme em 1919, no ano seguinte ao fim da Grande Guerra," disse eu. "Ninguém se opôs. E isso incluía as mães de estrelas douradas que perderam os filhos na guerra."

"Mas pela primeira vez o indolente Joe Schenck foi duro. Quando fiquei convencido que ele não ia mudar de ideias perguntei ao Fred Gabourie, o meu director técnico, quanto custava refazer os nossos cenários elaborados de rua com o valor de $100,000 se tivéssemos um furacão no filme em vez de uma cheia. Tinha um palpite de que Schenck talvez não se opusesse a um furacão. Gabourie, um génio no seu trabalho, disse que eram $35,000. E Schenck não teve objecções a que eu encenasse um furacão. As mudanças que fizemos acabaram por custar ligeiramente menos do que isso.

"(...) Tinha-me ocorrido que normalmente havia muito mais pessoas mortas todos os anos por ciclones e tornados do que em cheias. Quando o filme ficou terminado, só por brincadeira, telefonei ao Departamento de Meteorologia dos Estados Unidos em Los Angeles e pedi-lhes números para o ano precedente. Disseram-me que em 1925 morreram 796 pessoas em grandes tempestades de vento e só 36 em cheias. Mas nunca mencionei isso a Schenck, não querendo esfregar-lhe isso na cara. Geralmente conseguia fazer o Joe rir, mas duvido que ele se fosse divertir ao ouvir falar do erro de $35.000 que tinha feito."

Kevin Brownlow, co-autor (com David Gill) de documentários sobre cinema tão essenciais como Hollywood (1980), Unknown Chaplin (1983) e Buster Keaton: A Hard Act to Follow (1987-89), historiador, preservador e estudioso obsessivo, abordou Keaton, Steamboat Bill e a última cena do filme em The Parade's Gone by, escrevendo que "esta cena é o canto do cisne da unidade fiel de Keaton, e uma das sequências com efeitos especiais mais assombrosas jamais tentadas.* O local para todos os exteriores foi no rio Sacramento, mesmo em frente a Sacramento. Foi colocada numa barca uma grua com trinta e sete metros de altura, usada para arrancar os edifícios quebráveis, e para atirar Buster ao alto, aparentemente transportado pelo ar.

*Tramp, Tramp, Tramp (1926, Harry Edwards) com Harry Langdon tem uma cena de ciclone brilhantemente encenada, mas não se aproxima do espectáculo desta.

"A sequência começa com um plano de um carro. O motorista está a empurrar a manivela de arranque. Já está a chover; o capuz dispara de repente, como uma vela, e o carro desaparece pela rua abaixo, arrastando o dono que ainda se agarra à manivela de arranque. Então o cais desmorona-se. Casas completas são batidas em pedaços pelo vento tremendo.

"Levei uma tareia valente," disse Keaton. "Tínhamos seis daqueles bebés motorizados da Liberty, e trabalhar à frente dessas máquinas de vento é mesmo duro. Passámos à frente de uma delas com um camião—e a máquina varreu-a pela margem até ao rio. Só uma máquina!"

"Buster corre para segurança para um hospital. O edifício inteiro é levantado pelo vento, deixando só o chão—e um Buster assustado, sentado numa das camas.

"Depois ocorre o momento mais celebrado de Keaton, provavelmente: a fachada de uma casa cai numa secção completa em cima dele. Mas ele continua de pé, encaixando-se a janela do sótão perfeitamente à sua volta."

Até Terça-Feira!

Sem comentários:

Enviar um comentário