quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

The Bells of St. Mary's (1945) de Leo McCarey



por João Palhares

Quando fez Os Sinos de Santa Maria, Leo McCarey já tinha em seu nome várias curtas com Stan Laurel e Oliver Hardy, dupla formada pelo próprio McCarey e conhecida entre nós como Bucha e Estica (algumas dessas curtas são Sugar Daddies, 1927; Should Marry Men Go Home?, Habeas Corpus e We Faw Down, de 1928; Liberdade, Wrong Again e Big Business, de 1929), um dos melhores filmes com os irmãos Marx (Duck Soup, 1933), um conjunto invejável de comédias bem sérias e bem subversivas (Ruggles of Red Gap, 1935; The Awful Truth, 1937; Once Upon a Honeymoon, 1942), um melodrama que se tornou a base para todos os chamados "filmes românticos" a partir dos anos sessenta (Love Affair, 1939) e um dos mais belos filmes do mundo (Make Way for Tomorrow, 1938). Também já tinha ganho rios de dinheiro e de Óscares com Going My Way (1944), primeira aventura do padre O'Malley interpretado por Bing Crosby, que cantava com os miúdos desse filme que "if you don't care a feather or a fig, you may grow up to be a pig." E foi ainda com o dinheiro de Going My Way que McCarey fundou a Rainbow Productions, que usou para produzir e fazer soar Os Sinos de Santa Maria (1945), continuação encantadora e arrebatadora do filme do ano anterior. E o filme que hoje vamos ver. 

“Se se produz uma coisa, outra coisa se desencadeia, inevitavelmente,” disse McCarey aos Cahiers. “Tal como o dia e a noite se sucedem, também os acontecimentos se encadeiam, e é sempre assim que desenvolvo uma história, com uma série de incidentes e de acontecimentos que se sucedem e se provocam.” A citação pode parecer uma tautologia, coisa em que qualquer realizador acredite e que ponha sempre em prática, motivação criadora para qualquer filme (e se se disser “qualquer bom filme”, talvez haja um fundo de verdade nisso), mas ganha maior sentido quando se sabe que McCarey começou em comédia ainda no estúdio de Mack Sennett, como supervisor de continuidade das histórias, tornando-se depois escritor de gags para Hal Roach. Como se sabe, o trabalho no estúdio de Mack Sennett (por onde passaram também Charles Chaplin, Roscoe Arbuckle ou Frank Capra) era feito em exteriores e a velocidade relâmpago, aproveitando tudo o que acontecesse na cidade durante o dia (entre corridas de carros, procissões comemorativas ou movimentações em massa variadas) com a construção de uma história à volta das imagens que se captassem. Os resultados nem sempre eram os melhores, na Keystone, mas ajudaram McCarey (como Chaplin, também, que cristalizou esses ensinamentos num método completamente livre e impensável quase para qualquer outro cineasta) a perceber que não era a trama de um filme que lhe interessava mas sim o encadeamento lógico da acção. Trabalhar as consequências do mais pequeno gesto, pegar numa dada situação e tentar descobrir o filme a partir das possibilidades que ela oferece, sem metas ou ideias preconcebidas. 

"Não se sabe nada sobre uma história até se começar a filmar," disse McCarey a Frank Nugent (o jornalista e crítico de cinema da revista Time que foi contratado pelos estúdios para deixar de dizer mal de filmes na imprensa, como acabou por descobrir quando viu que o deixavam num escritório sem nada para fazer). Vários dos actores que trabalharam com McCarey confessaram, numa altura ou noutra, não saber o que estavam a fazer durante a rodagem, dizendo também que havia constantes mudanças de diálogos, reescritas no dia anterior, e interrupções de trabalho quando o realizador chegava a um impasse criativo. Como com Chaplin, esses impasses eram interrompidos pelas grandes revelações, resultando certamente nos maiores cumes dramáticos dos seus filmes, cenas como a despedida dos Cooper na estação de comboios em Make Way for Tomorrow, a recitação do eterno “Gettysburg Address” de Abraham Lincoln por Charles Laughton em Ruggles of Red Gap, a descoberta do destino de Deborah Kerr por Cary Grant entre lembranças e atenção a recusas bizarras mas inevitáveis em An Affair to Remember, noutra milagrosa véspera de Natal. Além de serem tratados absolutos de realização, decididamente com os ângulos de câmara e o encadeamento de planos certos, estas cenas fazem-nos mergulhar num profundo oceano de ambivalências, tornando às vezes insuportável a sua revisão. Como escreveu Tag Gallagher no seu texto sobre Going My Way, “McCarey serve-se da câmara para registar o que não pode ver.” O impronunciável, acrescentaríamos. 

O mundo da igreja, das escolas paroquiais e os problemas quotidianos de padres e freiras dirão pouco a muita gente, além de não serem o que faz de Sinos de Santa Maria um filme fabuloso, por si. Não, o que o torna um filme fabuloso é a atenção que McCarey presta aos seus actores, mais uma vez, enquadrados longa e deliberadamente (e as palavras valeriam também para Liberdade, Ruggles of Red Gap, Make Way for Tomorrow, Once Upon a Honeymoon, Going My Way e An Affair to Remember) para nos revelarem de forma permanentemente renovável (e o efeito não esmorece em revisões) as consequências e as implicações de uma troca de olhares, para nos fazer entender pequenos mal-entendidos (o gato dentro do chapéu no princípio do filme), para nos tornar cúmplices de avanços e recuos ditados pela consciência. A interpretação e o percurso da enorme Ingrid Bergman neste filme é exemplar, nesse sentido. Podemos ver grande parte do filme iludidos, presos ao que sentimos em relação a certas fardas e uniformes, a certas movimentações e exercícios ordenados aos hábitos e aos votos de alguns, à austeridade que representam; mas quando a irmã Mary-Benedict desce as escadas para abandonar a escola, num plano muito longo e pausado que nos permite participar das suas hesitações e dos seus receios, o véu institucional cai irreparavelmente e situa-nos na mais simples e tocante das histórias e das relações entre seres humanos. Com o grande plano também muito longo e muito revelador sobre o padre O'Malley de Bing Crosby, onde se intersectam todos os grandes e pequenos gestos deste grandioso filme, impelindo-o ao gesto que dá sentido a toda esta aventura, dá-se o milagre. 

Hoje pode-se chamar-lhe "um milagre de Natal".

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

72ª sessão: dia 19 de Dezembro (Terça-Feira), às 21h30


Durante o grande ciclo do cinema americano, falhámos um dos seus grandes vultos, Leo McCarey. Também falhamos Friedrich Murnau, Allan Dwan, Andre De Toth, Michael Curtiz, Billy Wilder, William A. Wellman, George Cukor, Jean Renoir, Josef von Sternberg, Barbara Loden, Charles Laughton, William Wyler, Victor Sjöström, Joseph L. Mankiewicz, Tod Browning, Edgar G. Ulmer, Hugo Fregonese, James Whale, Rouben Mamoulian, Ida Lupino, Edward Ludwig, Max Ophüls, Richard Brooks, John M. Stahl, Stanley Donen e Blake Edwards, para nos ficarmos só pelos mais sonantes, mas faremos justiça a McCarey com a exibição de The Bells of St. Mary's, que será a nossa próxima sessão.

Bells of St. Mary's (Os Sinos de Santa Maria, entre nós) é a continuação de Going My Way, filme da glória de McCarey e primeira aventura do Padre O'Malley de Bing Crosby. Nele se contemplam as vidas e os desafios quotidianos de padres e madres superioras, com uma atenção e um carinho que nunca deixa de nos tocar nem de nos surpreender. A prova suprema para um grande cineasta é fazer com que os seus espectadores se interessem por mundos por que não sentem grande afinidade, despojar as instituições dos seus símbolos e apresentar os seus representantes como seres de carne e osso. Como nós, caso o tenhamos esquecido. Aposta ganha: o feitiço é lançado e ficamos convertidos. "So proudly ring out, while we sing out, hail, hail, hail!"

Robin Wood, que tanto nos continua a inspirar, era um grande admirador do realizador americano e escreveu no St. James Film Directors Encyclopedia organizado por Andrew Sarris que "os anos de formação de McCarey como artista foram passados a trabalhar com os grandes palhaços do período do mudo tardio/sonoro inicial: Harold Lloyd, Mae West, W.C. Fields, os irmãos Marx e (especialmente) Laurel e Hardy, de quem foi "supervising manager" durante muitos anos, realizando pessoalmente duas das suas melhores curtas (Liberty e Wrong Again). A sua carreira posterior abrange (com igual successo) a extensão inteira da comédia americana, da screwball (The Awful Truth) à romântica (An Affair to Remember). A característica própria do realizador parece ter sido um compromisso para com uma anarquia espontânea e individualista que nunca abandonou inteiramente, acompanhado por um ceptismo consistente em relação a instituições e formas de organização social restritivas, um cepticismo que produz atrito e contradições até dentro dos projectos aparentemente mais inócuos e conservadores. Normalmente, Going My Way e The Bells of St. Mary's são totalmente rejeitados pela intelligentsia como pios e sentimentais, simplesmente, mas a representação deles do Catolicismo não é nem simples, nem fácil, nem acrítica, e é fácil de confundir qualidades como a ternura e a generosisade com sentimentalismo, em contextos em que se espera encontrá-lo de qualquer forma (como filmes de Hollywood sobre padres cantores). Claro que a celebração do individualismo é uma força motriz da ideologia americana, mas, empurrado longe o suficiente em certas direcções, pode expor contradições dentro dessa ideologia: a sua resposta opressiva a muitas formas de individualidade, por exemplo."

Louis Skorecki, que entrevistou McCarey durante a sua digressão com Serge Daney pela América, escreveu para o Libération sobre o realizador e o filme da nossa próxima sessão (e foram duas coisas que o ocuparam bastante, como podemos ver aqui): "Menos conhecido que Frank Capra (em quem a sua carreira faz muitas vezes pensar), Leo McCarey é sem dúvida o maior experimentador, em termos de comédias e de melodramas, da história do cinema. Temos mais uma prova disso com estes fabulosos Sinos de Santa Maria de 1945, em que a religião se mistura alegremente ao mais radical humanismo. Antigo assistente do subvalorizado Tod Browning entre 1918 e 1923, McCarey inventa a parelha Laurel e Hardy, supervisiona o seu genial Putting Pants on Philip (1929), assina o melhor filme dos irmãos Marx, Duck Soup (1933), antes de realizar, de Ruggles of Red Gap (1935) a An Affair to Remember (1957), passando por Good Sam (1948), vinte obras-primas absolutas que juntam inextricavelmente o riso às lágrimas.

"Voltando a pegar na bela personagem do Padre O'Malley, esse padre cantor que vai tão bem a Bing Crosby e tinha lançado com sucesso em Going My Way, dois anos antes, McCarey confronta-o com a intransigência de um promotor imobiliário e com a ingenuidade de uma freira adorável, interpretada por Ingrid Bergman, que Selznick empresta à RKO para a ocasião. O cineasta experimenta aqui com felicidade vários dos seus «truques» familiares. Lembramo-nos dessas cenas mágicas em An Affair to Remember em que os amantes, Deborah Kerr et Cary Grant, jantavam de costas um para o outro sem se darem conta, separados por uma fina divisória. Aqui, o cineasta divide o seu plano em profundidade, brincando um gatinho malicioso com o chapéu de palha de Bing Crosby, igualmente inconsciente do que se está a passar nas suas costas. Nos dois casos, é o riso da assistência que avisa, pouco a pouco, o herói da comédia que acontece sem o seu conhecimento. 

