sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Merlusse (1935) de Marcel Pagnol



por Jacques Lourcelles

Inédito em Portugal, 1935 – França (65’) ● Prod. Films Marcel Pagnol ● Real. MARCEL PAGNOL ● Gui. Marcel Pagnol ● Fot. A. Assouad ● Mús. Vincent Scotto ● Int. Henri Poupon (Merlusse), André Pollack (o director), Thommeray (o censor), André Robert (o supervisor geral), A. Rossi (o porteiro), Annie Toinon (Nathalie), Jean Castan (Galubert), o pequeno Jacques (Villepontoux), Rellys (o bedel), Rellys, filho (Bézuquet). 

No liceu de Marselha, vinte alunos internos não saem para as festas de Natal. O supervisor Blanchard, último a chegar ao liceu, é encarregado do estudo da noite nesse 24 de Dezembro. Só com um olho como resultado de uma ferida de guerra, feio, aparentemente violento e em todo o caso severo, ele aterroriza os alunos. Eles chamam-no de Merlusse, porque tem a reputação de cheirar a bacalhau*. A pedido do censor e para ajudar um colega chamado à cabeceira da sua mãe doente, ele supervisiona o refeitório e depois o dormitório. Na manhã do dia seguinte, dia de Natal, todos os alunos têm a surpresa de encontrar um presente ao pé das suas camas. Atribuíndo-o imediatamente à generosidade escondida do supervisor, as crianças reúnem-se para dar cada uma ao mestre um objecto precioso que Blanchard vai encontrar nos seus sapatos. «A quem devo agradecer?» pergunta ele ao mais velho dos alunos – «Ao Pai Natal. Ele não vem muitas vezes ao dormitório. Mas quando se dá ao trabalho, vem para toda a gente». O director vai criticar esta iniciativa não regulamentar, mas anunciará ao mesmo tempo a Merlusse a sua nova promoção. 

*Bacalhau em francês é “morue”. 

► Se tivéssemos de designar apenas um filme para demonstrar o génio de Pagnol, o seu método, o seu conhecimento íntimo dos meios e das possibilidades do cinema e a riqueza e a universalidade das suas personagens, podíamos escolher este Merlusse, obra totalmente original a meio caminho entre a média-metragem e a verdadeira longa-metragem. Quanto ao método, ele é claro: o autor investe num lugar real (o liceu de Marselha) que, de certa forma, e como a Provença das suas obras mais célebres, vai contar ainda mais que as personagens; uma pequena equipa enfia-se no local modificando-o o mínimo possível e, no interior desse espaço onde a verdade já exala por todo o lado, Pagnol filma um pequeno drama, verdadeiro condensado de paixões humanas descritas num idioma admirável e sóbrio. Merlusse fornece a prova dos nove do génio de Pagnol porque este filme sem estrelas, sem sol e em que as personagens estão aprisionadas, extirpadas do seu ambiente natural (e do que é geralmente chamado de universo de Pagnol), dispensa a mesma emoção, atinge a mesma força que Angèle ou La fille du puisatier e surpreende o espectador com as mesmas interpretações poéticas, variadas e precisas dos actores. Merlusse também é um filme sobre a fealdade, a diferença, a crueldade e o abandono, tudo coisas de que o cinema não falava de bom grado na altura em que Pagnol o escreveu. Por fim, o filme obedece à tradição do conto de Natal que quer que os acontecimentos evocados a desenrolar-se durante essa noite encantada modifiquem de forma positiva a vida das personagens da história, sobretudo quando elas estão desamparadas e tristes. 

BIBLIO.: argumento e diálogos in «La Petite Illustration» (1935). Em volumes pela Fasquelle (1936). Nas «OEuvres dramatiques» (Gallimard, 1954). Nas «OEuvres complètes» (Éditions de Provence, tomo III, 1967, Club de l'Honnête Homme, tomo IV, 1970). Também nas Éditions Pastorelly, 1974 e Presses Pocket. Prefácio soberbo consagrado a Henry Poupon, recuperado no volume «Confidences» (Julliard, 1981, Presses Pocket, 1983). Descontente com o som, Pagnol rodou o filme duas vezes (Natal de 34, Verão de 35). 

in «Dictionnaire du Cinéma – Les Films», Robert Laffont, Paris, 1992.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

121ª sessão: dia 7 de Dezembro (Sexta-Feira), às 21h30


Para o Natal de 2018, e depois de It's a Wonderful Life (2016) de Frank Capra e Os Sinos de Santa Maria (2017) de Leo McCarey, percorreremos os corredores e o pátio de um colégio interno em França pela altura do Natal. O filme é Merlusse, o realizador é Marcel Pagnol, o ponto de encontro o estaleiro cultural da velha-a-branca.

