por Joaquim Simões
É natural, então, que no conjunto da vasta obra poética e sublime de Ray, esta seja uma
entrada necessariamente mais leviana, uma intriga sherlockiana de contornos cómicos e que
adquire um caráter e humor singulares através da sua mistura única com a cultura e religião
hindu. Mas precisamente pela sua convenção de género, O Deus Elefante é também uma
oportunidade para Ray, o cineasta, aplicar a sua mestria do cinema como arte da narrativa,
desenrolando a clássica trama policial com um perfeito equilíbrio de humor e suspense
tingidos pela aura mística das paisagens do rio Ganges, cenário reminiscente do segundo
filme da inesquecível trilogia de Apu, Aparajito.
Um homem de negócios rico visita um antigo amigo, querendo-se informar acerca de uma
estatueta valiosa do deus Ganesh que sabe estar na posse do pai deste. As sombras na cara do
homem apresentam-no como o inconfundível vilão antes sequer das suas intenções serem
reveladas: obter a estatueta, a bem ou a mal. Quando Umanath se recusa a vender-lha apesar
da proposta aliciante que saldaria as suas pesadas dívidas, o corrupto Maganlal fica
descontente: normalmente não se digna a pagar pelas coisas que quer - pega simplesmente
nelas. Na noite seguinte a estatueta é roubada do cofre do pai de Umanath.
Felu, Topesh e Ganguly, amigo e escritor de policiais, chegam a Benares, uma cidade na
margem do Ganges, para uma estadia de férias durante a semana em que se celebra a Durga
Puja, um festival Hindu em honra da deusa Durga. O trio instala-se num hotel onde partilha
quarto com Gunamoy Bagchi, campeão mundial de culturismo e personagem que contribui
com alguns dos momentos mais engraçados do filme. O simpático gerente do hotel leva o trio
a uma cerimónia religiosa em torno de uma celebridade recente, um homem sagrado que
adquiriu essa reputação ao ter nadado, diz o gerente, desde Prayag a Kashi - uma extensão de
água maior do que o canal da mancha. Durante a cerimónia o homem sagrado recebe
oferendas dos homens mais prósperos da cidade, incluindo, é claro, o poderoso Maganlal.
Após a cerimónia o trio é introduzido a Umanath Ghosal e este, ao saber da profissão e
reputação de Felu Mitter, encarrega-o de resolver o mistério do roubo da estatueta preciosa.
Acabam-se as curtas férias e começa o trabalho de detetive; segue-se a inevitável sequência
de entrevistas aos habitantes da mansão Ghosal, onde todos são suspeitos. O patriarca Ghosal,
um velho teimoso e altamente culto em literatura policial conhece os truques todos das
histórias de detetives e não se deixa impressionar pela reputação de Felu - o próprio
resolveria o caso se fosse mais novo, diz o velho provocatório, numa cena que termina com
Felu a folhear um folioscópio que se encontra pousado em cima da mesa, um gesto que na
sequência da conversa adquire o caráter de uma pequena e irónica metáfora para o cinema
como também apenas um truque.
A história desenvolve-se dentro das convenções do género policial: as suspeitas, as pistas
incompletas, o momento de sobrolho franzido em que Felu liga as pistas com o seu poder
cerebral e a dedução genial que derrama nova luz sobre o mistério, elevando-nos a um novo
estado de conhecimento que por sua vez gera novas suspeitas e novos mistérios; a introdução
de perigo e ameaças quando Felu se aproxima da solução; uma perseguição pelas ruas
labirínticas de Benares, culminando num assassínio trágico (mas não demasiado): todos os
ingredientes de um thriller clássico estão presentes. Mas não é neles, claro, que reside a força
do filme. É, sim, na forma como este não se leva demasiado a sério, no espaço que deixa para
as referências a policiais e bandas desenhadas que inspiraram a história, e no humor ingénuo
que surge através dos personagens caricatos que nos acompanham durante o filme, não
podendo deixar de referir novamente Gunamoy Bagchi, o culturista que partilha estadia com
o trio e que fascina Ganguly com a obra de escultura que é o seu corpo, assim como o seu
conhecimento da complexa musculatura humana, onde cada músculo tem o seu próprio nome
- curiosidade que deleita o escritor.
Assim nos despedimos, por ora, de uma figura que marcou profundamente e para sempre a
história do cinema, um artista de múltiplos talentos (basta contar o número de vezes que o seu
nome se repete no início desta folha), e um homem que, não obstante a subtileza dos seus
grandes filmes, manteve sempre o gosto pelas histórias de heróis e vilões que nos cativam em
crianças e a partir das quais nasce o primeiro amor pelo cinema.
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