quarta-feira, 27 de abril de 2016

Red River (1948) de Howard Hawks



por João Palhares

Depois dos cavalos europeus se espalharem pelo continente americano e servirem os índios nas suas grandes caçadas e viagens, chegaram os primeiros colonos com éditos do governo para ocupar as terras a Oeste, onde os índios seguiam as manadas de búfalos nas grandes pradarias. Encontraram obstáculos naturais que os fizeram tremer e vacilar e a história do Oeste é a história da travessia por essas muralhas áridas e, à primeira vista, impenetráveis. Também é uma história de grande violência e, por muito que os “caçadores de mitos” da actualidade o neguem, o cinema soube contá-la. Há grandes filmes que mergulham a fundo nos mitos e os narram como se verdade fossem (Jesse James de Henry King e They Died With Their Boots On de Raoul Walsh), há grandes filmes que os questionam e os desmascaram (Fort Apache de John Ford e I Shot Jesse James de Samuel Fuller), como há grandes filmes que se documentam e tentam ir de encontro à verdade, falando de um tempo de transições complexas e determinantes (o Canyon Passage que aqui já se viu e o Red River que hoje se vai ver). 

Red River é o primeiro western de Hawks e narra a primeira movimentação de gado pelo Caminho de Chisholm, abordando ao mesmo tempo – e através dessa maravilhosamente concisa introdução – a migração para Oeste, a presença centenária dos espanhóis e dos nativos americanos e a violência da conquista do que hoje se chamam os Estados Unidos da América. Depois da Guerra Civil, o Estado do Texas, por ter estado isolado do conflito, manteve intactas as suas grandes manadas (uma mistura de raças, ao longo dos séculos, que deu no longhorn do Texas), enquanto o Norte as viu ser dizimadas, oferecendo as quantidades absurdas de dinheiro que motivaram essas imensas conduções que atravessaram a América, nos séc. XIX e XX. Red River descreve isto tudo sem romantismos e com uma grande sobriedade e quando acabamos de o ver, vemos o que foram essas grandes conduções, tal como as descreve Raoul Walsh na sua auto-biografia, Each Man in His Time, outro americano que além de contar a História do seu país, das grandes migrações em The Big Trail às próprias conduções de gado em The Tall Men, foi mesmo um cowboy e sentiu isso no pêlo. Despeço-me concedendo-lhe a palavra: 

“(...) O capataz do Texas tinha uma manada de cerca de seiscentas vacas e novilhos longhorn misturados e de todas as espécies, com bezerros aos pés e outros a caminho. Até para os meus olhos inocentes, era aparente que íamos demorar a chegar ao Rio Grande, com tão pouca gente e com tamanha viagem diante de nós. Tinha razão. Foi quatro meses depois de termos deixado Veracruz que o rio apareceu. Por essa altura já me tinha tornado um encarregado amadurecido, capaz de me fazer valer à frente dos outros cavaleiros (cinco em número além de James e todos do  Sul do Texas). O rapaz que queria ver um cowboy era agora um. 

“Quaisquer ideias românticas que tivessem ficado dos meus livros do Oeste desapareceram no nosso primeiro dia. Eu fui enviado para a traseira para empurrar o gado que se atrasava e engolir poeira durante as próximas duas semanas. Pela altura em que o capataz me deixou cavalgar no flanco, tinha comido uma porção valente do nordeste mexicano. 

“Também descobri que embora conseguisse aforquilhar um cavalo, atirar uma corda, enrolar um cigarro com uma mão e dizer palavrões com os melhores, não sabia nada sobre movimentação de gado. O conhecimento veio da maneira difícil, ao afastar a manada dos centros populosos onde o gado disperso local se podia juntar e arranjar problemas; ao ficar de vigia durante a noite; ao aprender a cantar e a falar para a manada que descansava e bater nas minhas calças, para que o gado não se assustasse com o silêncio em que o uivo de um coiote os podia lançar em debandada. Há truques em todos os ofícios e havia mais na movimentação de gado para além de cantarolar “Vamos, canito, vamos”. Além de manter a manada a mexer-se havia a patrulha à frente para encontrar água e pastagem, viagens à parte até cidades no caminho para regatear por mantimentos, um novilho ou uma vitela para matar e tirar a pele, carne para ser cortada e estendida por cima das proas das carroças para secar em carne curada (beef jurkey), cavalos para tratar e calçar, vitelas caídas para transportar em selas até descobrirem as patas. Entre estas e outras tarefas lá conseguíamos arranjar algumas horas de descanso para nós. 

“Recordando essa movimentação, ainda me pergunto porque é que mais vaqueiros não perdiam a razão. Ou talvez sentissem como eu: preferiam cuidar de uma manada de gado a fazer qualquer outra coisa. Quando julgassem que já não podiam aguentar mais, podiam sempre sair dos seus cavalos e saltar com os chapéus.

“Com o vento por trás, o gado acabava por andar demasiado rápido e cansar-se e recusar a ir para a frente. Contra o vento, podiam percorrer três quilómetros por dia. Às vezes não faziam progresso nenhum, quando o vento soprava e moía gritando e carregando sobre cavalos e cavaleiros. Doze a quinze quilómetros era andar bem.

“Quando chovia, como acontecia muitas vezes, os cavaleiros ficavam encharcados ou punham os impermeáveis, por baixo dos quais suavam e se molhavam de qualquer maneira. Eu lembrei-me duma regra da minha mãe de tirar toda a roupa húmida o mais rápido possível. Seguir este conselho resultou muitas vezes em cavalgar de corpo nu, o que era duro para as partes de baixo durante o tempo necessário para as minhas calças e a minha camisa de sobra secarem por cima da carroça da comida, quando o sol aparecia depois da tempestade. Além de lesões da sela, tinha que aguentar o gozo dos outros condutores por ser um tipo da cidade, mas nunca tive uma recaída por arrepios e febre como alguns deles tiveram.

“Isto tudo e mais fazíamos nós por trinta por mês e “achado”. O “achado” eram feijões, às vezes bacon bolorento que me dava cólicas de estômago, e café forte o suficiente para derreter a colher. Era uma vida dura, mas eu tinha-a pedido. Anos mais tarde, iria receber cem vezes mais só para dizer às pessoas como devia ser feito. Antes de chegarmos ao rio, estava castanho como um índio e duro como uma pedra.”

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