Em Le Cas Pagnol, texto presente no livro fundamental Qu'est ce que le cinéma?, André Bazin escreveu que "Marcel Pagnol completa o ideal da Academia francesa para o americano médio, junto a La Fontaine, Cocteau e Jean-Paul Sartre. Mas Pagnol deve a sua popularidade internacional em primeiro lugar, e paradoxalmente, ao regionalismo do seu trabalho. Apesar dos esforços todos do Mistral, a cultura rejuvenescida da Provença permaneceu prisioneira da sua própria linguagem e folclore. Alphonse Dauder e Bizet conseguiram mesmo ganhar uma audiência nacional para esta cultura, mas ao preço de uma estilização que lhe roubava a maior parte da sua autenticidade. Mais tarde, apareceu Giono  e retratou uma Provença que era austera, sensual e dramática. Pelo meio, o sul da França dificilmente era representado para vantagem própria pelas "histórias marselhesas." Foi a partir destas histórias, reunidas em Marius, que Pagnol conseguiu constituir o seu humanismo sulista; depois, sob a influência de Giono, deixou Marselha e foi para o interior, onde deu a Provença o seu épico universal, com a sua inspiração finalmente no auge, em Manon des Sources.

"Por outro lado, Pagnol tem gostado de colocar em questão a sua relação com o cinema proclamando-se a si próprio como o defensor do teatro filmado. Olhado deste ponto de vista, o seu trabalho é indefensável. Efectivamente, constitui um exemplo do que não devia ser feito na adaptação de teatro para o ecrã. Filmar uma peça ao transportar os actores do palco para um cenário natural, pura e simplesmente, é a melhor forma de arrancar do diálogo a sua razão de ser, até a sua alma. Isto não quer dizer que a transposição de um texto teatral para o ecrã seja impossível; pode ser feito, mas apenas com o preço de tomar toda uma série de precauções subtis cujo objectivo fundamental é preservar a teatralidade da peça, e não minimizá-la. Substituir o sol do sul de França por holofotes, como Pagnol parecia fazer, seria a melhor forma de matar um texto por insolação. Quanto a admirar Marius ou A Mulher do Padeiro declarando que o seu único defeito está em "não ser cinema," iguala a tolice dos críticos que condenaram Corneille por violar as regras da tragédia. O "cinema" não é uma ideia abstracta, uma essência destilada, mas a soma disso tudo, através  da interpretação de um filme específico, alcança a qualidade de arte. Por esta razão, se só alguns dos filmes de Pagnol é que são bons, eles não podem ser bons e "não ser cinema" ao mesmo tempo. Em vez disso, são bons por terem certas qualidades que os críticos não foram capazes de discernir."

Falando sobre as suas descobertas em DVD do mercado francês no seu blog, Bertrand Tavernier detém-se sobre o filme que vamos ver, chamando-lhe "outra obra-prima, Merlusse, um dos mais belos Pagnols. Sem o «folclore» a que se reduz demasiado facilmente o autor de Angèle: local de Canebière, de sol, de matos, de grilos, de esplanadas de café. A acção desenrola-se num colégio com paredes desvanecidas, num dormitório, com corredores sinistros. Fala-se da solidão, do abandono, da fealdade que faz medo, que repele. E, claro, como é um conto de Natal, da redenção. Pagnol usa de forma revolucionária os cenários naturais (ele revestiu uma escola com uma equipa muito ligeira), o som directo e reinventa o cinema. Local também já não de vedetas célebres. Merlusse é o excelente e o notável Henri Poupon, geralmente limitado a papéis secundários e que como Delmont ou Blavette nunca parece interpretar. Esperamos agora o genial Joffroi. Rellys é formidável como homem de limpezas."

