quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Le Cercle Rouge (1970) de Jean-Pierre Melville



por José Oliveira

Jean-Pierre Melville nasceu há cem anos, e foi este um dos pretextos para vermos em Braga uma pungente amostra da sua obra diversa e bastante complexa; o homem que nasceu Jean-Pierre Grumbach e acrescentou o Melville para homenagear o grande escritor americano poderia ser ainda uma continuação óbvia e certificada para o grande ciclo de Cinema Americano que levamos a cabo no último ano e meio, mas mesmo isso seria redutor. Se Melville sempre confessou o fascínio do cinema, da literatura e da cultura norte-americana, tudo transcendeu numa inquietação permanente. Le silence de la mer foi a sua primeira longa-metragem em 1949 – três anos depois de se ter estreado com os dezoito minutos de 24 heures de la vie d'un clown, um dia na vida de um palhaço e no universo do Circo, uma das suas enormes paixões, tal como Jacques Tati, de que voltaremos a falar – passada numa França ocupada pelos Nazis durante a segunda grande guerra mundial, intrincado poema a três onde um pai, uma filha e um intruso jogam e revertem o tabuleiro da sobrevivência e da dignidade, estacando e esfriando o sangue a favor de um estatuário iniciático e salvador que expõe geometricamente o lamentável da incomunicabilidade humana. Les enfants terribles foi a colaboração com Jean Cocteau, que impressionado com o extremo realismo e surrealismo no mesmo bloco e na mesma pedra do trabalho anterior, o convidou para o ajudar a adaptar uma novela da sua autoria; diz-se que é mais um filme de Cocteau do que de Melville, mas sendo Orfeu exactamente do mesmo ano e ainda ressoando sentinelas e gelos anteriores, não será assim tão fácil separar, precisamente, uma consanguinidade. Bob le flambeur, já de 56, traz para Paris os gangsters, gamblers, e muitas ambiências do filme policial americano, com um Roger Duchesne crepuscular e desencantado já abrir para as circularidades e as disciplinas de Le samouraï, o seu gesto e a sua construção mais indecifrável. Só que a partir daqui ainda não é só policial, crime, robótica e estilo, como se tem colado oficialmente a este grande cineasta misterioso, pois Léon Morin, prêtre, de 1961 busca finamente e despojadamente – lembra Robert Bresson mas com esgar fundo e assumido – sinais de transcendência, fazendo-nos ouvir e ver o que já ouvimos e vimos muitas vezes mas de forma reveladora: «Não acredito em Deus» diz Emmanuelle Riva, a perdida, a Jean-Paul Belmondo, o cura, redescobrindo este: «Se existissem provas, todos acreditariam. Não haveria a necessidade de acreditar. Você saberia, entenderia e veria. Não existiria fé aqui em baixo, aqui seria o paraíso». Le doulos, dois anos depois, conjuga a visceralidade das ruas e do crime com a ciência dos desenhos animados e da física, quimera exacta que Melville perseguirá até à obra-prima final e romântica que é Un Flic, com Catherine Deneuve a acender outra diafana luz neste universo contrastado. Podemos então dizer que numa parte da sua obra Melville busca o Deus lá de cima e noutra parte o Deus em cada um de nós, aqui na terra; o grande mistério da fé e o grande mistério dos homens; O Círculo Vermelho, o filme que hoje veremos, já de 1970 e o seu penúltimo, tem nos rostos, nos movimentos e nas decisões dos seus seres já o resultado de tais embates, com uma forma de uma precisão fora deste mundo onde o tempo literalmente se faz matéria em observação pasmosa, e uma emoção que se apresenta em elipse e no presente dorido, com o peso de uma existência inteira prestes a findar. Tempo em grande-plano, sem nunca estugar o passo por questões de estilo, e o que fizemos nesse tempo, o que fizemos ao tempo, rugas e golpes comuns. 

Melville completou cem anos e mantiveram-se os discursos críticos oficiosos e despachadores: voltou a falar-se muito de estilo e de gabardinas ao vento, de géneros e da realização glacial, da técnica pasmosa e muito pouco da carne e do arrepio; as personagens de O Círculo Vermelho são extremamente comoventes pela solidão que com elas experimentamos e que remete para a solidão que existe em cada um de nós, na superfície ou bem lá no fundo, pronta a surgir quando menos damos conta. Certa vez, não há muitos anos, como se fosse hoje, um professor catedrático disse num comboio a um seu ex-aluno, num encontro não combinado: «sou um personagem dos filmes do Melville... acordo às cinco da manhã, procuro um táxi, ando nestes comboios de um lado para o outro.... sempre em alta rotação e sem grande calor... faço o que tenho a fazer... tenho tudo o que quero... mas sou como um fantasma». O aluno e poucos na terra sabem que se trata do mais precioso e valente entre os professores. Os personagens de Melville são dos homens que já calcaram muito e já viram muito, e que sendo fieis demais a um código, a si próprios, preferem a sombra genuína à luz ilusória, os cinzentos do amanhecer aos dourados da fama. Bastaria quererem e teriam todo o espectáculo na palma da mão, feitos dessa massa, vivem o que tais nem sonham. 

