por José Oliveira
No nosso ciclo de cinema americano temos procurado ter lugar para todos. Tanto para os neons dos anos 80 e para filmes de estúdio onde se sente o cheiro e as agruras das calçadas e da noite – como The Color of Money – ou figuras tutelares da independência que não se coibiram de tentar produções de maior envergadura, como John Cassavetes ou Elaine May. Charles Burnett, o nosso homem para esta sessão, é outro caso precioso que tem levado a sua vida, experiência e comunhão para o ecrã, lutando sempre por uma liberdade que possibilite a fidelidade máxima, pegando na realidade pura e dura e alcançando a poesia das coisas vistas limpas e genuínas, sem a sujidade do lucro. Afro-americano, nascido em 1944 de uma enfermeira assistente e de um militar, ali quando a segunda grande guerra está a terminar, no estado sulista do Mississippi, muito cedo se mudou com a família para Watts, Los Angeles, bairro negro atingido por graves questões de ordem racial e sociológica, nomeadamente os trágicos motins de 1965 nos quais morreram muita gente. Com empregos diversos desde muito jovem, transportando e sentindo a eterna carga sulista – que estava igualmente muito presente nos habitantes de Watts – mas sentindo o chamamento da expressão artística como modo de transpor todo esse caldeirão existencial e a condição sempre vacilante, passou por cursos de escrita e de línguas, para depois se entregar definitivamente ao cinema, estudando na UCLA Film School e encontrando colaboradores que iriam ser decisivos no seu percurso, nomeadamente Larry Clark, Julie Dash, Haile Gerima, ou esse tão próximo Billy Woodberry, ainda hoje amigo de todas as horas. Com o Sul e toda esta pressão às costas, também podemos invocar William Faulkner e os desta casta.
Acompanhando os tumultuosos anos 60 e 70 da sociedade americana, que já vimos em diversos filmes do ciclo, Burnett e vários outros colegas Africanos ou Afro-americanos criaram grupos como o “the Black Independent Movement”, realizando filmes pobres mas verdadeiros e severos em relação à história do seu povo e ao seu presente, mostrando a classe genuinamente trabalhadora sem enfeites, a dureza da sobrevivência, o mundo dentro de outro mundo, a tensão entre as margens e o poder, tudo muito a ver com o neorrealismo ou com os diversos cinemas-novos que sem indústria iam selvaticamente ao cerne e à fome da questão (ou seja, aproximação e construção oposta aos blaxploitation movies, género de mérito próprio e com exemplares fabulosos que só veremos na homenagem de Quentin Tarantino para breve). Movimento ou comunidade muito atenta e activa, apelidou o seu cineclube de “Third World Film Club”, mostrando como o que filmavam correspondia a uma parcela inaceitável de gente desamparada e injustiçada. Serve isto para se tentar perceber a complexidade, a riqueza e o risco do trabalho de Burnett, uma delicadeza e uma partilha que não se desvenda pela pura e tradicional cinefilia, muito menos por dados adquiridos ou convenções raciais ou de “cinema independente”, mas que permanece ao mesmo tempo um retrato nítido do que conhece e uma poética que transcende o imediato e tudo reenvia aos confins do princípio, à Bíblia ou muito antes disso, lá para trás na terra assombrada ou nos ventres das Mães do poema de António Gedeão e da voz fiel de Adriano Correia de Oliveira, a Fala do Homem Nascido.
Killer of Sheep, de 1978, é a sua estreia a solo na longa-metragem. Filmada nos bairros onde se fez homem, é complicado fornecer uma sinopse concisa do que lá se passa, pois se acompanhamos uma ou outra personagem individualmente, o que nos envolve e devolve é toda uma constelação em movimento e nascimento, das brincadeiras das crianças ao erotismo adulto, dessa sedução e desejo omnívoro até à inocência inicial, onde a potência do som e dos seus elementos combinada com a música deles inventa a cada enquadramento, a cada gesto, em cada partícula um novo mundo que é o do cinema em relação com a humanidade que tactea. E seria isto que Miles Davis não conseguiu explicar por palavras quando disse que não fazia música mas sim «arte social» - os talhantes a desfazerem um animal e os longos cabelos de uma princesa, o silêncio dos não-ditos e o baile sinfónico da infância, os comboios mágicos a casarem com o pó do castelo deles, do seu terreno: a emoção de cada quadro comum apanhado o seu essencial. Mas antes de Killer of Sheep constam da sua filmografia duas curtas-metragens de difícil aceso: Several Friends (1969) e The Horse (1973), que Andy Rector, o crítico e artista americano, em conversa particular, classificou de «realismo socialista». My Brother's Wedding, já nos anos 80, é outra das suas grandes obras, onde os músicos cinzelados às sombras, resistentes às sombras, têm a mesma dimensão e grandiosidade do que Pedro Costa faria no seu bairro, abrindo para toda a magia do quotidiano visto sem julgamento. A partir daí é um sem fim de descobertas a se tentar, das séries para a televisão ao seu episódio para a série The Blues produzida por Martin Scorsese, dos documentários sobre a Namibia ou sobre o furacão Katrina até a obras completamente clandestinas que não figuram no IMDB (tem de se escrever aos amigos de Burnett pelo facebook e ter sorte, talvez Tom Andersom ou Woodberry), tais como: The Final Insult, de 1998 e em vídeo, feito junto dos sem-abrigo em LA. E muita mais coisa... muito experimento... completa fidelidade e amor... luta... coração... libertação... comunidade e fé mesmo nas tempestades.