No "Dicionário do Cinema", Jacques Lourcelles escreve que "se tivéssemos de designar apenas um filme para demonstrar o génio de Pagnol, o seu método, o seu conhecimento íntimo dos meios e das possibilidades do cinema e a riqueza e a universalidade das suas personagens, podíamos escolher este Merlusse, obra totalmente original a meio caminho entre a média-metragem e a verdadeira longa-metragem. Quanto ao método, ele é claro: o autor investe num lugar real (o liceu de Marselha) que, de certa forma, e como a Provença das suas obras mais célebres, vai contar ainda mais que as personagens; uma pequena equipa enfia-se no local modificando-o o mínimo possível e, no interior desses espaço onde a verdade já exala por todo o lado, Pagnol filma um pequeno drama, verdadeiro condensado de paixões humanas descritas num idioma admirável e sóbrio. Merlusse fornece a prova dos nove do génio de Pagnol porque este filme sem estrelas, sem sol e em que as personagens estão aprisionadas, extirpadas do seu ambiente natural (e do que é geralmente chamado de universo de Pagnol), dispensa a mesma emoção, atinge a mesma força que Angèle ou La fille du puisatier e surpreende o espectador com as mesmas interpretações poéticas, variadas e precisas dos actores. Merlusse também é um filme sobre a fealdade, a diferença, a crueldade e o abandono, tudo coisas de que o cinema não falava de bom grado na altura em que Pagnol o escreveu. Por fim, o filme obedece à tradição do conto de Natal que quer que os acontecimentos evocados a desenrolar-se durante essa noite encantada modifiquem de forma positiva a vida das personagens da história, sobretudo quando elas estão desamparadas e tristes.

"BIBLIO: argumento e diálogos in « La Petite Illustration » (1935). Em volumes pela Fasquelle (1936). Nas « OEuvres dramatiques » (Gallimard, 1954). Nas « OEuvres complètes » (Éditions de Provence, tomo III, 1967, Club de l'Honnête Homme, tomo IV, 1970). Também nas Éditions Pastorelly, 1974 e Presses Pocket. Prefácio soberbo consagrado a Henry Poupon, recuperado no volume « Confidences » (Julliard, 1981, Presses Pocket, 1983). Descontente com o som, Pagnol rodou o filme duas vezes (Natal de 34, Verão de 35)."

Até logo!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Tolvon tuolla puolen (2017) de Aki Kaurismäki



por Luís Miguel Oliveira

O Outro Lado da Esperança também é o outro lado de Le Havre, o filme anterior de Aki Kaurismäki. Recorde-se: Le Havre era o filme inicial de uma anunciada “trilogia portuária” (é assim que tradicionalmente Kaurismaki pensa a sua obra, em grupos de três filmes), e estando-se nessa altura em 2011 vinha já dominado por aquilo a que mediaticamente se chama a “crise dos refugiados”. O “Havre” de Kaurismäki era um ponto de passagem, um porto de abrigo temporário: tudo andava à volta de um miúdo africano que, “clandestinamente” é claro, precisava de atravessar a Mancha para ir ter com a família ao Reino Unido. Depois de 2011 aconteceram coisas que agudizaram essa “crise”, nomeadamente a guerra civil na Síria, e lançaram pela Europa fora a paranóia xenófoba. Kaurismäki, na sequência das manifestações finlandesas dessa paranóia (por exemplo o partido dos “verdadeiros finlandeses” ou lá como se chamava), chegou a declarar-se zangado com os seus compatriotas – e é difícil não concordar com ele sobretudo se pensarmos na geografia finlandesa, país de densidade populacional mínima com vastos segmentos de milhares de quilómetros quadrados onde só há renas, pinheiros e a ocasional sauna para madeireiros. 