"No meio destes grupos de freiras surrealistas, McCarey instala ao mesmo tempo um clima de alegria e essa sensação de mal-estar (o desconforto admirável de que falava Noames em 1965 nos Cahiers du Cinéma) que é o centro de todos os seus filmes. Ainda como em An Affair to Remember, uma heroína promete curar, in extremis. Não por amor a um homem mas por amor a Deus. É sublime."

No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles escreve que "depois do triunfo imprevisto de Going My Way, (O Bom Pastor), McCarey, não encontrando argumento digno desse filme, decide dar-lhe uma continuação. Retoma a mesma personagem do padre interpretado por Bing Crosby e, desta vez, envia-o para cumprir o seu sacerdócio entre religiosas num lugar exactamente igual ao de Going My Way: um oásis de calma e serenidade situado no coração da grande cidade. Nesse eremitério, além disso ameaçado de extinção, toda a espécie de problemas humanos, que não perderam nenhuma da sua actualidade (separação dos pais, sentimento de abandono das crianças, fracasso escolar, etc.) vão procurar e encontrar uma solução pacífica e harmoniosa. Os Sinos de Santa Maria é um Going My Way menos movimentado no qual a ênfase posta sobre o aspecto feminino da vida monástica e sobre as virtudes marianas do catolicismo dá à obra uma doçura e uma limpidez extra. Uma dramaturgia versátil, invisível, superiormente hábil e inventiva, mostra a acção sob a forma de um rosário de cenas muito longas que parecem independentes umas das outras por terem a sua duração, conteúdo e emoção próprios. Na verdade, elas estão profundamente ligadas entre si pela sua inspiração e finalidade comuns : pôr em prática uma concepção sorridente da espiritualidade e da bondade como catarse permanente, como remédio providencial para todos os males físicos e morais da humanidade. Cada uma dessas cenas (o discurso inaugural de O’Malley diante de uma assembleia de freiras às quais a visão de um gato a brincar com o chapéu do padre faz rir ; a lição de boxe dada a uma criança pela irmã superiora ; a representação do Natal interpretada por bebés, etc.) parece uma improvisação genial, criada no presente puro da rodagem por um realizador cuja felicidade de expressão (e em McCarey esta fórmula encontra verdadeiramente todo o seu significado) é igualada apenas pela firmeza das convicções. Menos abundante que em Going My Way, a música, seja de inspiração religiosa ou profana, banha o filme. O padre O’Malley dirá a propósito de um personagem, exprimindo aí directamente a opinião de McCarey : «Eu amo qualquer pessoa que ame a música.» A personagem interpretada por Bergman foi inspirada numa das tias de McCarey, co-fundadora do convento do Imaculado Coração em Hollywood, e ele deu o nome dela, Benedict, à heroína. Bergman encontra aqui o seu mais belo papel, no sentido em que não se imagina ninguém capaz de o interpretar no lugar dela e de o levar a tal grau de florescência e plenitude. A cada visionamento, o filme situa o espectador nessa zona afectiva de si próprio em que o riso e as lágrimas comunicam, em que a distância entre si e as personagens é abolida, porque entra em contacto sem esforço com o que as personagens têm de melhor e mais benéfico dentro delas. De qualquer maneira, os filmes de McCarey não têm outro objectivo : «Gosto que se ria, gosto que se chore,» dizia ele, «gosto que a história conte qualquer coisa e quero que o público se sinta mais feliz à saída da sala do que estava quando entrou.» 

"Nota: Pode-se ler no fim do capítulo VIII da autobiografia de Ingrid Bergman redigida parcialmente na terceira pessoa («Ma Vie», Fayard, 1980) : «Foi um filme feliz, durante a rodagem do qual se desenrolou a tradicional entrega dos Óscares atribuídos pela Academia das Artes.» No ano anterior, ou seja, em 1943, Ingrid tinha sido designada pela sua interpretação como Maria em Por Quem os Sinos Dobram, mas tinha sido suplantada por Jennifer Jones (A Canção de Bernadette). Agora era «nomeada» por Meia Luz. Antes de ser proclamada a Melhor Actriz, Bing Crosby e Leo McCarey obtiveram respectivamente o Óscar de Melhor Actor e de Melhor Realizador por O Bom Pastor. Quando recebeu, por sua vez, o seu Óscar, Ingrid agradeceu à assembleia nestes termos : «Estou profundamente agradecida por esta recompensa. E estou particularmente feliz por a receber neste momento, porque estou agora a rodar um filme chamado Os Sinos de Santa Maria com o Sr. Crosby e o Sr. McCarey e tinha mesmo receio que ao me verem chegar ao plateau de mãos vazias, amanhã, não me dirigissem mais a palavra!»"

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Apresentação de "O Círculo Vermelho", por Rui Nogueira

Apresentação de "O Círculo Vermelho", por Daniel Curval

Le Cercle Rouge (1970) de Jean-Pierre Melville



por José Oliveira

Jean-Pierre Melville nasceu há cem anos, e foi este um dos pretextos para vermos em Braga uma pungente amostra da sua obra diversa e bastante complexa; o homem que nasceu Jean-Pierre Grumbach e acrescentou o Melville para homenagear o grande escritor americano poderia ser ainda uma continuação óbvia e certificada para o grande ciclo de Cinema Americano que levamos a cabo no último ano e meio, mas mesmo isso seria redutor. Se Melville sempre confessou o fascínio do cinema, da literatura e da cultura norte-americana, tudo transcendeu numa inquietação permanente. Le silence de la mer foi a sua primeira longa-metragem em 1949 – três anos depois de se ter estreado com os dezoito minutos de 24 heures de la vie d'un clown, um dia na vida de um palhaço e no universo do Circo, uma das suas enormes paixões, tal como Jacques Tati, de que voltaremos a falar – passada numa França ocupada pelos Nazis durante a segunda grande guerra mundial, intrincado poema a três onde um pai, uma filha e um intruso jogam e revertem o tabuleiro da sobrevivência e da dignidade, estacando e esfriando o sangue a favor de um estatuário iniciático e salvador que expõe geometricamente o lamentável da incomunicabilidade humana. Les enfants terribles foi a colaboração com Jean Cocteau, que impressionado com o extremo realismo e surrealismo no mesmo bloco e na mesma pedra do trabalho anterior, o convidou para o ajudar a adaptar uma novela da sua autoria; diz-se que é mais um filme de Cocteau do que de Melville, mas sendo Orfeu exactamente do mesmo ano e ainda ressoando sentinelas e gelos anteriores, não será assim tão fácil separar, precisamente, uma consanguinidade. Bob le flambeur, já de 56, traz para Paris os gangsters, gamblers, e muitas ambiências do filme policial americano, com um Roger Duchesne crepuscular e desencantado já abrir para as circularidades e as disciplinas de Le samouraï, o seu gesto e a sua construção mais indecifrável. Só que a partir daqui ainda não é só policial, crime, robótica e estilo, como se tem colado oficialmente a este grande cineasta misterioso, pois Léon Morin, prêtre, de 1961 busca finamente e despojadamente – lembra Robert Bresson mas com esgar fundo e assumido – sinais de transcendência, fazendo-nos ouvir e ver o que já ouvimos e vimos muitas vezes mas de forma reveladora: «Não acredito em Deus» diz Emmanuelle Riva, a perdida, a Jean-Paul Belmondo, o cura, redescobrindo este: «Se existissem provas, todos acreditariam. Não haveria a necessidade de acreditar. Você saberia, entenderia e veria. Não existiria fé aqui em baixo, aqui seria o paraíso». Le doulos, dois anos depois, conjuga a visceralidade das ruas e do crime com a ciência dos desenhos animados e da física, quimera exacta que Melville perseguirá até à obra-prima final e romântica que é Un Flic, com Catherine Deneuve a acender outra diafana luz neste universo contrastado. Podemos então dizer que numa parte da sua obra Melville busca o Deus lá de cima e noutra parte o Deus em cada um de nós, aqui na terra; o grande mistério da fé e o grande mistério dos homens; O Círculo Vermelho, o filme que hoje veremos, já de 1970 e o seu penúltimo, tem nos rostos, nos movimentos e nas decisões dos seus seres já o resultado de tais embates, com uma forma de uma precisão fora deste mundo onde o tempo literalmente se faz matéria em observação pasmosa, e uma emoção que se apresenta em elipse e no presente dorido, com o peso de uma existência inteira prestes a findar. Tempo em grande-plano, sem nunca estugar o passo por questões de estilo, e o que fizemos nesse tempo, o que fizemos ao tempo, rugas e golpes comuns. 

Melville completou cem anos e mantiveram-se os discursos críticos oficiosos e despachadores: voltou a falar-se muito de estilo e de gabardinas ao vento, de géneros e da realização glacial, da técnica pasmosa e muito pouco da carne e do arrepio; as personagens de O Círculo Vermelho são extremamente comoventes pela solidão que com elas experimentamos e que remete para a solidão que existe em cada um de nós, na superfície ou bem lá no fundo, pronta a surgir quando menos damos conta. Certa vez, não há muitos anos, como se fosse hoje, um professor catedrático disse num comboio a um seu ex-aluno, num encontro não combinado: «sou um personagem dos filmes do Melville... acordo às cinco da manhã, procuro um táxi, ando nestes comboios de um lado para o outro.... sempre em alta rotação e sem grande calor... faço o que tenho a fazer... tenho tudo o que quero... mas sou como um fantasma». O aluno e poucos na terra sabem que se trata do mais precioso e valente entre os professores. Os personagens de Melville são dos homens que já calcaram muito e já viram muito, e que sendo fieis demais a um código, a si próprios, preferem a sombra genuína à luz ilusória, os cinzentos do amanhecer aos dourados da fama. Bastaria quererem e teriam todo o espectáculo na palma da mão, feitos dessa massa, vivem o que tais nem sonham. 

O Círculo Vermelho começa sem palavras, com o furor do mundo a extravasar cada plano, a lutar com ele e com a sua descrição, as expressões faciais e o cansaço a dizerem tudo; muito próximo dos silêncios reveladores de Tati e de Bresson do que da ironia de Sergio Leone ou de Quentin Tarantino. Logo se percebe que a relação entre Bourvil e Gian Maria Volontè, o inspector e o preso quase fugitivo, já é de longa data, quase tudo o que é preciso saberem um do outro nesse contexto já sabem, os olhares tudo contam, e assim o silêncio é de ouro. Paralelamente um Alain Delon triste como a morte sem aviso ou como uma manhã desconsolada de inverno sem remissão, e mais por essa tristeza do que pelo diálogo vamos logo notar que vai apostar tudo no golpe que lhe oferecem. Um homem que passará o tempo do filme a recusar mulheres e a oferece-las, primeiro em fotografias ao largar a cadeia e depois a um ex-amigo, logo depois no flirt do café da manhã – momento de infância num segundo – depois uma madura nua atrás duma porta que se irá desmultiplicar nesse número musical atravancado, até lhe oferecerem a rosa encarnada das portas do céu ainda possíveis que ele recusará e entregará ao fugitivo que o acaso ou a predestinação juntou. 

