quarta-feira, 12 de abril de 2017

To Sleep with Anger (1990) de Charles Burnett



por José Oliveira

No nosso ciclo de cinema americano temos procurado ter lugar para todos. Tanto para os neons dos anos 80 e para filmes de estúdio onde se sente o cheiro e as agruras das calçadas e da noite – como The Color of Money – ou figuras tutelares da independência que não se coibiram de tentar produções de maior envergadura, como John Cassavetes ou Elaine May. Charles Burnett, o nosso homem para esta sessão, é outro caso precioso que tem levado a sua vida, experiência e comunhão para o ecrã, lutando sempre por uma liberdade que possibilite a fidelidade máxima, pegando na realidade pura e dura e alcançando a poesia das coisas vistas limpas e genuínas, sem a sujidade do lucro. Afro-americano, nascido em 1944 de uma enfermeira assistente e de um militar, ali quando a segunda grande guerra está a terminar, no estado sulista do Mississippi, muito cedo se mudou com a família para Watts, Los Angeles, bairro negro atingido por graves questões de ordem racial e sociológica, nomeadamente os trágicos motins de 1965 nos quais morreram muita gente. Com empregos diversos desde muito jovem, transportando e sentindo a eterna carga sulista – que estava igualmente muito presente nos habitantes de Watts – mas sentindo o chamamento da expressão artística como modo de transpor todo esse caldeirão existencial e a condição sempre vacilante, passou por cursos de escrita e de línguas, para depois se entregar definitivamente ao cinema, estudando na UCLA Film School e encontrando colaboradores que iriam ser decisivos no seu percurso, nomeadamente Larry Clark, Julie Dash, Haile Gerima, ou esse tão próximo Billy Woodberry, ainda hoje amigo de todas as horas. Com o Sul e toda esta pressão às costas, também podemos invocar William Faulkner e os desta casta. 

Acompanhando os tumultuosos anos 60 e 70 da sociedade americana, que já vimos em diversos filmes do ciclo, Burnett e vários outros colegas Africanos ou Afro-americanos criaram grupos como o “the Black Independent Movement”, realizando filmes pobres mas verdadeiros e severos em relação à história do seu povo e ao seu presente, mostrando a classe genuinamente trabalhadora sem enfeites, a dureza da sobrevivência, o mundo dentro de outro mundo, a tensão entre as margens e o poder, tudo muito a ver com o neorrealismo ou com os diversos cinemas-novos que sem indústria iam selvaticamente ao cerne e à fome da questão (ou seja, aproximação e construção oposta aos blaxploitation movies, género de mérito próprio e com exemplares fabulosos que só veremos na homenagem de Quentin Tarantino para breve). Movimento ou comunidade muito atenta e activa, apelidou o seu cineclube de “Third World Film Club”, mostrando como o que filmavam correspondia a uma parcela inaceitável de gente desamparada e injustiçada. Serve isto para se tentar perceber a complexidade, a riqueza e o risco do trabalho de Burnett, uma delicadeza e uma partilha que não se desvenda pela pura e tradicional cinefilia, muito menos por dados adquiridos ou convenções raciais ou de “cinema independente”, mas que permanece ao mesmo tempo um retrato nítido do que conhece e uma poética que transcende o imediato e tudo reenvia aos confins do princípio, à Bíblia ou muito antes disso, lá para trás na terra assombrada ou nos ventres das Mães do poema de António Gedeão e da voz fiel de Adriano Correia de Oliveira, a Fala do Homem Nascido. 

Killer of Sheep, de 1978, é a sua estreia a solo na longa-metragem. Filmada nos bairros onde se fez homem, é complicado fornecer uma sinopse concisa do que lá se passa, pois se acompanhamos uma ou outra personagem individualmente, o que nos envolve e devolve é toda uma constelação em movimento e nascimento, das brincadeiras das crianças ao erotismo adulto, dessa sedução e desejo omnívoro até à inocência inicial, onde a potência do som e dos seus elementos combinada com a música deles inventa a cada enquadramento, a cada gesto, em cada partícula um novo mundo que é o do cinema em relação com a humanidade que tactea. E seria isto que Miles Davis não conseguiu explicar por palavras quando disse que não fazia música mas sim «arte social» - os talhantes a desfazerem um animal e os longos cabelos de uma princesa, o silêncio dos não-ditos e o baile sinfónico da infância, os comboios mágicos a casarem com o pó do castelo deles, do seu terreno: a emoção de cada quadro comum apanhado o seu essencial. Mas antes de Killer of Sheep constam da sua filmografia duas curtas-metragens de difícil aceso: Several Friends (1969) e The Horse (1973), que Andy Rector, o crítico e artista americano, em conversa particular, classificou de «realismo socialista». My Brother's Wedding, já nos anos 80, é outra das suas grandes obras, onde os músicos cinzelados às sombras, resistentes às sombras, têm a mesma dimensão e grandiosidade do que Pedro Costa faria no seu bairro, abrindo para toda a magia do quotidiano visto sem julgamento. A partir daí é um sem fim de descobertas a se tentar, das séries para a televisão ao seu episódio para a série The Blues produzida por Martin Scorsese, dos documentários sobre a Namibia ou sobre o furacão Katrina até a obras completamente clandestinas que não figuram no IMDB (tem de se escrever aos amigos de Burnett pelo facebook e ter sorte, talvez Tom Andersom ou Woodberry), tais como: The Final Insult, de 1998 e em vídeo, feito junto dos sem-abrigo em LA. E muita mais coisa... muito experimento... completa fidelidade e amor... luta... coração... libertação... comunidade e fé mesmo nas tempestades. 

