sábado, 1 de fevereiro de 2025
A Visita e Um Jardim Secreto (2022) de Irene M. Borrego
por Alexandra Barros
“Vais ser como a tua tia Isabel.” - É este augúrio, atirado em tom reprovador à realizadora do filme, pela sua mãe, que está na origem de A Visita e Um Jardim Secreto. Da tia Isabel nada sabe, excepto que foi artista e que a família conservadora a repudiou por desaprovar a vida que escolheu: estudar Belas Artes e tornar-se pintora. O meio artístico também a esqueceu, excepto Antonio López1, o único pintor da sua geração que a recorda. Como se explica o desaparecimento de uma obra reconhecida e aclamada no seu tempo? Antonio López não sabe se a pintora terá querido desaparecer ou se terá sido consumida pela voragem deste tempo dominado por Insta(ntes): “O presente é muito invasivo, exige muita atenção, muita, muita, é uma coisa avassaladora. O presente apaga tudo o resto, extingue tudo.” Apesar de Antonio López não saber nada de Isabel há 50 anos, o retrato sensível e poético que traça a partir das suas recordações, e ouvido em voz off, virá a revelar-se extraordinariamente apurado.
Com muitas reservas, Isabel abre a porta de sua casa a Irene, mas ela própria mantém-se fechada. Tal como o quarto da porta amarela. Nele guarda os seus quadros e ninguém está autorizado a aí entrar. É Antonio López quem descreve a Irene como eram as pinturas da sua tia: “Parecia que era muito verdadeiro o que ela fazia. Dava a sensação de não ter uma ansiedade que todos temos de mostrar trabalho, de estar aqui, de estar ali; como se para ela nada disso importasse. Era como se fosse alguém que estava ali de visita. [...] Tinha uns tons luminosos e secos, e umas formas muito simples. Mas também não era uma pintura geométrica. Era uma pintura um pouco áspera, muito honesta, muito autêntica e muito secreta. Era como ela, justamente como ela. Parecia uma espécie de jardim secreto. Acredito que ao entrar lá era possível encontrar coisas muito atraentes. Coisas bonitas. Apesar de parecer que ela não queria mostrá-las.”
Na casa de Isabel, Irene filma filas de ganchos ordenadamente colocados na parede de um corredor. Cada gancho encima um fantasma, uma patine ténue que denuncia a antiga presença de um quadro. Frustrada com essa e outras ausências, Irene pressiona Isabel a dar-lhe explicações. Sem se dar a conhecer, sem criar laços, sem esperar que Isabel se sinta pronta para lhe abrir as portas do seu universo íntimo e evocar memórias dolorosas, Irene quer obter respostas rapidamente. Em lugar de seguir o fio de pensamento de Isabel, atira-lhe perguntas que visivelmente a incomodam e irritam (porque é que os seus quadros não estão expostos em museus, porque é que está só, porque é que foi esquecida, …) e reivindica receitas para a vida e para o trabalho. Descontentes com esta pressão, os colaboradores de Irene querem parar de filmar. Torna-se penoso assistir ao filme e, neste ponto, perguntei-me como iria escrever fosse o que fosse sobre ele.
Ao crer que existe um fosso intransponível entre si e Irene, Isabel abandona as filmagens. Acaba por aceder ao pedido de Irene para que a ajude a fazer o filme, por respeito aos princípios pelos quais sempre se regeu: viver para a arte, tudo fazer pela arte, mesmo à custa de enormes sacrifícios e sofrimento pessoal. No interrogatório desastrado de Irene, Isabel entreviu a origem das inquietações da sobrinha e, num discurso em tudo idêntico à sua pintura - “áspera, muito honesta, muito autêntica”2 - aponta frontalmente o que tolhe Irene e as razões por que está num impasse. Irene julga entender e Isabel abre-lhe enfim o jardim secreto: “Anda! Vem cá, põe-te ao meu lado.” / “Daqui consigo ver.” / “Como te explico uma coisa desta sensibilidade a esta distância? Não sei se a esta distância consegues perceber. Tem que se estar aberta a tudo. Mas a essa distância, como é possível?”. É admirável como esta cena rima tão perfeitamente com as palavras ouvidas a Antonio López: “As montanhas grandes veem-se à distância, mas é preciso aproximarmo-nos das pequenas.”
As pinturas encerradas, atrás da porta amarela, deram lugar às assemblages. Talvez porque essa tenha sido a forma que Isabel encontrou para ultrapassar as limitações físicas, próprias da idade avançada, e “continuar a fazer, a seguir em frente”. As tintas foram substituídas por pedaços de madeira ou cartão, pequenas peças de plástico, tudo o que lhe chega às mãos, de tudo um pouco. Isabel seleciona, compõe, recompõe, rejeita, procura, alinha, acerta, aprova, cola: “Vejo as possibilidades que existem. [É preciso] estar aberta aos acidentes. Usá-los.” Mostra a Irene um cartão degradado que encontrou, molhou e arranhou: “Resultou nisto que é uma beleza! É bonito, não é?”. A beleza está nos olhos do observador3, e como não ouvimos a resposta, fica a dúvida: terá Irene conseguido encontrar as coisas bonitas que outrora Antonio López descobriu no jardim secreto de Isabel? O que viram afinal os olhos de Irene?
Insatisfeita com o que conseguiu captar, Irene continua a sua busca nos “baús” familiares. Inesperadamente, um vídeo, aparentemente prosaico, de uma cerimónia religiosa, traz para a luz o entendimento tão perseguido. Finalmente, está pronta para construir o seu filme. Ousadamente, Irene optou por tornar os seus desencontros com Isabel e todos os revés daí decorrente na grande força do filme, nele entranhando as errâncias necessárias para chegar a um resultado. Uma obra fractal que reflecte as questões que, segundo Isabel, estão envolvidas na criação de verdadeira arte (ou será arte verdadeira?). No final do filme, com uma mensagem dirigida a Isabel, Irene rasga um “casulo” que é simultaneamente seu e da sua obra. A metamorfose está completa.
São essas palavras finais que nos reconciliam com a Irene que atormentou Isabel e se mostrou incapaz de a compreender, por estar demasiado focada em si própria e nas suas dificuldades. A Irene que fabulosamente se auto-representou numa das mais reveladoras cenas dos (des)encontros com Isabel: enquanto afirma querer entendê-la, Irene filma-se, a filmar o seu próprio reflexo.
Quando, por fim, se vê com os olhos com que a viu Isabel, Irene tem a sua epifania. Nesse momento, percebe porque não conseguiu alcançar a mulher e a artista. Torna-se, enfim, capaz de a mostrar e, significantemente, de se mostrar. Um duplo retrato. Belo.
1 Pintor que está no centro do filme O Sol do
Marmeleiro, de Víctor Erice.
2 Palavras de Antonio López.
3 “Beauty is in the eye of the beholder.”, in Molly Bawn, de Margaret Wolfe
Hungerford, 1878
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