Portanto, e abreviando, depois da incursão francesa este é o filme de Kaurismäki para os seus compatriotas, e o porto é o porto lá de casa, o de Helsínquia. Não é um ponto de passagem, é um destino, o destino escolhido por Khaled (que nas primeiras imagens vemos a levantar-se das lamas e dos lodos, como o Martin Sheen do Apocalypse Now ou como uma criatura da lagoa negra), que atravessou meio continente desde a Síria, perdeu a irmã pelo caminho algures nos Balcãs (o resto da família morreu em casa, em plena refeição, atingida por um míssil não se sabe se disparado “pelo Assad, pelos rebeldes, pelos russos, pelos americanos ou pelo Daesh”), e achou Helsínquia um sítio simpático e acolhedor. E como não? A Helsínquia de Kaurismäki não é bem Helsínquia, de que ele aliás tinha pintado um retrato gélido em Luzes do Crepúsculo, o seu último filme finlandês; é uma versão de cinema, uma terra idealizada, um mundo onde praticamente toda a gente preservou um sentido fundamental de decência e solidariedade, onde a nobreza é uma questão de carácter, e onde por cada “skinhead” apostado em fazer mal ao herói Khaled se levantam quatro ou cinco em sua defesa (muito bonita, a cena em que os meliantes que atacam Khaled são corridos à pancada por um grupo de estropiados e sem-abrigo). 

É aí que a história de Khaled se cruza com a história de Wikstrom, interpretado por um velho kaurismäkiano, Sakari Kuosmanen. Wikstrom é um homem à procura de uma vida nova – farto de vender camisas, farto da mulher (fabulosa sequência inicial aquela em que ele sai de casa, numa série de planos rápidos e expressivos onde ninguém, nem ele nem a mulher, diz uma palavra, e percebemos tudo o que há a perceber sobre o casal), resolve juntar às economias os ganhos de uma noite no poker e comprar um restaurante. Será ele a acolher Khaled entre os seus empregados e, com a ajuda de um miúdo “hacker”, a garantir-lhe a documentação correcta depois de o pedido de asilo ser recusado. Porque também Kaurismaki podia ter como moral que “quando a lei não é justa a justiça passa antes da lei” (como se dizia no Filme Socialismo de JLG), e porque Wikstrom reconhece em Khaled um tipo de clandestinidade, ou de marginalidade, semelhante à sua: é um homem de outro tempo desencantado com os “tempos modernos”, o “retro” nos filmes de Kaurismäki não é uma questão de decoração mas antes a expressão de uma “filosofia” (e o restaurante serve para uma série de gags gourmet, oscilando entre o sushi, a comida indiana e o que quer que esteja na moda e sirva para os clientes irem aparecendo), e porque o carácter policial e metediço do “estado” ameaça um e outro da mesma maneira, como se vê na visita ao restaurante da espécie de ASAE lá do sítio. É sempre esse “o lado da esperança” em Kaurismäki, o lado dos que estão à margem, e por isso também não faltam os vários números de “rock” interpretados por velhos “rockers” finlandeses de rostos que hesitamos como descrever, se tristes se abençoados por uma espécie de felicidade “zen” que consiste no alheamento total, na absoluta marginalidade. Este é o humanismo de Kaurismäki, muito básico, muito idealista. E uma vez garantido, até pode brincar com os estereótipos da xenofobia e da islamofobia: “vamos lá beber uma cerveja ou lá que raio bebem estes infiéis”, diz a certa altura Khaled ao seu amigo iraquiano.

in  «Tempos Modernos», Ípsilon,  26 de Outubro de 2017.

domingo, 2 de dezembro de 2018

120ª sessão: dia 4 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Para Dezembro, temos encontro marcado com o finlandês que nos meses de Inverno se vem refugiar a norte deste nosso "jardim à beira-mar plantado", Aki Kaurismäki, e com o seu último filme, segundo tomo de uma suposta trilogia sobre a crise dos refugiados. O primeiro foi Le Havre, de 2011, e o segundo é O Outro Lado da Esperança, a nossa próxima sessão.

Em entrevista para O Observador, Kaurismäki disse que "a comédia é uma arma muito poderosa e é por isso que os ditadores de todos os tempos a odeiam e temem. É também uma maneira de chegar ao coração e à cabeça do público. Todos sabemos que esta situação é terrível. Porque é que alguém iria ver um filme que insiste nisto? Houve reacções semelhantes quando os refugiados do contentor em Le Havre vestem as suas melhores roupas quando saem de casa. Os africanos têm sempre roupa limpa. Quaisquer que sejam as condições em que vivam. É um bocadinho tacanho ficar chocado se um refugiado tem um telemóvel. É o único elo que os liga a casa. Já agora, será que esses críticos que escreveram isso pensam o mesmo de O Grande Ditador, do Chaplin?"

