terça-feira, 18 de abril de 2017

A Perfect World (1993) de Clint Eastwood



por José Oliveira

Finalmente, Clint Eastwood, realizador. Depois de já ter passado algumas vezes como actor pelo nosso cineclube. Das muitas obras-primas que realizou na década de 90, escolhemos A Perfect World; poderíamos ter escolhido o anterior Unforgiven, drama moral ampliado ou trucidado pelo apagar do Western, ou o posterior The Bridges of Madison County, com a exposição do minguar do tempo em primeiro plano; e foi preciso bastante para se perceber Absolute Power como melodrama essencial, no osso, planante, ou o cinismo desesperante de True Crime a fazer tudo por tudo por nos abrir os olhos e nos acordar da lanzeira que nos é injectada diariamente pelo poder absoluto das aparências. Emocionalmente dilacerante, é bem representativo do classissismo complexo do homem que aprendeu com Don Siegel ou Sergio Leone. Road-movie aparentemente linear, literalmente pela América fora, encontra na relação entre o fugitivo Kevin Costner e a criança raptada todos os desvios e infracções à norma, ao bem e ao mal, luz e escuridão. Todas as perguntas que normalmente evitamos, o nosso lado esconso e a perfeição. E se Clint teve muitos mestres, estamos perante uma obra de respiração e resoluções sem par, aberta à compreensão e ao inesperado. Com um Kevin Costner ao lado da complexidade e fidelidade de Gary Cooper. 

No princípio, logo após a fuga da prisão e o rapto, seguimos com três, mas eles logo percebem e nós percebemos com eles qual é o elemento que ali não cabe. Elemento estranho estranho à raça dos solitários, dos que têm de estar sozinhos mas que podem estar acompanhados com os poucos que os entendem, neste caso dois que tiveram um pai que não vale um chavo. Então, ficam dois, o criminoso e a criança inocente, e imediatamente todo o esperado da caça ao homem se vai reverter, estranhamente também. Logo que se começa a perceber que o Butch de Costner não é o tipo diabólico que levará tudo à frente para saltar a fronteira – super-inteligência um pouco à deriva mesmo prevendo onde está o paraíso perdido - também a relação entre os dois salta uma barreira nunca calculada. Butch, que logo no primeiro encontro lhe entregou a pistola, estabelecendo a confiança com a eterna brincadeira do “mãos ao ar”, trata-o sempre, sem excepção, como um igual, dotado da mesma inteligência do que ele e sabendo que o miúdo o percebe tão bem como ele. O adulto deixa a criança decidir coisas, decidir o que quer fazer, não impondo, e então a criança vai descobrindo o pai que nunca teve e o adulto vislumbrando o que poderia ter sido. 

Bastante complexo, ainda antes de poder ser ambíguo, trocando as voltas ao que estabelecemos como o bem sem sombras para dúvidas e o mal como seu oposto, fazendo das zonas escuras razões tremendas e do que se crê límpido algo a se pensar e analisar outra vez e com mais cuidado. E daí a montagem em paralelo com o chefe de polícia interpretado significativamente por Clint Eastwood, com Laura Dern – que Clint aprende a tratar como Butch trata a criança – e o restante grupo, analistas estupefactos de acontecimentos extraordinários que se desviam da perfeição que eles esperavam no seu “caso de polícia” - grupo e situação que pode remeter para os heteróclitos e surpreendentemente modernos grupos dos filmes de Howard Hawks. Quando todos pensavam no estado mais escabroso da relação entre os fugitivos, vai-se ver claramente que se estão a dar bem. E o filme começa a guinar ainda mais, como na mudança de marcha depois da buzina amigável. Butch projecta-se mais e mais na criança que por causa da crença da mãe pouco conhece do que conhecem as outras crianças, e vai-lhe oferecendo de tudo, da montanha russa à possibilidade de foguetões, transformando-o num fantasminha que só assim poderá viver a perfeição do risco. 