Mas já vai longa esta, julgo, necessária introdução. To Sleep with Anger, o filme de hoje, foi para os desatentos o primeiro a sério de Burnett. Talvez por ter tido mais dinheiro do que o costume. Talvez porque tem Danny Glover, o extraordinário actor da série Lethal Weapon, com Mel Gibson. Importa começar por dizer que estamos perante um mistério fundo, temerário e fascinante, mesmo se a personagem de Glover poderá lembrar muitos outros drifters do cinema de Hollywood. Mistério pois trata-se de alguém que vem de lado nenhum, conquista tudo e todos, descobre as fraquezas escondidas e as forças inimaginadas, cega-se demais e cega demais, morre mas não morre de todo, tudo assombra e irradia. Esse profeta escandaloso atravessa o caminho todo e o lar todo. Anjo e Demónio com o bem e o mal quebrados os finos liames. A serpente e as pragas nos bolsos. O mar vermelho e a pedra de Lázaro aos fundos ou no imediato plano. Harry, nome da graça, reduz a pó o próximo entre idas e voltas à prometida terra nunca vista ao mesmo tempo que mete o caos burocrático na ordem primeira. Em pontuação, fundido ou complemento, o menino mais novo do mundo toca a trompeta da luz inaugural entre a terra revolvida, as aves dos altos aléns e os vórtices da nascença, Miles prolongado. Andamentos carregados de gravidez e de cadáveres permanentes, para ficar limpa a imagem do Novo Mundo que Burnett e os seus sempre perseguiram em forma de justiça, poética mas também ultra-terrena, poesia ultra-terrena, ou poesia terrena, talvez. 

Poesia e agrura, eis a ousadia, eis o segredo. Talvez assim seja mais proveitoso evocar um disco como “Dark Magus”, Miles Davis, 1974. Ferragem carnívora, ventania revolucionária, fogo nuclear interno, tripas permanentemente tripas. O Punk, Chopin e os espinhos do calvário. A narrativa do centro dos centros. E - além do ritmo, dos mitos e do sabor dos blues - os grandes fotógrafos andarilhos e companheiros da grande-depressão - e das depressões outras que os monstros preferem manter vivas para encherem a barriga - que assolou as terras do uncle Sam e todas as terras: os grandes retratistas das épocas em questão, de Walker Evans (e do comparsa James Agee) até W. Eugene Smith, de Dorothea Lange a Robert Frank, de muitos que não fizeram nome mas que em casa têm centenas de álbuns, que foram frontais, mas ternos; descarnados e protectores. 

Caberá a cada um olhar o que está focado em campo, a movimentação e a palavra, e perceber todo o outro campo sónico e cósmico que apela e chega da eternidade. As barreiras, os limites do percebido real que jamais trai a história e cada um a enlaçar com a féerie da loucura e do sonho arrancados a tanta ostracização. Burnett, um lutador e um poeta como Spike Lee ou Malcom X, também foi a todos os lados e de lá saiu mais rico porque fortalecido. Fiquemos com uma sua declaração tão útil para se perceber o outro lado do cinema americano e da capacidade de resistência. E bem-aventurados os que vão por trilhos destes, no cinema, na fotografia ou no centro de emprego:

«Hollywood tem esta psicologia—há toda esta mentalidade de plantação em que é tudo sobre o poder e alguém nos tentar impor os seus valores. É de doidos, eles dizem-nos como é que se contam histórias sobre pessoas com quem nunca entraram realmente em contacto. Executivos, revisores de argumento, executivos de produção só interagem com pessoas do tipo deles portanto como é que iam saber o que é aceitável para as pessoas de côr? Não é nem nunca foi para fornecer um olhar diferente para com a vida. É tudo vindo e pensado para um público branco. E devido a esse facto, este grupo de pessoas que determina o que o mundo vê não tem uma ideia, nem uma pista do que é a realidade. É produto da arrogância e do poder. A nossa opinião é vista como um ataque pessoal. Se se tenta ir além dos estereótipos e reflectir pessoas verdadeiras que partilham as mesmas preocupações com toda a gente, dizem-nos que as nossas personagens não são “pretas” que chegue, ou para usar mais palavrões porque a linguagem não é “real” que chegue. Tem que se ter drogas e gangsters. Uma pessoa que viu To Sleep With Anger disse, “Não sabia que os negros tinham máquinas de lavar!” Onde é que eles foram buscar essa noção? Bom, de certa maneira foi uma observação honesta porque Hollywood mostra-nos pobres e sujos sem quaisquer meios de subsistência excepto se formos rappers ou prostitutas ou vendermos drogas. Têm esta noção do que os filmes devem ser, e de quais são as realidades do nosso meio, e se chegarmos com o que é verdadeiro, isso para eles torna-se irreal, de certo modo. É importante contar a nossa própria história, e quando vemos outras pessoas a contar a nossa história, e [quando] alguém nos nega a nossa realidade, e nos diz como é a nossa família e a nossa avó—quão ultrajante se pode tornar? Temos que ser capazes de contar as nossas histórias e partilhá-las com o resto do mundo. De que outra forma é suposto as coisas mudarem?»

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