No seu blog, Some Like it Hot, Carlos Melo Ferreira escreveu que "o mais recente filme do finlandês Aki Kaurismäki, O Outro Lado da Esperança/Torvan tuolla puolen (2017), pode considerar-se inspirado na curta-metragem O Taberneiro que fez para Centro Histórico, encomenda de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Com um outro desenvolvimento e um outro enquadramento narrativo, evidentemente. Mas liga-se também, e até principalmente, como segundo tomo de uma "trilogia dos portos", com Le Havre (2012), o filme francês do cineasta, pela sua temática: os refugiados. 

"Após uma excelente abertura sem palavras, em que eles se cruzam pela primeira vez, tudo se passa entre um refugiado sírio, Khaled/Sherwan Haji, e o abastado dono de um restaurante, Wikström/Sakari Kuosmanen, que depois de largar o negócio e a mulher faz a sua pequena fortuna ao póquer numa das mais curiosas cenas do filme. O refugiado, que tem um amigo iraquiano, na Finlândia há mais tempo do que ele, tem as maiores dificuldades em ser aceite num país em que as autoridades consideram que nada de especial se passa no seu, contra o que dizem os noticiários televisivos mostrados logo a seguir. Mas tudo se torna fácil para ele a partir do momento em que consegue obter documentos de identificação falsos da qualidade dos verdadeiros numa cena bem humorada."

Já Inês Lourenço escreveu para o À Pala de Walsh que "(...) o essencial neste Toivon tuolla puolen (O Outro Lado da Esperança, 2017) está, por exemplo, na belíssima cena em que um grupo de sem-abrigo, saídos da escuridão como zombies anjos-da-guarda, se atiram a um bando de arruaceiros, à pancada, para defender um refugiado por eles atacado. Ou naquela outra em que a angústia silenciosa desse refugiado, Khaleb, sozinho num pequeno bar, é contrariada pelo histerismo de um músico de rua, equipado de guitarra e harmónica, que ao lado canta energicamente “I hold you, I hold you tight. We’ll make love through the night…”. O essencial de Kaurismäki é, por outras palavras, essa ternura que se manifesta de forma inusitada, no mais lacónico dos cenários, com um profundo humanismo que dispensa muita ginástica facial (há, aliás, um momento em que outro refugiado diz a Khaleb que não mostre grandes sorrisos, porque se arrisca a ser tomado por maluco). 

"Ao cineasta finlandês interessam as histórias “invisíveis” da realidade, como a de Tulitikkutehtaan tyttö (A Rapariga da Fábrica de Fósforos, 1990), que nasceu da unidade mínima de um fósforo. Conta ele que pensou apenas: quem fez o fósforo? Talvez uma rapariga. E por aí adiante. Do mesmo modo, a história de Khaleb, um refugiado sírio que procura uma nova vida na cidade de Helsínquia, é mostrada em Toivon tuolla puolen como uma realidade que se ignora, ou que se faz por ignorar (nomeadamente, negando que haja guerra em Alepo, de onde vem o jovem, e assim, negando-lhe asilo). Neste segundo título da trilogia portuária iniciada com Le Havre (2011), que já contemplava a situação de um menino imigrante clandestino, Aki Kaurismäki confronta muito diretamente os seus compatriotas com a situação dos refugiados. E fá-lo na mesma lógica narrativa de Le Havre, encontrando um benfeitor para Khaleb, desta vez num ex-vendedor de camisas (Sakari Kuosmanen) – alter-ego do realizador? – que decidiu comprar um restaurante prestes a ir à falência. Eis a delícia: este restaurante será o posto central da dialética do próprio Kaurismäki. A saber, o local onde a modernidade procura entrar, na forma de pratos de sushi, sob a vigilância de uma jukebox e de um poster de Jimmy Hendrix. É nesse espaço antiquado, onde se pratica o ato ilícito de acolher um refugiado, que reina a tragicomédia da kaurismakilândia, sempre a medir as personagens na sua humanidade e na relação com um tempo que não lhes diz nada – assim como um carro moderno nada diz ao realizador."

Até Terça!