quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Tornar-se Um Homem na Idade Média (2022) de Isadora Neves Marques



por António Cruz Mendes
 
O que é “natural”? O tema do filme de Isadora Neves Marques é introduzido pelas imagens da perplexidade de André face a um pedaço de carne produzida a partir das células estaminais de um mamífero. Para que esse bife existisse, nenhum animal foi morto. Mas, pode-se comer? É essa carne “natural”?
 
André deseja ser pai, mas os seus espermatozoides não se revelam suficientemente “competentes” para engravidar Mirene, e Vicente quer ser mãe de um filho de Carl. No caso das situações abordadas pelo filme, os “papéis” tradicionalmente atribuídos aos homens e às mulheres, habitualmente representados pelos símbolos não parecem adequados. Um homem pode não poder ser pai e uma mulher pode não ter um útero. Porém, esses “papéis”, o da paternidade e o da maternidade, podem ser assumidos à revelia das noções tradicionais de sexo e de género.
 
A habitual associação de sexo e género foi há muito tempo questionada por Simone de Beauvoir que, fiel ao princípio da filosofia existencialista que nos diz que “a experiência precede a essência”, afirmou, em O Segundo Sexo, que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Beauvoir inspirou a chamada “2ª onda” dos movimentos feministas, defendendo que a mulher, não possui uma essência determinada pela biologia, mas está “condenada à liberdade”. Poderá sempre aceitar ou recusar o papel que lhe foi prescrito pelas ideias dominantes na sociedade onde nasceu. Só por “má-fé” se pode escusar da responsabilidade de decidir acerca da sua própria vida. No filme, nem Carl, nem Mirene se revelam particularmente interessados em tornarem-se pai ou mãe. Aceitam essa possibilidade apenas por decidirem aceder à vontade dos seus companheiros.
 
O caso de Vicente é diferente e remete-nos para as ideias de Judith Butller acerca de sexo e género. A filósofa americana recusa a distinção entre uma ideia de sexo, que nos remete para o corpo, e uma ideia de género, que nos envia para normas e papéis sociais, ideia que se encontra ainda presente em Simone de Beauvoir, e considera que também o sexo é uma realidade ambígua, fluída e susceptível de variações. Demonstram-no os exemplos de pessoas transgénero, transsexuais ou não-binárias. Ou seja, também a definição de sexo, no entender de Judith Butller, não é neutra, mas resulta de um discurso ideológico que pode e deve ser desconstruído.
 
Todas estas questões perpassam em Tornar-se homem na Idade Média. Há uma obra da artista norte-americana Barbara Kruger onde se lê: “Your body is a battleground”. Essa batalha é travada entre diferentes sujeitos políticos e culturais. Vicente, Carl, André e Mirene enfrentam-na de forma lúcida e autodeterminada. Porém, não o fazem com alegria. Um sentimento de melancolia atravessa todo o filme, que termina com imagens de um mar revolto que se estende até ao infinito. 
 
 
 

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