E é pouco depois de este pai mostrar a este filho o que poderá ser o verdadeiro Mundo Perfeito – essa imagem do Alasca como lugar inóspito, apenas o Homem contra a Natureza, longe das regras e mecanismos do imperfeito mundo social – que chega a cena central do filme, baralhando tudo e misturando novamente o escuro e o claro, a regra e a excepção. Aquando do encontro com os negros e depois da cena da absoluta comunhão fraternal e musical – essa dança mais do que clássica entre todos menos um verdadeiro pai – o verdadeiro pai vai agredindo um verdadeiro filho e tanto Butch como o fantasminha se sentem vilipendiados, mas Costner, talvez por ser o mais velho dos dois e conhecer mais do que a natureza humana pode praticar e aonde a condição humana pode chegar, não perdoa e decide castigar. O fantasminha, talvez ainda por não conseguir dar o devido troco ao medo, vacila, e como resposta ao “já tens idade para pensares por ti próprio”, sente que certos limites foram ultrapassados, pressente uma quebra dos elos da confiança, puxa do gatilho. Pode-se arranjar mil e uma teorias, mas não se pode ter certezas nas justificações para o que ali se passou – actos, o irracional, a memória, teias do passado a voltarem fortes e a roubarem o chão. 

Fustigados assim só podemos voltar ao princípio, em campo aberto, com muito sol e muita luz, para se ficar a perceber nada de nada, que é a última coisa que a personagem de Eastwood diz e que é a síntese do caminho que se percorreu, máquina do tempo onde a redenção se tornou o pilar basilar da nossa condição e salvação. Entre tantas excepções e regras de ouro, ou entre tantas regras e excepções de ouro, sobeja aquilo que o incomparável argumentista Ben Hecht escreveu para Legend of the Lost, realizado por um dos pilares do classicismo cinematográfico, Henry Hathaway: «Pode-se começar de novo. Podes fazê-lo... Todo o mundo pode fazer o que deseja. O pecado não nos converte em pecadores. O pecado é uma ferida que se cura». Tal e qual a lição ou o exemplo de Unforgiven, quando Eastwood nos faz entender que o pior dos bichos-do-mato, «Iadrão e assassino bem conhecido, dum temperamento notoriamente dissoIuto e vioIento», pode ainda acertar os ponteiros do relógio com a humanidade. 

Butch entrega à verdadeira mãe um fantasminha, pedindo para ele os doces negados não como gulosice mas antes como a infância radiante que se deve viver e aproveitar, mas este volta para trás e agradece tudo ao pai que não o pode ser, agradece-lhe a possibilidade do mundo perfeito. E a grandeza deste filme sagrado, porque não brinca com o que não se pode brincar, não brinca com regras e excepções de ouro, é que ao mostrar o mundo em tamanha imperfeição, entre tantos cadáveres e violência gráfica, nos deixa numa certa paz com os homens – João Bénard da Costa escreveu a propósito deste filme e disto: «Mas foi por causa dessas palavras, do tiro do miúdo, do soco de Clint Eastwood e do pontapé de Laura Dern que me reconciliei com o mundo e com os homens e que voltei a acreditar que um e outros, às vezes, podem ser perfeitos. As estrelas do céu por cima de nós e a lei moral dentro de nós? Professor Immanuel, é mais ou menos isso.» - expondo-nos, carregado de tanta luminosidade, que o bem pode brotar do lugar mais inóspito, e que se calhar vale a pena procurar e acreditar. São as palavras finais de Clint, “o durão dos durões”, afinal, uma certa acalmia na aflição. Uma certa reconciliação. 

[Se por isto tudo estamos perante um fundo e assombrado filme político, o presente onde a narrativa se situa, os anos do presidente Kennedy pouco antes do seu assassinato, poderia encher de retórica este fino percurso, tornar tudo auto-consciente entre o atirador que no final se queima por alvejar a escória de Butch e o atirador que alvejou JFK, entre o profissional que pede desesperadamente o OK fatal para o curriculum e para o ego e esse fantasmático Lee Harvey Oswald com as suas razões ou loucura. Só que Clint prefere espelhar para a eternidade e esse lado quase não se nota – uma ou outra vez o nome do presidente e o contexto político é mencionado de mansinho, sem barulho, nada mais – fazendo ver que tanto nos anos de 1960, como nos 1990 ou agora que o revemos ou descobrimos, tanto o lado animalesco intrínseco a qualquer ser como o medo global da coexistência - fama ou terrorismo - continuam em actualizações permanentes e maquiavélicas, como os computadores que as pedem ou param de trabalhar. Mas fiquemos com a reconciliação, fonte primordial.]

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