O Círculo Vermelho tem a precisão dos relógios infalíveis e o vento do acaso, pondo em perfeita prática as prodigiosas leis da física e as engenharias mais fascinantes urdidas por um mestre dos mestres com a flutuação do existir e do imponderável, juntando não só os condenados de Delon e Volonté mas também o alcoólico Yves Montand que se condenou a si mesmo; comovente figura que recusa a parte do golpe que os tornará ricos e os libertará para simplesmente agradecer a confiança básica de qualquer relação verdadeira, numa beleza de último suspiro vivido por todos os outros aproveitados e desperdiçados. Mas se quem prepara o golpe forma um trio, não dá para deixar em claro que esse inspector vivido ou sobrevivido também aflitamente por Bourvil padece das mesmas causas e tormentos dos que caça, fugindo da humilhação da honestidade, samurai no meio dos seus gatos e já sabendo há muito da certeza do Dosteievskiano chefe da polícia: «Ninguém é inocente. Todos os homens são culpados. Eles nascem inocentes, mas isso não dura muito. (...) É a sua doutrina: o crime vive em nós, só nos basta querer alcançá-lo». Assim, o que todos buscam não são tanto as jóias ou os fugitivos mas a execução do trabalho e do destino que nos completa como seres-humanos por inteiro. Nem que seja à custa da solidão mais cruel, sem Deus, em carne-viva, longe das mulheres e do amor. Ficando o amor-próprio como absoluto, um pequeno rumor, quase nada. 

Para que se perceba definitivamente que o estilo, ou seja, a forma, só assim é para se ver em toda a grandeza que a técnica do cinema permite a complexidade extrema dos encontros e dos destinos: logo após a saída da prisão, quando Delon vai a casa de alguém pedir dinheiro e este lhe quer oferecer tudo, percebe-se que eles os dois, mais a tal da mulher atrás da porta, têm a mais intrincada das narrativas e das paixões, sem ser necessário recorrer ao sublinhado da palavra evasiva, basta as cabeças baixas, os dissimulares dos olhos ou das bocas, a vergonha consumida...; a confiança indestrutível como numa história de amor perfeita que se dá entre Delon e Volonté, o primeiro salvando-o da polícia sem ainda o conhecer, o segundo baixando a arma pela rectidão impossível de imitar, em redenção mútua, sem perguntas de verificação; o profissionalismo e empenho absolutos de Montand na sua função tendo em vista o agradecimento da salvação dos infernos e não a riqueza, empenho como reza e doutrina particulares; a sequência do assalto, acumular de detalhes tratados como soma total e contemplação do momento puro que é o caminho da salvação dos executantes, o seu devir e a sua eternidade; a liturgia, entre azuis celestiais e o ar rarefeito e de corpo presente, desse instante completo que é o ponto e o firmamento da razão de ser de cada um; ainda a personagem de Montand, a mais bela de todas: quase a sair do vale de chamas, talvez já no intermédio purgatório, chega rapidamente ao paraíso com a sua arte e a sua ciência, o seu Deus ele mesmo; as mulheres quase totalmente ausentes mas nunca acessórios, querubins de canto de igreja que tanto velam cada pecado como relembram cada paraíso; Volonté a poupar a vida a Bourvil na cena final, sem explicação nem nexo imediato, para este último logo depois terminar Montand e escancarar outro passado em ferida incurável nesse palco triste como o rosto de Delon onde só sobreviverá o mais velho, que talvez vá carregar todos os fardos; e a confirmação da inocência impossível, com tudo a encerrar-se e a cerrar-se na solidão do mais antigo pela noite adentro, rumo aos seus gatos e à sua consciência. Nesse círculo vermelho, as razões e os merecimentos para todos. 

O Deus em cada um ou um Deus para suplicarmos; a fidelidade aparente ou a fidelidade superior; um amor negociado ou o amor para lá de todas as regras. A facilidade do esperado ou os desígnios insondáveis. E assim Jean-Pierre Melville, mergulhado nas questões mais profundamente existencialistas, mergulhando nas noites contrárias ao dia e nas noites da alma, tudo nos pergunta. É só escolhermos. Os nossos Parabéns.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

71ª sessão: dia 14 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


O terreno era fértil, mas para homenagearmos Jean-Pierre Melville acabamos por escolher O Círculo Vermelho. Que é um mecanismo perfeito de realização cinematográfica, da gestão dos timings à exploração espacial.

Mas Melville sempre foi muito mais rico e surpreendente do que as imagens de marca que lhe colaram: as personagens complexas, discretas e comoventíssimas; os silêncios lancinantes e graves; a observação e contemplação da acção; enfim, uma liberdade transcendente.

Teremos duas apresentações em vídeo: Rui Nogueira, o mítico cinéfilo e autor da obra Le cinéma selon Melville : Entretiens avec Rui Nogueira, que conheceu bem o realizador e esteve presente na rodagem do filme que vamos ver; e Daniel Curval, outro cinéfilo apaixonado e autor do blog UNRACCORD.

Foi em Le cinéma selon Melville que o realizador declarou a Rui Nogueira que "como lhe disse, eu queria escrever um guião para um filme de assalto muito antes de ver The Asphalt Jungle, antes até de ouvir falar dele, e bem antes de coisas como Rififi. Acho que também lhe disse que era suposto eu ter feito Rififi? Não? Bom, fui eu quem convenceu o produtor a comprar os direitos: ele anunciou que era eu que ia realizar o filme, e depois não o vi mais durante seis meses. Finalmente, o filme foi feito por [Jules] Dassin, que teve a extrema cortesia de dizer que só o fazia se eu lhe escrevesse a dizer que estava contente com o combinado. O que era o caso.

"Então eu queria fazer um filme de assalto desde 1950, mais ou menos, à volta da altura em que acabei Les Enfants Terribles. Eu queria que O Círculo Vermelho fosse perfeito, claro, mas ainda não sei se vai ser; acho que os elementos são suficientemente interessantes para tornar boa a sequência, e o tempo dirá se coloquei o assalto no contexto certo ou não. Também é uma espécie de condensação de todos os filmes tipo-thriller que fiz anteriormente, e não facilitei as coisas para mim próprio de forma nenhuma. Por exemplo, não há mulheres no filme, e certamente que não é tomar o caminho mais fácil fazer um thriller com cinco personagens principais, nenhum dos quais uma mulher."

Chris Fujiwara, num artigo para a Criterion, reteve-se sobre a ausência das mulheres no filme e escreveu que "um exemplo pequeno e significante da subversão insistente do filme em relação às mulheres aparece perto do fim do filme. A rosa que uma florista dá a Corey na casa de Santi pode ser um sinal de simpatia ou um convite sexual; de qualquer das maneiras, exprime a escolha e a acção da mulher, e a sua oferta da rosa (outro círculo vermelho, já agora) é o único acto obstinado e auto-expressivo realizado por uma mulher no filme inteiro. Na cena seguinte, depois de Corey e Vogel dizerem adeus no apartamento de Corey, Vogel, ao pegar na rosa e rodopiá-la distraidamente, apropria-se do signo feminino e transforma-o num sinal da sua devoção a Corey. 

"Esta mancha brilhante de cor oposta aos tons suaves da mise en scène de Melville lembra-nos do hermetismo do trabalho de Melville. O prazer dos seus filmes, como notei mais acima, tem pouco que ver com o sucesso deles como espectáculos de acção. No entanto, se os filmes de Melville são filmes de suspense, esta palavra devia ser tomada num sentido diferente do habitual. O suspense melvilliano suspende os detalhes e os ornamentos normais, deixando apenas alguns símbolos esotéricos e uma colecção de cenários rarefeitos esvaziados para o combate, testes de habilidade, e vitórias silenciosas. O suspense em Melville é o poder do cinema em arrancar a vida do tempo, pará-la, removê-la para um espaço abstracto, e torná-la um objecto para contemplação."

Já Louis Skorecki, para o Libération, escreveu que "ao repetir demasiado que Jean-Pierre Melville é um grande cineasta, perde-se de vista o porquê do comentário. Rever deslumbrado o Círculo Vermelho dá, pelo menos, algumas pistas. Começando pela propensão melvilliena em naturalizar os seus actores como um naturalista empalha feras ferozes ou, melhor, este ou aquele animal doméstico, um gato, um cão, que o seu proprietário procura voltar a ver quase vivo. É neste quase que assenta a ambiguidade friamente calorosa da direcção de actores de Melville ­ ou daquilo que lhes toma o lugar. Aqui, através das interpretações estilizadas (e quase extintas) de Delon e Montand, somos ferozmente encerrados por qualquer coisa como uma virilidade policial levada à incandescência e com o olhar obstinado de uma baleia branca saída de Moby Dick. Capitão Ahab da homossexualidade disfarçada frigidamente sob um impermeável imaculado demasiado novo, Jean-Pierre Melville mostra as suas obsessões como outros lançam uma garrafa ao mar ou um arpão desesperadamente sozinho. Aqui, além de uma interpretação quase agonizante de Bourvil, desfigurado em polícia abelhudo e demasiado duro, vamos reter as sequências alucinadas em que Montand, invadido por ratos que rastejam pelo seu corpo, ameaçado por salamandras e serpentes, acorda com frieza de um sonho demasiado real. E se Resnais, na sua mise en scène admiravelmente contida do Meu Tio da América, recorreu a roedores gigantes conduzidos por Laborit em homenagem distorcida a este gangster de Melville?"

Até Terça!

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

De Setembro a Dezembro, no Lucky Star


O Lucky Star - Cineclube de Braga vai fazer uma pequena pausa entre os meses de Setembro e Dezembro deste ano de 2017, podendo interrompê-la para sessões pontuais se achar que se justifique. Garante, no entanto, uma sessão natalícia no final do ano. Entretanto, publicará vídeos inéditos no seu canal do Youtube e preparará o ano de 2018 - que chegará, esperançosamente, com muitas surpresas. Agradecemos ao público de Braga e aos cinéfilos portugueses e de além-mar que nos têm seguido e apoiado das mais variadas maneiras e também nas mais variadas plataformas. 

Deixamos, ainda, o link para uma bela conversa em Locarno sobre o cineasta Jacques Tourneur, de quem exibimos Canyon Passage, western mágico e eterno, a 29 de Março de 2016. Nela participam vários conhecidos do nosso cineclube, como Miguel Marías, Jean Douchet, Pierre Rissient e Chris Fujiwara. Passou despercebida entre concursos e passadeiras vermelhas sem servir como um auxiliar (ou, pelo menos, uma desculpa) para a produção de artigos nos nossos jornais e nos nossos suplementos culturais que se debruçassem sobre o lugar do cineasta na história do cinema. Continuamos a achar que não se descortina acertadamente o presente sem ter uma ideia mais ou menos precisa do que foi o passado, do que já se descobriu, do que já se inventou. Quanto do que se apregoa como novo ou revolucionário nos tempos que correm foi já arriscado e mostrado por Jacques Tourneur (e só para nos cingirmos ao exemplo que temos em mãos, que podíamos falar de muitos outros cineastas)?

Pela nossa parte, continuaremos a dar notícias por aqui, pelo Facebook e pelo nosso canal do Youtube, desejando a todos um óptimo resto de ano e esperando que não se esqueçam de ver bons filmes. Até breve, numa destas nossas Terças-Feiras!

