quarta-feira, 20 de abril de 2016

The Lusty Men (1952) de Nicholas Ray



por José Oliveira

The Lusty Men surge na carreira de Nicholas Ray logo após uma série de biscates em filmes menores e antes da descoberta alucinante da cor em Johnny Guitar. A partir de um romance de Claude Stanush, o escritor Horace McCoy (David Dortort também colaborou num modo nada usual de escrever em Hollywood), celebrizado por They Shoot Horses, Don't They?, utilizou a sua experiência e uma pesquisa exaustiva sobre os "rodeos" americanos para conferir ao guião um realismo e um detalhamento que logo de início se revela bastante cru. E que assim se manterá, sobretudo porque o realizador vai com isso até ao fundo, chocando com outro tipo de crueza e desencanto, o da vida dos homens e das suas mulheres que proporcionam esse tipo de espectáculo onde a coragem e o medo convivem com a loucura, em pulsões incontroláveis como os mais duros vícios ou os chamamentos desconhecidos. 

Depois das fanfarras e das descrições, da superação física e do barulho, aparece Robert Mitchum, Jeff McCloud chamado, que logo notaremos ostenta aura e contornos de mito. Bruscamente, sem preparação, percebemos que esse resistente de poucas palavras quer largar o seu pão de cada dia e tentar um regresso a casa. O palco onde passou os últimos anos fica vazio, a banda e os fanáticos já regressaram aos seus lares quentes, o vento sopra sem rumo, pedaços de papel e poeira tornam-se companheiros de viagem de alguém que já parece muito só, desprotegido, frágil. Muito céu aberto, horizonte e abstracção nos enquadramentos que começaram tão furiosos, e um silêncio que se irá manifestar no decorrer da viagem, quando a coisa começar a piar fininho, nos instantes graves que só Ray assim captou. De boleia em boleia lá chega à infância, para confirmar que também ela se recusou a permanecer. 

Apanhado o seco soco no estômago vazio que nos diz que "We Can't Go Home Again", Jeff McCloud vai conhecer um casal carregado de sonhos e de sede, mesmo que o desejo e a meta seja o que ele acabou de saber improvável. Inexplicavelmente, ou não, veremos depois na confissão de amor total e em filigrana a Susan Hayward - Louise Merritt, a esposa – decide lançar-se novamente às ferras com a jovem esperança Wes Merritt, um Arthur Kennedy que anseia o selo adulto. De terra em terra, agora como treinador, o passado de Jeff vai-se desvendando tão solitário e aparentemente inconsequente como a confirmação das expectativas em relação ao seu pupilo. O dinheiro vai entrando nos bolsos de todos, Wes começa a ser tentado pelo que um dia tentou Jeff e ele não disse que não, a esposa começa a fartar-se das esperas terríveis e do seu papel acessório, e são todas essas tensões que lentamente vergam o triângulo que pareceu perfeito. 

Uns não se importam de planar na irresponsabilidade e de se manterem perpetuamente ávidos, crianças adultas que tratam o perigo por tu, e que se são mitos essa mitologia brilha na escuridão. Outros crescem rapidamente e na vertiginosa ascensão e apelo cimeiro não conseguem voltar a olhar para trás e para o que realmente importou. Os momentos mais tristes do filme são aqueles em que logo depois do carinho proibido e à frente de todos que Jeff dá a Louise, lhe fazem ver a sua condição original e calado volta para a arena mortal, novamente como actor, numa assunção da existência plena que convoca a tragédia. Louise a pegar no tronco nu de Jeff no seu último suspiro é um cúmulo do erotismo e do amor supremo, para além de todas as normas e atestados, culminância de uma grande história de amor escrita nas estrelas, essas testemunhas privilegiadas, universais e omnipresentes. No plano final o casal larga tudo e dirige-se para a casa finalmente ganha, talvez até ao fim dos seus dias. Objectivo cumprido, amargura sem limites. 

Mas se a tragédia aterrou secamente, não há como negar que tudo é resolutamente belo. Triste e belo, como a luz incaracterizável das manhãs ou dos crepúsculos que abrem e fecham a longa jornada, vacilando de afirmação. Triste pois talvez Jeff com um bocadinho mais da inteligência que ele diz possuir pudesse ter amanhado a sua casa e descansar como o guerreiro retirado. Belo e certo pois a fidelidade e a entrega parecem realmente da ordem da inocência. Nicholas Ray quis, para além de tentar perceber deste modo a fatalidade inerente a cada ser, retratar essa imensa camada de gente que sonha pelo seu poiso mas que não se rende no seu orgulho. Ele, que tantos destes conheceu e destas terras áridas calcou aquando das suas demandas etnográficas, convocou ainda o Hawksiano Arthur Hunnicutt, de braço dado com uma filhota felicíssima, para mostrar que os indestrutíveis de As Vinhas da Ira estavam certos, mesmo que com as cicatrizes eternas. 

The Lusty Men foi sempre um dos filmes mais amados por Nick, e no final da sua vida pô-lo mesmo no topo. Rebeldes sem causa, a aventura de olhar um mundo refeito pela câmara nova e de o desbravar em conjunto, os ternos guerreiros de que sempre falou João Bénard da Costa, e um desgosto profundo pelos abismos da perdição se escancararem na beleza da ousadia. Nicholas Ray apagou-se à procura da melodia do olhar, em constante escavação, recordando nessa consumição o Robert Mitchum que amou o fruto proibido depois de tanto não saber o porquê e voltou ao seu trilho. Para lá das estrelas, no amor à mulher e no sorriso ao pupilo dissidente, a um passo da batalha final. Muito duros e ao sabor da ventania. Todos perderam, mas uns podem ter ganho mais do que outros, sem troféus. The Lusty Men dá razão a todos os demasiado fieis, tremendo por todos os lados. Completamente vivo, talvez por isso Nick tanto o amou nos instantes derradeiros.

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