Mas já vai longa esta, julgo, necessária introdução. To Sleep with Anger, o filme de hoje, foi para os desatentos o primeiro a sério de Burnett. Talvez por ter tido mais dinheiro do que o costume. Talvez porque tem Danny Glover, o extraordinário actor da série Lethal Weapon, com Mel Gibson. Importa começar por dizer que estamos perante um mistério fundo, temerário e fascinante, mesmo se a personagem de Glover poderá lembrar muitos outros drifters do cinema de Hollywood. Mistério pois trata-se de alguém que vem de lado nenhum, conquista tudo e todos, descobre as fraquezas escondidas e as forças inimaginadas, cega-se demais e cega demais, morre mas não morre de todo, tudo assombra e irradia. Esse profeta escandaloso atravessa o caminho todo e o lar todo. Anjo e Demónio com o bem e o mal quebrados os finos liames. A serpente e as pragas nos bolsos. O mar vermelho e a pedra de Lázaro aos fundos ou no imediato plano. Harry, nome da graça, reduz a pó o próximo entre idas e voltas à prometida terra nunca vista ao mesmo tempo que mete o caos burocrático na ordem primeira. Em pontuação, fundido ou complemento, o menino mais novo do mundo toca a trompeta da luz inaugural entre a terra revolvida, as aves dos altos aléns e os vórtices da nascença, Miles prolongado. Andamentos carregados de gravidez e de cadáveres permanentes, para ficar limpa a imagem do Novo Mundo que Burnett e os seus sempre perseguiram em forma de justiça, poética mas também ultra-terrena, poesia ultra-terrena, ou poesia terrena, talvez.
Poesia e agrura, eis a ousadia, eis o segredo. Talvez assim seja mais proveitoso evocar um disco como “Dark Magus”, Miles Davis, 1974. Ferragem carnívora, ventania revolucionária, fogo nuclear interno, tripas permanentemente tripas. O Punk, Chopin e os espinhos do calvário. A narrativa do centro dos centros. E - além do ritmo, dos mitos e do sabor dos blues - os grandes fotógrafos andarilhos e companheiros da grande-depressão - e das depressões outras que os monstros preferem manter vivas para encherem a barriga - que assolou as terras do uncle Sam e todas as terras: os grandes retratistas das épocas em questão, de Walker Evans (e do comparsa James Agee) até W. Eugene Smith, de Dorothea Lange a Robert Frank, de muitos que não fizeram nome mas que em casa têm centenas de álbuns, que foram frontais, mas ternos; descarnados e protectores.
Caberá a cada um olhar o que está focado em campo, a movimentação e a palavra, e perceber todo o outro campo sónico e cósmico que apela e chega da eternidade. As barreiras, os limites do percebido real que jamais trai a história e cada um a enlaçar com a féerie da loucura e do sonho arrancados a tanta ostracização. Burnett, um lutador e um poeta como Spike Lee ou Malcom X, também foi a todos os lados e de lá saiu mais rico porque fortalecido. Fiquemos com uma sua declaração tão útil para se perceber o outro lado do cinema americano e da capacidade de resistência. E bem-aventurados os que vão por trilhos destes, no cinema, na fotografia ou no centro de emprego:
«Hollywood tem esta psicologia—há toda esta mentalidade de plantação em que é tudo sobre o poder e alguém nos tentar impor os seus valores. É de doidos, eles dizem-nos como é que se contam histórias sobre pessoas com quem nunca entraram realmente em contacto. Executivos, revisores de argumento, executivos de produção só interagem com pessoas do tipo deles portanto como é que iam saber o que é aceitável para as pessoas de côr? Não é nem nunca foi para fornecer um olhar diferente para com a vida. É tudo vindo e pensado para um público branco. E devido a esse facto, este grupo de pessoas que determina o que o mundo vê não tem uma ideia, nem uma pista do que é a realidade. É produto da arrogância e do poder. A nossa opinião é vista como um ataque pessoal. Se se tenta ir além dos estereótipos e reflectir pessoas verdadeiras que partilham as mesmas preocupações com toda a gente, dizem-nos que as nossas personagens não são “pretas” que chegue, ou para usar mais palavrões porque a linguagem não é “real” que chegue. Tem que se ter drogas e gangsters. Uma pessoa que viu To Sleep With Anger disse, “Não sabia que os negros tinham máquinas de lavar!” Onde é que eles foram buscar essa noção? Bom, de certa maneira foi uma observação honesta porque Hollywood mostra-nos pobres e sujos sem quaisquer meios de subsistência excepto se formos rappers ou prostitutas ou vendermos drogas. Têm esta noção do que os filmes devem ser, e de quais são as realidades do nosso meio, e se chegarmos com o que é verdadeiro, isso para eles torna-se irreal, de certo modo. É importante contar a nossa própria história, e quando vemos outras pessoas a contar a nossa história, e [quando] alguém nos nega a nossa realidade, e nos diz como é a nossa família e a nossa avó—quão ultrajante se pode tornar? Temos que ser capazes de contar as nossas histórias e partilhá-las com o resto do mundo. De que outra forma é suposto as coisas mudarem?»
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