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Apresentação de Lucky Star, por Cauby Monteiro

Apresentação de Lucky Star, por Miguel Marías


(podem-se activar ou desactivar as legendas portuguesas no vídeo)

Apresentação de Lucky Star, por Chris Fujiwara



(podem-se activar ou desactivar as legendas portuguesas no vídeo)

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por José Oliveira

Começamos o ciclo de cinema americano com Charles Chaplin, mas não com a ternura de um City Lights, pois tratou-se de uma carta-branca a Pedro Costa e ele escolheu Monsieur Verdoux, um dos mais cruéis e lúcidos ajustes de contas com os crimes de alguns humanos que certamente não mereceram outra coisa. Foi Costa que disse, cito de memória, que foi preciso alguém – Chaplin – ter sofrido muito e ter visto muita coisa terrível para pôr em marcha aquela máquina arrasante que é Verdoux. E assim já entramos de cabeça no que foi o primeiro século do cinema de Hollywood, dos que trabalharam nas suas margens mas fazendo como o fizeram pois existiu essa montanha de todos os sonhos e de todos os pesadelos, ou os que lutaram contra ela e daí retiraram o produto do embate. De resto, alguns ainda não terão recuperado das guerras no terreno de Phil Karlson ou da solidão arrepiante de Nicholas Ray, da solidão gelada de quem tudo teve nas mãos e largou por conta e risco aceites do Jack Nicholson de Five Easy Pieces ou das guerras do dia-a-dia dos vampiros de Fritz Lang; como superar a subversão diabólica da natureza com que o esfarrapado humanista Sam Fuller sempre lutou, as máquinas carregadas de excesso de amor de The Tarnished Angels, a perdição dos que descobriram o seu dom logo no leite materno à imagem do Newman e do Cruise nos filmes de Robert Rossen e de Martin Scorsese? Enfim o Apocalipse tão antigo como no fio cortante do presente na monumental obra de Francis Ford Coppola. 

E assim foi o cinema americano... documento precioso e preciso das movimentações humanas e das maquinações do poder e da glória – e mesmo quando existiram os tão empolados pontapés na História ou as liberdades poéticas tudo isso só reforçou a loucura de existir, coexistir e sobreviver – onde uma grande Guerra Mundial poderia ser travada na cabeça de um indivíduo – Fuller outra vez, inevitavelmente, no Shock Corridor reservado a quem viu a luz cegante de certas verdades soterradas – ou no meio do total espectáculo que ela – a maldita guerra – também tende a ser cada vez mais, nos deixaram ficar com o ponto de areia minúsculo que o homem como o bicho é no cosmos, o filme de Coppola passando uma hora como um noir dos anos 40 ou na mesma medida do grito de deserto do genial e terrorífico The Incredible Shrinking Man. E assim foi o cinema americano... que tantas vezes só no movimento arrasante pode esquecer ou vingar o movimento arrasador que o presente excedia de realismo e de ficção. A Lilith de Jean Seberg que Rossen velou na sua despedida deste mundo foi tanto a primeira mulher criada pelo diabo como o ser frágil e sensível demais que não alinha nos jogos da vaidade e do dinamismo dos mercados actuais, que não compreende o que quer dizer pró-actividade nem consulta as agências verdadeiramente mabuseanas das agências de rating.... essa Lilith está mesmo ali bonita e pequenina e com todo o futuro azul e solar à sua frente no mais belo jardim e tudo lhe pode acontecer – Rossen, e tantos outros, nos fizeram ver isto através das imagens e dos sons saídos não só da carrne e do sangue e do suor como também do encontro e do desencontro das almas tacteantes. O fantasma carnívoro e omnívoro da luz e da química do cinema.

Mas hoje temos a última sessão, o fecho momentâneo. E urge redimir, limpar, extrair sujidades e cancros e culpas. Redimir misérias sem culpas. Urge, depois de um caminho e de uma via-sacra com tanta tortura e com tanta paixão – o Cinema Americano também é paixão incomensurável e um segundo cadente num filme de Ray pode valer a eternidade – ficar com uma imagem acabada e absoluta da luz do amor e da temperatura da coragem. E Frank Borzage, o realizador deste Lucky Star que deu nome ao nosso cineclube por sugestão de Pedro Costa, foi o mais puro entre os muitos anjinhos da guarda da nossa companhia que o cinema já teve ao canto da almofada. O que é bastante complexo de sustentar por palavras, pois só numa imagem de fusão perfeita entre o homem e a mulher e o mundo (e Deus) no final de Lucky Star pode ser sentido e percebido sem margem para dúvidas. O encontro das almas prometidas, merecidas, inseparáveis, neste mundo ou noutro qualquer, na chamada vida ou na imaginada morte. E complexo pois vários filmes de Borzage levaram ao cúmulo o erotismo, o surrealismo ou a metafísica. Pois as águas que banham e inundam Mary Duncan e Charles Farrel em The River são também correntes furiosas de esperma; a baixa combustão geral de George Brent mesmo depois de encontrar o seu arcanjo em Living on Velvet parece ligada a niilismos recentes que nada suscitam de bom, longe das dádivas sublimes; enfim, os brilhos enviesados e moldados à medida das leis sociais dos pares de corpo presente em The Shining Hour remetem para as bocarras elegantes de Ernst Lubitsch. Não entrando a fundo nas associações e simbolismos que também fundiram a filigrana da carne e a massa do espírito com o arrasador e camaleónico desejo e que assim cederam delícias aos surrealistas dos anos 20 e por aí fora.

Mas mesmo nisso tudo Borzage continua a ser o caminho, a verdade e o sagrado. O caminho, a verdade e a luz. Os rios orgásticos são olhados assim mesmo, sem ironia aprendida, existindo inteiros e reveladores na cidadela original. O desânimo e o apagamento e a negridão de quem viu a morte só deixam entrever uma parte mais bonita que é a ontológica, lá atrás no espanto da inocência e do choro do primeiro olhar, saindo da noite imemorial; os jogos de bastidores e de aparências vão acabar por destapar tudo e fazer surgir a nudez que não se veste, ainda no Éden. Com Frank Borzage, a redenção pura da criança corada, a claridade dos altos estelares a descer sobre o véu arrasante dos baixos mais do que baixos, o beijo na orelha oferecido a um dos seus três amados por Margaret Sullavan em Three Comrades, ser puro demais e de uma consumição instantânea porque na corda e na magia perfeita do pleno. E Margaret Sullavan é Borzage, é o cinema de Borzage e é a beleza e o romantismo. Quem se quiser purificar, que olhe a carne e a aura dessa menina e mulher nos sentidos mais plenos. Obra da criação e criadora esculpida tanto de carne comum como de luz inexplicável, rimando com os corpos que aparecem literalmente em luz no inexplicável Lucky Star. Lucky Star é o cinema pois todo o seu sentido pleno de emoção e de compreensão se atinge no escuro da sala rasgada pela luz que irrompe lá do alto. Inexplicável, incompreensível e plena.




por João Palhares

Como é óbvio, não podíamos terminar este ciclo de cinema americano que nos levou dos anos 30 ao nosso século e depois de volta para os anos 20, sem mostrar o filme que nos deu o nome, julgado perdido durante décadas e milagrosamente re-encontrado nos anos 90 nos cofres do Filmmuseum da Holanda: Lucky Star de Frank Borzage. É o terceiro filme do par tão estranho como enternecedor que Charles Farrell e Janet Gaynor formaram de final dos anos 20 a inícios dos anos 30, depois de 7th Heaven e Street Angel, ambos também de Borzage (“ela, palmo e meio de altura, “piccina, tanto piccina, troppo piccina”, como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (...) Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra”, diz o grande João Bénard da Costa no seu texto sobre o filme). Trabalhariam juntos, ainda, com Raoul Walsh e Henry King, mas foi com Borzage que sonharam com todos os céus só com o chão como amparo, que se olharam um ao outro alma na alma (se se disser “olhos nos olhos” não se começa sequer a desvendar o mistério, já que aqui a alma testa os próprios limites do corpo - não é o próprio Farrell que diz em 7th Heaven que "now that I'm blind, I can see that"?), que percorreram e ultrapassaram mil obstáculos para voltarem a estar um com o outro.

Foi no mundo de Frank Borzage, filho de um pedreiro de uma área agora italiana do antigo Império Austríaco e de uma empregada suíça de uma fábrica de seda (quem reconhecer neles alguns dos seus heróis, não estará totalmente enganado). Mundo de transfigurações e transmigrações, fusões místicas de amor e entendimentos e partilhas telepáticas, de seres imensamente maiores que os seus corpos, em que o próprio estúdio de cinema se transformava a pinceladas de luz e à frente dos nossos olhos numa realidade total e transcendente. Em I've Always Loved You, as personagens de Philip Dorn e Catherine McLeod separavam-se depois de um concerto em que ele tentava esmagar o piano dela com todos os instrumentos da sua orquestra como se se batessem ou fizessem amor, encontrando-se noutro momento transmigratório e telepático pela música que tocavam e como se se ouvissem um ao outro, apesar de quilómetros os afastarem. Em Liliom, Charles Farrell descreve a Rose Hobart o comboio que só ele e nós vemos a atravessar o cenário para o levar a prestar contas ao Criador e voltar para se redimir dos seus pecados da forma mais insólita e inesperada possível. O coração sabe o que quer e vê verdades e amores profundos escondidos em acções aparentemente mal intencionadas e egoístas. Em The Mortal Storm, o mal nazi nascia numa taberna em confrontos palpáveis entre a acção e o silêncio, entre o medo e a razão - com certeza a ilustração mais verdadeira para com a experiência interior dos alemães que se recusavam a sucumbir a esse mal e pagavam por isso.

Mas como o que nos interessa agora é outro filme de Borzage, Lucky Star apresenta-nos primeiro a personagem de Janet Gaynor, Mary, antagonizada por uma mãe que tem mais quatro filhos pequenos além dela. Vemo-los a descer as escadas, lembramo-nos de um que não as desce tão rápido como os irmãos e ainda sobe, devagar, antes de as descer finalmente e ir ter com os outros. Não haverá um sentido para esta acção, é só uma prova de que Borzage abraça os imprevistos e os acidentes e os deixa entrar pelos seus planos dentro. A personagem de Charles Farrell, Tim, trabalha muito perto da pequena fazenda de Mary, conhecem-se quando esta lhe vai levar a ele e aos seus colegas algum leite a que vemos ter misturado água para ganhar mais uns trocos (primeira das suas vigarices que vemos no filme e que tanto irritam Tim), tentando depois enganar o patrão de Tim ao esconder uma moeda que este lhe tinha dado por baixo do seu sapato. Tim percebe a patranha e dá-lhe uma sova. Alistam-se todos para combater na Primeira Grande Guerra. Tim regressa com as pernas paralisadas e com redobrado interesse em arranjar coisas que se estragaram ("Never thought much about broken things, until I got smashed up myself. That gave me the idea," diz ele a um amigo depois de ter estado um ano em França e outro no hospital). Não sabe que até ao filme acabar é ele quem vai ser transformado e arranjado pela força redentora do amor, numa travessia terrível pela neve e um abraço belíssimo por cima dos carris que prometem auspiciosos recomeços para si e para Mary.