O Círculo Vermelho começa sem palavras, com o furor do mundo a extravasar cada plano, a lutar com ele e com a sua descrição, as expressões faciais e o cansaço a dizerem tudo; muito próximo dos silêncios reveladores de Tati e de Bresson do que da ironia de Sergio Leone ou de Quentin Tarantino. Logo se percebe que a relação entre Bourvil e Gian Maria Volontè, o inspector e o preso quase fugitivo, já é de longa data, quase tudo o que é preciso saberem um do outro nesse contexto já sabem, os olhares tudo contam, e assim o silêncio é de ouro. Paralelamente um Alain Delon triste como a morte sem aviso ou como uma manhã desconsolada de inverno sem remissão, e mais por essa tristeza do que pelo diálogo vamos logo notar que vai apostar tudo no golpe que lhe oferecem. Um homem que passará o tempo do filme a recusar mulheres e a oferece-las, primeiro em fotografias ao largar a cadeia e depois a um ex-amigo, logo depois no flirt do café da manhã – momento de infância num segundo – depois uma madura nua atrás duma porta que se irá desmultiplicar nesse número musical atravancado, até lhe oferecerem a rosa encarnada das portas do céu ainda possíveis que ele recusará e entregará ao fugitivo que o acaso ou a predestinação juntou. 

O Círculo Vermelho tem a precisão dos relógios infalíveis e o vento do acaso, pondo em perfeita prática as prodigiosas leis da física e as engenharias mais fascinantes urdidas por um mestre dos mestres com a flutuação do existir e do imponderável, juntando não só os condenados de Delon e Volonté mas também o alcoólico Yves Montand que se condenou a si mesmo; comovente figura que recusa a parte do golpe que os tornará ricos e os libertará para simplesmente agradecer a confiança básica de qualquer relação verdadeira, numa beleza de último suspiro vivido por todos os outros aproveitados e desperdiçados. Mas se quem prepara o golpe forma um trio, não dá para deixar em claro que esse inspector vivido ou sobrevivido também aflitamente por Bourvil padece das mesmas causas e tormentos dos que caça, fugindo da humilhação da honestidade, samurai no meio dos seus gatos e já sabendo há muito da certeza do Dosteievskiano chefe da polícia: «Ninguém é inocente. Todos os homens são culpados. Eles nascem inocentes, mas isso não dura muito. (...) É a sua doutrina: o crime vive em nós, só nos basta querer alcançá-lo». Assim, o que todos buscam não são tanto as jóias ou os fugitivos mas a execução do trabalho e do destino que nos completa como seres-humanos por inteiro. Nem que seja à custa da solidão mais cruel, sem Deus, em carne-viva, longe das mulheres e do amor. Ficando o amor-próprio como absoluto, um pequeno rumor, quase nada. 

Para que se perceba definitivamente que o estilo, ou seja, a forma, só assim é para se ver em toda a grandeza que a técnica do cinema permite a complexidade extrema dos encontros e dos destinos: logo após a saída da prisão, quando Delon vai a casa de alguém pedir dinheiro e este lhe quer oferecer tudo, percebe-se que eles os dois, mais a tal da mulher atrás da porta, têm a mais intrincada das narrativas e das paixões, sem ser necessário recorrer ao sublinhado da palavra evasiva, basta as cabeças baixas, os dissimulares dos olhos ou das bocas, a vergonha consumida...; a confiança indestrutível como numa história de amor perfeita que se dá entre Delon e Volonté, o primeiro salvando-o da polícia sem ainda o conhecer, o segundo baixando a arma pela rectidão impossível de imitar, em redenção mútua, sem perguntas de verificação; o profissionalismo e empenho absolutos de Montand na sua função tendo em vista o agradecimento da salvação dos infernos e não a riqueza, empenho como reza e doutrina particulares; a sequência do assalto, acumular de detalhes tratados como soma total e contemplação do momento puro que é o caminho da salvação dos executantes, o seu devir e a sua eternidade; a liturgia, entre azuis celestiais e o ar rarefeito e de corpo presente, desse instante completo que é o ponto e o firmamento da razão de ser de cada um; ainda a personagem de Montand, a mais bela de todas: quase a sair do vale de chamas, talvez já no intermédio purgatório, chega rapidamente ao paraíso com a sua arte e a sua ciência, o seu Deus ele mesmo; as mulheres quase totalmente ausentes mas nunca acessórios, querubins de canto de igreja que tanto velam cada pecado como relembram cada paraíso; Volonté a poupar a vida a Bourvil na cena final, sem explicação nem nexo imediato, para este último logo depois terminar Montand e escancarar outro passado em ferida incurável nesse palco triste como o rosto de Delon onde só sobreviverá o mais velho, que talvez vá carregar todos os fardos; e a confirmação da inocência impossível, com tudo a encerrar-se e a cerrar-se na solidão do mais antigo pela noite adentro, rumo aos seus gatos e à sua consciência. Nesse círculo vermelho, as razões e os merecimentos para todos. 

O Deus em cada um ou um Deus para suplicarmos; a fidelidade aparente ou a fidelidade superior; um amor negociado ou o amor para lá de todas as regras. A facilidade do esperado ou os desígnios insondáveis. E assim Jean-Pierre Melville, mergulhado nas questões mais profundamente existencialistas, mergulhando nas noites contrárias ao dia e nas noites da alma, tudo nos pergunta. É só escolhermos. Os nossos Parabéns.

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