Para o tema Argumentários foram escolhidos dois filmes: Porto da Minha Infância, de Manoel de Oliveira, e João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, de Manuel Mozos. Ambos exploram a memória como matéria central da narrativa, recorrendo extensivamente a imagens de arquivo e a uma abordagem reflexiva do tempo passado, vivenciado através do cinema. A câmara funciona como um “órgão exossomático”, capaz de exteriorizar, registar e preservar a memória pessoal e coletiva, permitindo simultaneamente a revisitação do que foi experienciado.
Nestes filmes, o cinema transforma-se em um espaço de contemplação e documentação, em que a história, o afetivo e o subjetivo se cruzam, desvelando a dimensão íntima e pública da memória cultural. Como Roland Barthes sugere em A Câmara Clara (1980), a fotografia não regista apenas o passado, mas também antecipa o futuro, um futuro vivido, a condição inevitável do ausente ou do desaparecimento do “isso é” para um “isso foi”. Este “esmagamento do tempo” que, tal como Barthes, John Berger, em Modos de Ver (1999 [1972]), descreve, é o que torna a fotografia poderosa, pois coloca-nos em contato directo com a efemeridade da vida, enquanto simultaneamente conecta o passado com o devir. Assim, a fotografia não é apenas um registo visual, mas um meio de reflexão existencial sobre o tempo e a condição humana. O cinema detém a mesma capacidade, cujo fardo do fluxo temporal é impresso na imagem em movimento. Logo, o cinema é capaz de reconstruir a realidade, influenciando a nossa compreensão histórica e cultural.
Assim, estes dois filmes, a par dos dois vultos do cinema nacional (Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa), são testemunhos dos lugares e tempos passados que, como um ente vivo, retornam e devolvem a memória aos lugares transmudados. Como exemplarmente nos mostram, o cinema é uma arte capaz de transcender o seu propósito e destino imediato: é ao mesmo tempo, arquivo e reinvenção, memória e revelação, a própria história do cinema e história do Homem.
Em Porto da Minha Infância, Manoel de Oliveira regressa à cidade natal para a reencenar, como quem revisita em sonho a sua própria vida, onde o tempo e a memória coexistem no mesmo espaço. O Porto torna-se palco e personagem de uma autobiografia que é, ao mesmo tempo, um ensaio sobre o próprio acto de recordar, como nos indica a epígrafe que abre o filme: “Recordar momentos dum passado longínquo é viajar fora do tempo”.
O filme articula-se como um dispositivo da memória, onde o real e o imaginado se fundem num só. Oliveira convoca imagens de arquivo, fotografias e pequenas reconstituições teatrais, juntamente com imagens de alguns dos seus filmes ou, ainda, do primeiro filme português (Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança de Aurélio da Paz dos Reis, de 1896), misturando o documento e a performance numa estrutura que reflecte a própria natureza do cinema enquanto arte da representação e como documento com potencial histórico. Ao colocar o seu corpo e a sua voz em cena, o realizador transforma o gesto autobiográfico num acto de autoencenação, onde o cineasta-filósofo observa o seu passado à distância, mas também dentro da ficção que ele próprio constrói. E não é a própria imaginação e “re-imaginação”, através do acto de recordar e de contar “estórias”, parte constituinte da própria História do homem?
Ainda neste sentido, evocando os momentos da sua juventude vividos nas ruas do Porto com os seus companheiros de boémia, entre eles o escritor Adolfo Casais Monteiro, Manoel de Oliveira recorda os tempos da ditadura e a censura a que ambos foram sujeitos, mencionando o subsequente exílio de Monteiro e a poesia que dele derramou, resultado da saudade sentida e do repúdio ao regime Nazi e aos horrores da guerra que originara. Manoel de Oliveira relembra também os filmes que não pôde fazer, tal como Gigantes do Douro, obra interditada que remanesce apenas como esboço, existindo, contudo, como espectro ou fantasma invisível de um passado que, através da citação e da nomeação, se materializa e inscreve como “algo” real com presença histórica.
Porto da Minha Infância pode ser lido como uma reflexão metacinematográfica: Oliveira usa o cinema como espelho da memória e como meio para interrogar a relação entre sujeito, tempo e imagem. Tal como em Histoire(s) du Cinéma, o espaço fílmico torna-se o lugar onde o tempo se materializa, como montagem de fragmentos (de par com a memória humana?), compreendendo indícios de passados no presente, mas também composto por ausências, desaparecimentos, mortes e apagamentos, ou seja, espectros de outrora, presentes, por exemplo, nas ruínas da casa do cineasta, nos lugares extintos, como as pastelarias e o barracão que dera origem ao cinema Batalha, o High-Life. O filme propõe, assim, uma experiência do tempo que se aproxima da filosofia de Bergson: a percepção do tempo é como uma cadeia de instantes separados, momentos e eventos experienciados e recordados. Logo, é uma ilusão semelhante à do cinema, que cria a aparência de movimento a partir da sucessão de fotogramas estáticos. O passado não está atrás de nós, mas no presente, sempre disponível à evocação, seja através dos “lugares de memória” (conceito de Pierre Nora), seja através da própria imagem (material, visualizada ou representada).
No plano estético, o filme é exemplificativo do estilo de Manoel de Oliveira: o uso do plano fixo e da palavra como instrumentos de introspecção e reflexão, a composição pensada que expõe o quotidiano de forma poética e a relação entre o teatro e o cinema, são as marcas centrais da sua obra.
Mais do que uma evocação nostálgica, Porto da Minha Infância é um ensaio sobre a própria possibilidade de recordar através das imagens. O Porto que o cineasta filma é uma cidade feita de lembranças. Ao revisitar a sua juventude Oliveira revisita também a história: a sua, a nossa e a de uma arte que, como a memória, vive do que persiste, do que se perde e do se recorda.
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