Ver estes filmes de Frank Borzage (que era muitíssimo admirado, pelo menos pelos seus pares: Samuel Fuller disse que "Frank Borzage foi um dos maiores realizadores americanos de todos os tempos", Sergei Eisenstein equiparava-o a Chaplin e Stroheim, era o realizador favorito de Terence Fisher, junto a John Ford) ajuda-nos com certeza a perceber a geração de cinéfilos dos anos cinquenta e sessenta, que vivia o cinema tão intensamente como a vida. Apetece citar de cor o juiz benévolo de Karl May de Hans-Hürgen Syberberg, que antes do julgamento decisivo desse escritor alemão falava de um mundo interior muito maior que o das montanhas, dos mares e das planícies que se estendiam por esse planeta fora. Um mundo das ideias, um mundo dos sentimentos, um mundo dos sonhos. Podia ser a mitologia dos romances de Karl May, podia ser o Quinto Império de Pessoa. Podiam ser o mundo e os filmes de Frank Borzage...

segunda-feira, 24 de julho de 2017

70ª sessão: dia 25 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


E aí está finalmente a obra que deu nome ao nosso Cineclube. O filme que fechará (provisoriamente, sempre) o grande ciclo de cinema americano. O mais belo e puro filme do mundo realizado pelo mais secreto e fascinante cineasta que o cinema já conheceu, o inigualável Frank Borzage, fonte de todas as dádivas.

Para falar disto, só João Bénard da Costa: «Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star, existe, talvez, tão desarmantemente complexo. Só os grandes sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser tão fundamentalmente transgressor. Nunca ouvi uma história de almas tão belas como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosos e tão vulneráveis como estes. O milagre daqueles corpos - corpo de Janet Gaynor, corpo de Charles Farrel - é igual ao milagre daquelas almas. Só a carne ressuscita.»

Próxima terça-feira, dia 25 de Julho, na velha-a-branca. Com apresentação em vídeo de vários companheiros que foram passando pelo Lucky Star, de Miguel Marías a Francis Vogner dos Reis. Tragam a família toda!

Martin Scorsese, no prefácio de um livro de Hervé Dumont sobre Frank Borzage, Frank Borzage - The Life and Films of a Hollywood Romantic, escreveu que "há uns anos, vi bastantes dos filmes de Borzage todos de seguida - tantos quanto consegui encontrar. E fiquei verdadeiramente espantado. Fiquei espantado pela mestria de Borzage, pela sua paixão, e pela sua extraordinária delizadeza. Sempre que ele filma duas pessoas a apaixonarem-se, como em Lucky Star ou 7th Heaven ou A Farewell to Arms, ou duas pessoas já apaixonadas a protegerem-se uma à outra de um mundo hostil, como em Man's Castle ou The Mortal Storm, ou muitas outras variações no meio, a acção acontece no que eu chamaria de tempo dos amantes - cada gesto, cada troca de olhares, cada palavra dita conta. Borzage estava tão sintonizado com as nuances entre pessoas que era capaz de apanhar emoções que simplesmente não se vêem nos filmes de outra pessoa. Por exemplo, aquelas cenas entre Kay Francis e George Brent no coração de Living on Velvet - ela está-lhe a fazer a vontade, a deixar-se levar por ele, porque não quer perturbar o seu equilíbrio frágil; ele parece tranquilo, mas pode-se ver que sob a superfície ele está desfeito emocionalmente, que podia quebrar a qualquer momento. Muitas destas cenas são representadas em grande plano, e a intensidade dos sentimentos entre Francis e Brent é esmagadora. Mannequin também é muito comovente, por razões diferentes. A personagem de Joan Crawford acredita num ideal de amor, e Spencer Tracy sabe que consegue cumprir esse ideal mas espera pacientemente para ela o perceber: O que podia ter sido um melodrama banal nas mãos de outra pessoa qualquer torna-se um estudo sobre duas pessoas motivadas pela fé, que finalmente se juntam como se fossem um só. Till We Meet Again é outro filme que teria sido completamente banal nas mãos de outra pessoa qualquer. Ray Milland é um piloto americano cujo avião se avaria na França ocupada, e Barbara Britton é uma jovem noviça que o ajuda a escapar. Borzage leva a relação só a um nível abaixo de um caso de amor genuíno, e o facto deles não poderem agir sobre os seus sentimentos - ela dedicou a sua vida a Deus e ele é casado com filhos - torna esses sentimentos mais pungentes a esse ponto. No fim, ela martiriza-se a si mesma para o salvar, e é como se fosse a grande consumação do seu caso de amor. Há uma força espiritual nestes filmes, e em todo o melhor trabalho de Borzage - porque para ele, o amor é santificado, intocável pelo mundo exterior. Passa através de todos os obstáculos, e é mais poderoso que qualquer mal. Sente-se o poder do amor de Stewart e Sullavan depois de partirem, envergonhando as pessoas que os traíram, no final de The Mortal Storm. Em I've Always Loved You, o vínculo entre Philip Dorn e Catherine McLeod é transmitido através de uma série de grandes movimentos de câmara que os ligam enquanto fazem música juntos. E no fim de China Doll, o amor entre Victor Mature e Li Li Hua continua na filha crescida deles, pisando solo americano anos depois de ambos terem morrido."

Hervé Dumont, no mesmo livro, debruça-se sobre o filme da nossa próxima sessão, escrevendo que "nos Estados Unidos, Lucky Star foi lançado como o primeiro filme falado de Janet Gaynor e Charles Farrell. O filme estreou a 21 de Julho no enorme Roxy Theater de Nova Iorque, equipado especialmente com Movietone. Mas a reacção do público foi morna: com a sua carência de sensacionalismo, a sua modéstia, e talvez uma espécie de tristeza no seu âmago, foi logo esquecido. O Love Parade de Lubitsch com Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald como os pombinhos chilreantes estava a ditar as modas, na altura. Em Outubro, a Fox juntou Gaynor e Farrell numa comédia cadenciada que era "sonora a 100 por cento," Sunny Side Up de David Butler, uma farsa despretensiosa interpretada numa paisagem nova-iorquina moderna e que iria estabelecer novos recordes no box office ($3,500,000). A imprensa interpretou completamente mal Lucky Star: as opiniões incrivelmente superficiais variavam entre "mau e indiferente" (Variety) e "uma mediocridade agradável" (New York Herald Tribune). Os críticos estavam satisfeitos com a qualidade do som e das imagens, mas acharam a história em si "absurda" e "simplista." Só Welford Beaton, o crítico americano da altura mais em sintonia com Borzage, declarou na Film Spectator de Hollywood: "Conta alguns capítulos nas vidas de algumas pessoas excessivamente monótonas, e passa-se em ambientes sórdidos, portanto não é um filme que vá ter uma ampla recepção popular... Lucky Star não vai ser um dos maiores filmes no box-office que vêm do lote da Fox, este ano, mas vai ser um dos melhores." Marcel Carné, então um jovem crítico na Cinémagazine, declarou: "Admito que sou parcial para com os filmes de Borzage. Eles não têm sempre a estrutura necessária, mas são obras-primas de simplicidade, imbuídas de pureza e sensibilidade apurada. A fotogragia, às vezes, é tão suave e agradável aos olhos, que o espectador sente um prazer inexprimível." No entanto, como tantos dos seus contemporâneos, permanece insensível ao final, "que provavelmente foi imposto a Borzage"!

"Sessenta anos depois, Lucky Star continua a provar que os seus críticos estavam errados. Em 1990 o Filmmuseum da Holanda descobriu, nos seus cofres, uma cópia muda do filme, a única versão aceitável, e restaurou-a. A sua estreia nos Giornate del Cinema Muto em Pordenone (18 de Outubro, 1990) teve um efeito explosivo numa multidão internacional de cinéfilos de elite que lhe deram uma ovação entusiástica. Em finais de Janeiro de 1991, o filme foi programado como uma curiosidade histórica na abertura do 20º Festival de Cinema de Roterdão. Depois de serem exibidos 186 filmes, incluíndo os últimos de Kaurismäki, Muratova, a obra completa de Nicholas Ray, filmes de Losey, Godard, Kazan, Aldrich, Fuller, e Rossellini, os organizadores do festival realizaram uma sondagem de opinião para designar o melhor filme. O público deu o primeiro lugar a Lucky Star."

Voltando a João Bénard da Costa, "Lucky Star é um filme de Frank Borzage (1893-1962). Borzage, como todos os cineastas americanos da sua geração, abordou muitos géneros. Mas há um em que ninguém lhe levou a palma: o melodrama. Mesmo Douglas Sirk (e Deus sabe quanto o amo) é menor ao lado deste maior. Mesmo Griffith, só lhe abriu os caminhos. Porque se Lucky Star, como outros melodramas dos finais dos twenties, não seriam possíveis sem Griffith (por exemplo, aquele True Heart Susie já aqui evocado), nunca houve corpos tão anímicos e almas tão carnais como na obra deste místico, por um lado muito religioso, por outro muito atento às correspondências secretas entre ritmos ocultos e aparências geométricas. Homem muito sabido em símbolos (nada a ver com alegorias) maçon cultivadíssimo, cultor exotérico. Os surrealistas não se enganaram quando o meteram na família, eles que tanto amaram The River, o filme anterior a este.

"Lucky Star tem Janet Gaynor e Charles Farrel nos protagonistas. É um dos três filmes (com Seventh Heaven e Street Angel) em que Borzage dirigiu o par, outrora célebre, dos “America’s favorite lovebirds”, como entre 1927 e 1934 foram conhecidos. Borzage criou esse par que, depois dele, mais nove vezes apareceu junto. Estranhíssimo par: ela, palmo e meio de altura, “piccina, tanto piccina, troppo piccina”, como escreveu o meu heterónimo Ramperti, pintas na cara e nos olhos, mozartianíssima, assustadíssima (foi a actriz de Sunrise, de Murnau, do mesmo ano de Seventh Heaven). Ele, com quase dois metros de altura, um corpanzil imensíssimo, pés e mãos quase do tamanho dela e, lá em cima, uma cara simpática e imberbe. Corpo de quem morde, cara que não ladra."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 19 de julho de 2017

The Struggle (1931) de David Wark Griffith



por José Oliveira

«And she was reputed to have been on the set the day Griffith invented the close-up!» 
Francis Scott Fitzgerald, The Love of the Last Tycoon 

Sempre tivemos o grande D.W. Griffith histórico, cheio de ressonâncias míticas e bíblicas, fundador de formas e narrativas mas constantemente revolucionário, onde na grande aventura de uma arte nova chamada cinema convocou a grande literatura como a grande pintura para, nunca esquecendo o passado e as correspondências universais, erguer frescos que só pela nova imagem em escuro largada podiam fazer sentido pleno; mas também o pequeno e intimista lírico de Broken Blossoms ou True Heart Susie, esse do coração gigantesco e mão terna que no mais singelo dos quartos retribuía aos seus sofredores e lutadores toda a luz e modelação apreendida num Rembrandt ou num Edward Hopper, elevando a construção fílmica o mais possível à morfologia dos seres, criando assim épicos outros do mais cândido humanismo. Mas o que me vazou desta vez foi a sua derradeira longa-metragem, essa imediatamente a seguir ao minúsculo e desmesuradamente apaixonado retrato de um homem solitário chamado Abraham Lincoln, onde prometia tudo alcançar com o recente som e possibilidades musicais; no entanto, tem que se dizer, a música foi fundamental na plasticidade e movimento de toda, toda a sua obra. Todas as suas composições como que bailavam harmonicamente ou em resolutas oposições. Música, pintura, romance e realidade em grau primeiro de uma natureza que entrava incandescente pelas lentes em fulgurante primeira vez. Galáxia complexíssima onde um filme tão curto como o The Country Doctor de 1909 parece englobar todas as vertentes enunciadas e as restantes, num cinzelamento e beleza já atordoantes, tornando-se tudo grande demais para análises deste género. Como escreveu João Bénard da Costa sobre THS: «uma trama tão ténue que não consente qualquer conversão a qualquer outra arte». Inarrumável. 

