An Affair to Remember não é apenas sobre amor cupidíneo, fortuito e inconveniente, que nos arranca de uma vida aparentemente estável e harmoniosa para um mar de aflições e percalços. O melodrama é tratado num quadro de inúmeras ramificações, levantando e apontando questões importantes, não só para a época em que o filme estreou, como também para a nossa – convocando a sua intemporalidade.
Um destes aspetos, genialmente trabalhado, – não fosse Leo McCarey o realizador de Duck Soup – é o humor: observamo-lo associado ao sentimento amoroso, diluindo as fronteiras entre o cómico e o trágico. As tiradas, expressões e atitudes de Nickie Ferrante e Terry McKay, especialmente no contexto público e munidas de caráter cómico, vão desenhando os seus perfis simultaneamente frontais e inibidos, já que se trata de camadas de máscaras repetidamente sobrepostas com o fim de proteger as suas personas sociais, manipulando o que dão a ver aos outros. Porque, sendo ambos membros de uma elite privilegiada, por todos reconhecíveis, a guerra interna travada em torno das aparências é acompanhada de uma outra contra os tablóides – o que nos leva a pensar este outro elemento, absolutamente central, no filme.
O seu início não permite enganos: vários jornalistas internacionais abordam, com alarido, o recém-anunciado casamento entre Ferrante e Lois Clark, herdeira milionária. Já no barco, os olhos alheios surgem perseguidores e exigentes, nos jantares e nos passeios noturnos, condicionando uma relação proibida, mas florescente, enquanto provam o impacte do burburinho social e do voyeurismo – sempre explorando a comicidade que daí advém –, ao mesmo tempo criticando a fachada social.
A escolha do barco como cenário propulsionador dos (des)encontros entre os dois amantes não surge despropositada. Rodeados de mar, o afunilamento da relação é adensado pelo seu isolamento, concentrando toda a tensão entre o íntimo e o público, o encoberto e o evidente. É de notar a beleza da cena do primeiro beijo, onde apenas vemos um enlace de braços e pernas nas escadas, as caras permanecendo envoltas em anonimato. O momento em que os dois saem do barco numa jornada por Villefranche é decisivo. Terry penetra na intimidade de Nickie, ambos mergulhados num mundo privado e familiar, rural, regido por Janou, avó deste último, figura que representa a intuição, a sensibilidade e a beleza. Mantendo o seu estatuto simbólico ao longo de todo o filme, aliás com repercussões para o seu desenlace, é ela quem permite a abertura à honestidade e à confissão, num lugar onírico, afastado da vivência social e das suas restrições. É de observar o contraste entre este cenário calmo e reconfortante e a borbulhante e impassível cidade porvir, repleta de manipulações e disfarces, mas onde Terry e Nickie, em permanente conflito com a sua interioridade, tentam procurar o que de verdadeiro existe entre todo o tumulto urbano.
Não abdicando de um lado kitsch, tal como notou João Bénard da Costa[1], ainda assim resiste como uma desconstrução da superficialidade da classe alta, denunciando a fragilidade inerente às artimanhas do fingimento, ao mesmo tempo que revela a imprevisibilidade e força do sentimento humano, ao qual é impossível escapar.
[1] https://www.cinemateca.pt/CinematecaSite/media/Documentos/2021-05-06_AN-AFFAIR-TO-REMEMBER.pdf

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