O filme que estamos prestes a ver é mais um caso paradigmático; rodado nas ruas e num estúdio em pleno Bronx, chocando constantemente com o real e o não-encenado, com a máquina e as regras sociais, misturando actores desconhecidos do grande público com “gente das calçadas” e do dia-a-dia aonde o Cinema não costuma entrar nem tocar, Griffith sacou assim mais uma radiografia do presente filmado, uma lembrança e um aviso futuros, bem como os mecanismos claros e ambíguos da perdição humana na poça da sociedade erigida – parente do fabuloso Street Scene que King Vidor fez no mesmo ano, mas ainda mais rugoso, enfrentando os becos e os vãos de escada sem qualquer protecção ou filtro de estilo, contornando o desenho teatral, continuação declarada do seu The Musketeers of Pig Alley que já possuía todos os planos cinematográficos, do permonor ao subjectivo, bem como toda a temeridade do real bruto; lembram-se da coragem e dos abismos nas sujas calçadas de John Cassavetes ou de Martin Scorsese? Aqui está quem primeiro deu o corpo ao manifesto e “não mostrou medo”. Mas se os meios de produção e a escala foram perfeitamente adequados às ambiências, ao espaço e à movimentação e vivência humana em causa – Griffith a inventar também o “filme independente” e livre de pressão e pagando depois caro por isso aquando da distribuição - o cineasta não parou de inovar, utilizando por exemplo um microfone parabólico que permitiu captar as vozes o mais individualmente possível no meio do som ambiente, quando ainda quase todos em Hollywood andavam à nora com a questão do sonoro. E assim já temos o foco em luta com o ruído, a pessoa singular e insubstituível a nadar no caos indiferenciado. Dentro da Grande Fábrica dos Sonhos e a sua antítese. A ternura e o entendimento ao próximo juntamente com a sede de levar a sua arte e o seu oficio para a frente como deve ser. 

The Struggle foi feito por 1931, tinha Griffith 56 anos e milhões de metragem para iluminar, milhões de palmos de terra e de gente para imprimir nela, encontrar-se e falar com Murnau e Jean Vigo, fazer o bem usando da implacabilidade, mas não aconteceu. Podemo-nos lamentar, mas mais vale ver sempre com atenção o legado. Esta luta começa em legenda ambígua e desafiante, lança-nos para o meio do que poderia ser um painel fracturado ou um mosaico de múltiplos espelhos, cheio de som e de fúria, cacofonia moderna, ruminante e denunciador dos males de uma nova sociedade interesseira e capitalista, onde o caminho da sobrevivência é o encontro com as misérias do álcool que aqui é um dos dínamos. Mas num corte furioso de secura e bom partidarismo, somos levados ao consumar do amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem, com uma acalmia na paz dos anjos e mais beleza letal, depois, em supressões do trabalho do casal, vemos o nascimento da sua cria, o aumento da paixão, os beijos de boa noite e os presentes prósperos. Mas também a contradição capital que consiste na quebra da jura que o esposo fez à esposa na promessa de casamento e vida, quando lhe disse que por tal nunca mais sequer cheiraria o vil líquido. Por ventura são coisas que não se prometem e muito menos em tais causas, se calhar nem vale a pena confundir as coisas e a tentação e queda naquele contexto aconteceria sempre. Sem querer entrar em futurologia, o que lá está é o possível agigantamento do demónio que todos temos dentro, inclusive a melhor das pessoas e a alma mais alva. O marido vai de facto perder as estribeiras e passar os limites dos limites, que não são só as bebedeiras constantes nem o abandono da mulher e da casa, nem mesmo a vadiagem com mulheres da má vida e sacanas ainda piores, mas vai arriscar acabar com a filha linda, num momento do mais puro terror onde a encenação do mal aleatório e incontrolável se expande circulatoriamente e só a mais pura sorte impede a consumação da tragédia. Uma exaltante fresta de luz ainda o resgatou da escuridão do purgatório em que penava. Se no plano que fecha esse bocado amargo da vida deles e do nosso mundo tudo parece estar bem, com os olhos do protagonista a brilharem de novo apesar de tanto sangue neles ter raiado, a tragédia foi mesmo vista de frente e logo experimentada na pele, cravada; marcas inapagáveis vão sempre ressoar, apontar e diagnosticar as estruturas e prioridades da nossa terra. 

Se tudo isto é um tratado orgânico e feroz sobre a fealdade concertada e a persistência original onde não se sai de certezas óbvias num tal pântano, cinematograficamente estamos perante uma peça de concentração e descarnamento que se é o ponto de chegada e apuro do maior dos cineastas, do maior dos empreiteiros e logo supremo manipulador, tal só parece possível e reforçado pela circunstância e pelos limites. Concentração que tem a ver com a essencialidade de tudo o que acontece, romanescamente e documentalmente, onde na progressão dos acontecimentos referidos nada de acessório entra, nada de pontuação supérflua ou passível de distracção. Não temos uns segundos de sol a seguir a um choro para aliviar momentaneamente uma dor ou criar uma metáfora fina, nem nuvens ou carros que aceleram para a noite, muito menos uma sinfonia dramatúrgica que carregue nas tintas da perdição. Somente os palcos significativos para o que interessa contar e mostrar, e o máximo peso na maneira de o captar. Que tem a ver com o tal descarnamento, a carne viva e cheia de veias e chagas em que as imagens nascem, vivem e se agravam, ferem e vilipendiam. A câmara de Griffith sempre foi a que mais pôde, a que mais ampliou e perfurou, no ângulo necessário com a distância e a temperatura adequada, mas, há que reconhecer, outro factor talvez ingovernável se meteu ao barulho, tratava-se de uma técnica e de uma ciência com as suas vicissitudes e propriedades recentes, não perfeitamente desenvolvida e acabada, ainda não limada e pronta para não exceder cânones plásticos e conformidades do aceitável. Ao olhar do mestre imponha-se a par a violência animalística do que não está totalmente domado nem civilizado, e daí que pelas composições rigorosas e nas entradas e saídas em que as portas rangem mesmo e cedem novos mundos, todas as auroras eram possíveis, essas surpresas que aparecem quanto mais se arrisca e se é rigoroso sem outros filtros que não a verdade do movimento e da emoção em jogo. Essa câmara já era então um potentíssimo objecto de precisão comparável às lupas da NASA ou aos amplificantes estetoscópios, objecto que no longe e no perto nos radiografava e escutava, acreditava nas profundezas e nos invisíveis; que esperava, se ajustava e reajustava, ia à procura e se espantava pelo milagre do tempo e da manifestação; sabia do comum e preservava o privado sobre o qual não se deve banalizar; estruturava o espaço, definia as escalas e os eixos, metia de fronte ou estudava a prespectiva adequada, flanqueava nem mais nem menos do que uma experiência nova do que é viver. Para dar razão ao que o outro grande humanista diria anos depois, esse Jean Renoir que afirmou perentoriamente que liberdade total não é muito aconselhável em cinema, que se devia ter certos princípios e até regras; e há que ouvir sempre a conversa dele com Henri Langlois no filme de Eric Rohmer titulado Louis Lumière, em que se percebe que o progresso e o desenvolvimento em arte não fazem grande sentido. Disse certa vez Manoel de Oliveira na apresentação de um seu filme cheio de efeitos especiais e digitais: «Só existiram três inventores: os irmãos Lumière, Georges Méliès e Max Linder». Não falou em Griffith e tenho a certeza que foi por aos Irmãos o associar. Qualquer destes ditos e se calhar lamentos apenas apontam para aquilo a que se chegou hoje: a bandalheira total, o plano a colar à sorte com qualquer outro e o efeito mais rasca a matar a coerência ou justiça ou a legítima poesia, o espaço a ser dizimado e o tempo a não existir; para não ir à parte mais sensível da raça e falar das torturas e humilhações supremas que um orgulhoso Lars Von Trier ou Michele Haneke aplicam aos seus opostos. A inteireza de D.W.G e logo toda a modernidade inultrapassável de que Oliveira deu conta muito a sério e nada a brincar tinha a ver com isto, a revolução acontece quando se é fiel ao que se encontra e tem em frente, quando se está à altura de, de onde a consciência genial, o desfasamento interesseiro ou o resultado pré-definido são a abjecção imperdoável. 

 Posição retrograda? História da carochinha? Saudosismo? O que ontem foi possível mesmo já depois dos pioneiros já não é agora, as imagens e sons e parafernália acessória escorrem como tinta lançada à sorte pelas telas dos nossos portáteis que tendem a substituir as salas incomportavelmente grandes, e assim a palavra resistência é a mais válida. É difícil encontrar o olhar de criança, antes da grande violação, da usura e de alguns incestos, mas nunca se deve desistir e essa será a moral para viver e morrer de pé, mesmo que se leve com um rótulo que hoje deve ser tomado em conta, o de reaccionário que até mesmo colam a um James Gray, esse tão empenhado, actual e apaixonado artesão. Penso nos grandes pioneiros do digital, e já agora que não se leia isto romanticamente ou ironicamente, como Pedro Costa ou o caso do Wolfram arrancado a ferro e fogo por Rodolfo Pimenta e Joana Torgal das funduras da terra e mais ainda do cinema, esses que com o chamado vídeo caseiro procuraram, fungaram pelos escombros, ousaram, arriscaram, acreditaram nessa impossibilidade pelo trabalho e pelo reaprender a olhar, para descobrirem como se deve ver agora o Homem, de onde, sobre que fundo, horizontes perdidos; quanto tempo deve demorar a irromper e a passar no plano alguma coisa, quem deve encontrar, quando deve falar e o que dizer, novos ritmos, novos cortes, novos raccords, até silêncios nunca escutados. O mundo, a sociedade, a arquitectura, os valores, mitos, desilusões, é tudo de outra ordem. Não se trata então de fazer à Griffith ou à Chaplin, de plasmar, guinada utópica, nem de um alquimismo cego, mas de lavar o olhar, de se reposicionar, fechar os olhos às modas que são a reverberação da publicidade e do engano que nos quer fazer crer que tudo está bem e se deve continuar na onda, mas antes ser-se fiel e lutar, pregar no deserto, como o filme que me trouxe a estas linhas não cessa de nos dizer, para que as coisas fundadoras, plenas, invioláveis se metam no trilho e no sentido certo. A natureza a seguir o seu devido curso. O grito da flor no deserto ou o trajecto da estrela cadente. E a infância, os órfãos que mesmo eternamente enlutados não têm e têm temor de se atirarem a esse buraco onde se encontra o maior dos segredos. E as sombras adensam-se. «Eu fi-los ver, não fiz? Eu mudei tudo», ousou Griffith contra quase todos - a ler com toda a literalidade, branco é galinha o põe.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

69ª sessão: dia 18 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“Eu fi-los ver, não fiz? Eu mudei tudo”, afirmou certo dia o "patrão" de Hollywood.

"O homem que fez tudo em primeiro lugar", sentenciou o historiador Kevin Brownlow.

David Wark Griffith (1875-1948) foi tudo isto e muito mais e qualquer agradecimento ou homenagem pecará sempre por defeito.

Poderíamos mostrar as curtas-metragens revolucionárias como A Corner in Wheat que já possuem todas as figuras de estilo, ambiências e choque com o real que os grandes cineastas posteriores desenvolveriam à sua maneira; o épico da Nascença de uma Nação ou o Intolerância que aglutina todas as épocas e todos os povos; poderiam ser os melodramas intimistas que de Broken Blossoms a True Heart Susie protegeram os solitários e os frágeis na terra levando-nos devagarinho às lágrimas, tão tão perto de Lilian Gish; ou Abraham Lincoln, já a experimentar e a levar longe o som, ou... ou...

Mas acabamos por escolher The Struggle, obra final antes da penúria de mais um pioneiro condenado ao esquecimento em vida, pois mostra sem precedentes todos os problemas da altura, os de hoje e com certeza os do futuro. Não através de queixinhas ou de diálogos denunciantes mas pelo poder da expressão do humano em união com as formas cinematográficas; pelo poder incomensurável da câmara de filmar.

O maior dos cineastas e o maior dos filmes. Foi o grande D. W. Griffith, mostrando-se mais do que aberto à transição do mudo para o sonoro, que escreveu em 1929 que "o cinema falado arruinou o mudo, oferece tantas coisas a mais que os espectadores já não podem ficar satisfeitos só com o cinema mudo. Se há quem não goste dos filmes falados, talvez isso dependa do facto de ainda não termos encontrado a solução para o diálogo. Se se continuar a imitar a técnica teatral, matar-se-á o cinema falado. É preciso encontrar uma solução para o diálogo e sei que isso se vai conseguir. Sei o que é preciso fazer, e acho que dentro de um ano conseguirei demonstrá-lo. Temos que continuar a usar a mesma técnica cinematográfica que conduziu ao cinema actual e acrescentar o diálogo. Se o conseguirmos fazer, teremos o maior espectáculo do mundo. Mas temos que manter a velocidade, a acção, o movimento, a vida, o ritmo do cinema moderno".

Jesús Cortés, escreveu no seu blog que "ver agora, quase 80 anos depois da sua estreia, esta obra suprema dos anos 30 é um cabo dos trabalhos considerável (nota: "cruce de cables" no original). Não só pela raiva e pelo assombro perante a cegueira dos seus contemporâneos (e a injustiça porque nem o tempo nem a crítica "moderna", talvez demasiado moderna, o restituíram ao seu verdadeiro lugar) mas sobretudo pela capacidade de um gigante para ir mais além quando as condições são as piores imagináveis. The struggle, para mim, é um dos passos em frente mais desconhecidos que o cinema sonoro deu e um dos filmes mais inquietantes da história do cinema. 

"Mais duro e profundo do que The crowd de Vidor, mil vezes mais intimidante do que The roaring twenties de Walsh, esta é a obra chave do "cinema da rua", tão despido e em bruto como só vários Rossellinis emblemáticos, muitos anos depois, alongando a sombra de The sorrows of Satan, uma das suas grandes obras-primas mudas."

Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreveu que "é então o último filme de Griffith, de budget muito pequeno, sem vedetas, rodado num mês nas ruas e um estúdio do Bronx. A ternura do autor e o seu interesse pelos seres comuns presos pela corrente, muitas vezes amarga e dolorosa, da sua vida quotidiana, aparecem aqui mais claramente que nunca. O facto de que esta obra modesta em todos os seus aspectos encerre a carreira gigantesca do realizador de O Nascimento de Uma Nação e de Intolerância incita bastantes reflexões. À chegada do sonoro, Griffith não se integra no sistema hollywoodiano. Alguma vez esteve integrado? Este imenso cineasta que criou Hollywood e, indirectamente, o seu sistema nunca fez totalmente parte dele. Além disso, os seus pares, ou melhor, os seus discípulos (Walsh, por exemplo), porque Griffith não teve verdadeiramente igual na sua época, consideravam-no acima de tudo um solitário: a loner. O gigantismo de um certo número dos seus filmes deveu-se unicamente ao seu gosto pela História, à sua vontade de a restituir na sua amplitude e na sua verdade. Quando saiu da História, outra tendência, talvez a mais profunda, conduziu Griffith para episódios de dimensões estreitas, vividos por personagens humildes e caros ao seu coração: inocentes, seres vulneráveis que têm de deflagrar uma luta gigantesca, desproporcionada em relação aos seus meios, só para sobreviver e manter um equilíbrio frágil. Sem dúvida que o personagem de excepção que foi Griffith se reconheceu neles, se sentiu ligado secretamente a eles, à sua obstinação delicada, aos seus acessos de fraqueza e de desânimo, aos seus sonhos de felicidade infantis. São personagens desta espécie que Griffith aqui retrata, com uma ausência de sofisticação e de recuo tais que o filme suscitou a chacota do público e foi um desastre comercial"

Até Terça!

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Apresentação de O Marinheiro de Água Doce, por Chris Fujiwara


(podem-se activar ou desactivar as legendas portuguesas no vídeo)

Steamboat Bill, Jr. (1928) de Buster Keaton e Charles Reisner



por João Palhares

James Agee não esteve por meios termos ou meias medidas quando escreveu em 1949 que “o estúdio de comédias mudas foi para aí a melhor escola de formação que os filmes já conheceram, e o estúdio de Sennett era tão livre e acessível e fecundo de talento como era possível. Todos os comediantes importantes que vamos mencionar trabalharam lá, pelo menos por um bocado. E também algumas das estrelas mais importantes dos anos 20 em diante – especialmente Gloria Swanson, Phyllis Haver, Wallace Beery, Marie Dressler e Carole Lombard. Os realizadores Frank Capra, Leo McCarey e George Stevens também começaram na comédia muda; muito do que continua mais flexível, espontâneo e vivo visualmente nos filmes sonoros pode-se remontar, através deles e de outros, a esta aprendizagem muda. Toda a gente fazia basicamente o que quisesse no lote de Sennett, e as ideias de todos eram bem-vindas. Sennett não impunha regras nenhumas, e a única coisa que proibia estritamente era o álcool. Uma discussão de história de Sennett era um assunto muito informal. Durante os primeiros anos, pelo menos, só o guião mais importante é que podia ser anotado na parte de trás de um envelope. Os homens de Sennett, sobretudo, despejavam algumas ideias básicas e levavam-nas nas cabeças, com a certeza de que melhores coisas surgiriam quando estivessem a filmar, no calor da acção física. Isto pôs um peso muito grande no aderecista; tinha que ter os aparatos mais improváveis à mão – bombas, telefones falsos, o que mais fosse – para implementar qualquer ideia que surgisse de repente.” 

“Buster” Keaton não começou com Mack Sennett (apesar de terem trabalhado juntos em The Timid Young Man, de 1936) mas aprendeu tudo e deve a sua entrada no mundo do cinema a Roscoe Arbuckle, que tinha trabalhado durante anos com a unidade do veterano dos cómicos americanos. Foi ele que desmontou uma câmara à frente de Keaton para lhe mostrar os processos mecânicos e químicos do cinema e que o fizeram aderir imediatamente à indústria. No genérico de Cops, de 1922, aparece uma citação do Harry Houdini que o baptizou depois de uma queda épica aos 18 meses de idade (segundo Keaton, a palavra “buster” nesses anos era só usada como sinónimo para quedas grandes ou aparatosas e propensas a ferimentos; o pai gostou do som da palavra e a alcunha pegou), “Love smiles at locksmiths”. Parece uma descrição do trabalho paciente e obsessivo de Keaton, que, como Sennett, não escrevia guiões e descobria os seus filmes nos locais de filmagem e em conferências regulares com a sua equipa de escritores e gag men (apesar de se dizer que era ele que inventava a maior parte dos gags). Em The Playhouse, para multiplicar a sua personagem (no que com outro comediante qualquer seria um exercício puramente egocêntrico mas em Keaton se torna prova de tremenda humildade - um dos muitos e belos paradoxos espalhados pela obra de Keaton, o cómico que não sorria), reduz a exposição de luz com o seu operador de câmara de modo a filmar só uma parte do plano, dá a volta à película dentro da câmara para voltar a filmar outra parte com exposição, repetindo o processo até conseguir o plano desejado. Esta brincadeira obrigava-o a filmar as cenas com um cronómetro para se poder acompanhar a si próprio a dançar em palco. Para Sherlock Jr. a precisão ia ao cúmulo de se ter que cortar a exposição na câmara a régua e esquadro para poder encaixar filmagens de exteriores num ecrã de cinema filmado em interiores. 

Descrito com pouca arte o trabalho químico, pode-se falar agora do mecânico, comparável ao engenho de um Da Vinci e dependente de conhecimentos de carpintaria e engenharia avançadas. Os gags de “Buster” envolviam circuitos e invenções muito engenhosas para serem postos em prática, sendo ele próprio uma espécie de cientista amador que fabricava sistemas e máquinas para simplificar a sua vida do dia-a-dia (parodiou o seu próprio passatempo com a casa auto-suficiente de The Scarecrow, em que “all the rooms in this house are in one room” e, levando à letra o ditame famoso de Antoine Lavoisier, "nada se perdia, tudo se transformava" - os restos da comida em alimento para os porcos, a água de esguichar a louça num charco para os patos, etc). Como quando agrafa o carro à sua casa portátil de One Week e o motor parte sem a carroçaria, ou quando constrói o comboio de Our Hospitality que percorre carris aos solavancos por cima de pedras e pequenas elevações sem sair das linhas, ao colocar as câmaras em caixas especiais para se filmar a si próprio num mergulho profundo para salvar o dia em The Navigator, ou ao usar gruas para criar a ilusão de edifícios a serem desfeitos em Steamboat Bill, Jr., o filme que hoje vamos ver.

Keaton também voltava a filmar mesmo que estivesse em pós-produção e se, durante uma ante-estreia (que, nesta altura, se faziam por questões relacionados com o trabalho e não com a publicidade) percebesse que o público não respondia a certas sequências. Voltava ao laboratório, tentava perceber o que é que não funcionava e aparecia com novas ideias. “Percebi que, assim que os espectadores ficassem empolgados com os actos do herói, recusavam tudo o que podia desviá-lo da sua trajectória, independentemente da qualidade do gag apresentado. Tive a demonstração clara disso mesmo, alguns anos mais tarde, durante a pré-visualização de The Navigator” (in My Wonderful World of Slapstick). Para o caso, era um dos gags preferidos de Keaton, não pensando no entanto duas vezes em o remover para respeitar a integridade do seu filme como um todo. No documentário feito para a televisão em 1987 por Kevin Brownlow e David Gill sobre Keaton, Buster Keaton: A Hard Act to Follow, mostram-se imagens inéditas do realizador durante as filmagens de The Railrodder a debater-se com o sentido de um plano no meio de uma cena. “Se voltasse agora atrás para proteger esta perseguição com grandes planos, não teria a mais pequena ideia do que estava a fazer na altura em que a devia fazer, portanto não podemos fazer com que as cenas encaixem.” É difícil ilustrar com palavras a dedicação com que os grandes realizadores de comédia do tempo do mudo se atiravam ao seu trabalho, principalmente numa altura em que não se vê trabalho ou dedicação quase nenhuns numa sequência aleatória de uma grande produção de Hollywood. Recorramos outra vez a Houdini e fiquemos por “love smiles at locksmiths”, aparentemente uma contracção de dois belos versos de William Shakespeare que dizem, “were beauty under twenty locks kept fast, yet love breaks through, and picks them all at last.” 

Além de realizador, actor e escritor dos seus filmes, Keaton executava também as suas próprias acrobacias, correndo riscos impensáveis até para aqueles dias em que tudo se experimentava e aturava (sabe-se, por exemplo, que o equivalente americano da Comissão de Protecção de Menores mandou acabar com o número de vaudeville de Keaton com os pais, por envolver arremessos de “Buster” contra o cenário ou contra membros do público como se fosse uma bola de basebol). Era o que distinguia Keaton dos realizadores e actores cómicos do seu tempo, podia pensar um filme seu do movimento mais pequeno que o seu corpo conseguia executar às engrenagens dos mecanismos complexos que o desafiavam. O homem contra a máquina que é o mundo. De momentos em que se agarra a um carro a alta velocidade para fugir à polícia (Cops) a quedas de dois andares de casas que parecem projectadas por M.C. Escher (One Week), de mergulhos impossíveis através de barrigas e paredes de tijolo (Sherlock Jr.) a rolamentos épicos para escapar a pedregulhos e noivas não desejadas (Seven Chances), de saltos em altura e com a vara numa corrida contra o tempo para salvar quem se ama (College) a danças com o vento demoníaco de um furacão simulado por vários motores de aviões (Steamboat Bill, Jr.). 

Pode fazer sentido ver hoje Steamboat Bill, Jr. para recordar, então, que “Buster” Keaton não é só um executante de façanhas perigosas e um engenheiro exímio, mas também um poço de emoções, que transmitia sem um sorriso ou uma lágrima (lembra-se muito que ele nunca sorriu mas pouco se quer lembrar que também nunca chorou nos seus filmes). Keaton disse que tomou a decisão de não rir com o público quando fazia comédia porque descobriu nos números de vaudeville que eles se divertiam mais quando não o fazia. Mas o fascínio que este estoicismo intencional provoca já ultrapassa decisões práticas de trabalho ou os sofismos do próprio ofício da comédia que nos garantem que é mais divertido olhar para quem tropeça em situações cómicas se, para eles, forem a coisa mais séria do mundo. Terá até mesmo que ver com os “arquétipos primordiais” de que fala James Agee no artigo que citámos no princípio deste texto. Steamboat Bill talvez seja o filme com mais emoções de “Buster” Keaton: sobre pais e filhos, velhos rivais, paixões frustradas pela família e um furacão que em vez de destruir, pacifica (voltando aos paradoxos). 

Podemos terminar com os gags e as narrativas circulares de Keaton. Como com a casa portátil que roda sobre o seu eixo em One Week, como na perseguição que é fuga ao mesmo tempo em The Navigator, como o belíssimo plano inaugural de Steamboat Bill, também as histórias destes filmes se costumam encerrar com a recapitulação e correcção das façanhas que as personagens de "Buster" Keaton começam por não conseguir executar. Sejam as lições do atletismo para a última corrida em College, ou a condução final da manada de bois em Go West. Ou, neste caso, a condução de um barco a vapor que se começou por sabotar sem querer e, no fim, quando conta para alguma coisa (pequena nota: até pode ser que a indolência das personagens de Keaton não seja indolência nenhuma mas uma recusa muito decidida em mostrar o seu valor só para impressionar, vindo ele ao de cima quando é mesmo preciso, quando conta), se consegue utilizar para salvar todos aqueles que se ama. E qual é a moral da história? Talvez seja apropriado que, para um filme com uma história arrancada do “Romeu e Julieta”, se responda mais uma vez com o “were beauty under twenty locks kept fast, yet love breaks through, and picks them all at last.” Ou então que “love smiles at locksmiths”. 

domingo, 9 de julho de 2017

68ª sessão: dia 11 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Foi Harry Houdini, o mago entre todos os espíritos (segundo João Bénard da Costa), que decidiu apelidar Joseph Frank de Buster (“coisa enorme”; “something that is very big or unusual for its kind”) quando este contava apenas uns seis anos. Conta-se que foi depois de o ter visto rebolar por uma escada de caracol e chegar ao chão tão impecável como antes da queda. E terá nascido assim Buster Keaton, o genuíno super-herói, o inventor sem limites, o mágico, o génio absoluto que fará da nossa próxima sessão um constante espanto. 

Tal como Chaplin, um visionário muito à frente do seu tempo e actuando justiceiramente nele; começou com a família nos espectáculos de variedades pelo seu país fora e passo a passo foi percebendo que era no cinema que tinha de apurar a sua arte revolucionária. 

Steamboat Bill, Jr., o filme de 1928 que iremos ver, tem lá dentro todas as proezas físicas e quase suicidárias a que entregou o seu corpo, bem como todas a maravilhosas criações visuais e os truques únicos ao serviço de uma encenação pasmosa; e tem o romantismo contido, calado, em filigrana... o impassível rosto com a potência expressiva de um universo inteiro acabado de descobrir... enfim, o milagre da constante redescoberta e risco de um cinema tão delicado como total. 

E assim homenagearemos também todos os grandes burlescos americanos, de W. C. Fields a Mack Sennet, de Harold Lloyd até aos Irmãos Marx. 

Fomos mais uma vez ter com o generoso Chris Fujiwara, que já nos tinha feito um vídeo sobre Jacques Tourneur, e será ele a apresentar o filme aos Bracarenses e a todos nós. 

James Agee (pioneiro dos freelancers e inspiração maior do chamado "Novo Jornalismo", crítico de cinema, escritor, poeta e argumentista de African Queen e Night of the Hunter), em artigo para a revista Life (Comedy's Greatest Era - Mack Sennet's Maniacs and Four Master Clowns Made Action both Louder and Funnier than Words), escreveu que "a cara de Keaton quase se equiparava à de Lincoln como um arquétipo americano primordial; era assombrosa, elegante, quase bela, e no entanto era irredutivelmente engraçada; ele melhorava as coisas ao coroar tudo com um chapéu mortalmente horizontal, tão fino e achatado como um disco de vinil. Jamais se consegue esquecer Keaton a usá-lo, permanecendo erecto na proa quando o pequeno barco dele está a ser lançado. O barco vai grandiosamente pelo ralo abaixo e, de maneira igualmente grandiosa, directo ao fundo. Keaton não faz um gesto. Da última vez que o vemos, a água levanta o chapéu da cabeça estóica e flutua para longe.

"Mais nenhum comediante conseguia fazer tanto com a cara sem expressão. Ele usava esta cara formidável, triste e imóvel para sugerir várias coisas relacionadas: uma mente de um só curso perto do fim do curso da insanidade pura; imperturbabilidade obstinada sob as mais ferozes das circunstâncias; quão morto se pode tornar um ser humano e ainda estar vivo; uma espécie de paciência inspiradora e poder para resistir, próprios ao granito mas estranhos em carne e osso. Tudo o que ele foi e fez ostentava este rosto rígido e provocava risos contra si. Quando ele mexia os olhos, era como vê-los a mexerem-se numa estátua. O corpo de pernas curtas dele era todo ângulos súbitos e maquinais, governados por aplausos doidos. Quando ele abanava um braço como um semáforo para apontar, quase se conseguia ouvir o impulso eléctrico no bloco de sinal. Quando fugia de um polícia as transições dele de caminhada acelerada para meio-trote fácil para trote largo brusco para galope impetuoso até arrancada de pistão açoitado - a cara imperturbável e intocável sempre a flutuar, acima deste delírio - eram tão distintas e tão sobriamente ordenadas como uma caixa de mudanças automática."

Keaton, no seu livro My Wonderful World of Slapstick, debruçou-se sobre a rodagem de Steamboat Bill, Jr., escrevendo que "aconteceu uma coisa estranha durante a produção desse filme, a propósito. Um dos assessores de Joe Schenck convenceu-o da ideia de que uma cheia era uma coisa desastrosa para ter num filme de comédia. "Vais fazer muitos inimigos para este filme se mantiveres a cheia," disse ele a Joe. "Demasiadas pessoas perderam os seus entes queridos em cheias recentes. Vão ficar ressentidas se fizermos de um desastre destes uma piada".

"Quando Schenck me disse isto, eu salientei que um dos maiores sucessos de Chaplin foi Shoulder Arms, um filme a gozar com a guerra e tudo que a ela está ligado.

"Chaplin fez esse filme em 1919, no ano seguinte ao fim da Grande Guerra," disse eu. "Ninguém se opôs. E isso incluía as mães de estrelas douradas que perderam os filhos na guerra."

"Mas pela primeira vez o indolente Joe Schenck foi duro. Quando fiquei convencido que ele não ia mudar de ideias perguntei ao Fred Gabourie, o meu director técnico, quanto custava refazer os nossos cenários elaborados de rua com o valor de $100,000 se tivéssemos um furacão no filme em vez de uma cheia. Tinha um palpite de que Schenck talvez não se opusesse a um furacão. Gabourie, um génio no seu trabalho, disse que eram $35,000. E Schenck não teve objecções a que eu encenasse um furacão. As mudanças que fizemos acabaram por custar ligeiramente menos do que isso.

"(...) Tinha-me ocorrido que normalmente havia muito mais pessoas mortas todos os anos por ciclones e tornados do que em cheias. Quando o filme ficou terminado, só por brincadeira, telefonei ao Departamento de Meteorologia dos Estados Unidos em Los Angeles e pedi-lhes números para o ano precedente. Disseram-me que em 1925 morreram 796 pessoas em grandes tempestades de vento e só 36 em cheias. Mas nunca mencionei isso a Schenck, não querendo esfregar-lhe isso na cara. Geralmente conseguia fazer o Joe rir, mas duvido que ele se fosse divertir ao ouvir falar do erro de $35.000 que tinha feito."

Kevin Brownlow, co-autor (com David Gill) de documentários sobre cinema tão essenciais como Hollywood (1980), Unknown Chaplin (1983) e Buster Keaton: A Hard Act to Follow (1987-89), historiador, preservador e estudioso obsessivo, abordou Keaton, Steamboat Bill e a última cena do filme em The Parade's Gone by, escrevendo que "esta cena é o canto do cisne da unidade fiel de Keaton, e uma das sequências com efeitos especiais mais assombrosas jamais tentadas.* O local para todos os exteriores foi no rio Sacramento, mesmo em frente a Sacramento. Foi colocada numa barca uma grua com trinta e sete metros de altura, usada para arrancar os edifícios quebráveis, e para atirar Buster ao alto, aparentemente transportado pelo ar.

*Tramp, Tramp, Tramp (1926, Harry Edwards) com Harry Langdon tem uma cena de ciclone brilhantemente encenada, mas não se aproxima do espectáculo desta.

"A sequência começa com um plano de um carro. O motorista está a empurrar a manivela de arranque. Já está a chover; o capuz dispara de repente, como uma vela, e o carro desaparece pela rua abaixo, arrastando o dono que ainda se agarra à manivela de arranque. Então o cais desmorona-se. Casas completas são batidas em pedaços pelo vento tremendo.

"Levei uma tareia valente," disse Keaton. "Tínhamos seis daqueles bebés motorizados da Liberty, e trabalhar à frente dessas máquinas de vento é mesmo duro. Passámos à frente de uma delas com um camião—e a máquina varreu-a pela margem até ao rio. Só uma máquina!"

"Buster corre para segurança para um hospital. O edifício inteiro é levantado pelo vento, deixando só o chão—e um Buster assustado, sentado numa das camas.

"Depois ocorre o momento mais celebrado de Keaton, provavelmente: a fachada de uma casa cai numa secção completa em cima dele. Mas ele continua de pé, encaixando-se a janela do sótão perfeitamente à sua volta."

Até Terça-Feira!