quarta-feira, 5 de abril de 2017

Desperate Hours (1990) de Michael Cimino



por João Palhares

Para este regresso de Michael Cimino com Desperate Hours, pode-se voltar a The Chase de Arthur Penn e relembrar as obras mutiladas por estúdios, cuja influência não era tão forte que travasse a raiva contida dos seus realizadores e que irrompia por todos os planos. Pode-se falar dos Mão Morta, que perto da Sé Catedral ou dentro do Teatro Circo, acordavam a raiva contida e o bicho adormecido de quem os ouvia, não chegando facadas auto-infligidas nas pernas para os impedir de se erguerem e tomarem os seus prisioneiros. Em Braga, cidade dos arcebispos e que acumula fúria e contrições por cada reunião pública cordial demais para resolver problemas, por cada trato mal resolvido na sombra, por cada espectáculo risível que não se denuncia mas se aplaude.

Falou-se de lobisomens e vários monstros na folha de Gremlins 2 portanto volte-se aí também. Um filme cativa-nos por despertar, apaziguar ou pôr simplesmente em evidência as coisas que se escondem sob a superfície, a palpitar e à espera, à flor da pele. Não vem até nós pelas histórias, ou não só pelas histórias, mas por mostrar o que se passa dentro das pessoas quando vão do ponto A ao ponto B. Quem é que está à espera delas? Podem partir ou é ponto inalcançável, ponto de fuga das mil possibilidades e das mil encruzilhadas? Podem regressar ou é ponto de não retorno? Se a velocidade no percurso é inebriante isso diz-nos que ao chegarem ao seu destino as pessoas se vão ter que debater com questões de vida ou de morte, que é imensa a urgência da missão de se ganharem a si próprias. É o que espera o Tim Cornell de Anthony Hopkins, em Desperate Hours, quando regressa a uma casa que vimos ter deixado de ser sua e se bate com o Michael Bosworth de Mickey Rourke como se lutasse consigo mesmo, em frente a um espelho.

Os três homens que invadem a casa dos Cornells são os exilados da vida, para sempre do outro lado da barricada dos subúrbios da classe alta, cujos habitantes só conhecem ou encontram em situações de conflito, que está sempre patente nos planos de Cimino. As sequências mutiladas pela equipa de Dino de Laurentiis acentuam esse sentimento de conflito e, se não ficamos a saber qual seria a intenção original de Cimino nem se possa dizer que este filme seja tão bom como The Deer Hunter, Heaven's Gate, Year of the Dragon ou The Sunchaser (as quatro obras-primas de Cimino), passa a ideia de que todas as personagens deste filme tentam regressar a um paraíso perdido, nunca possível pela forma como o país se fechou (e se calhar até esteve sempre fechado) para os que sonham com as grandes oportunidades que nunca tiveram e nunca hão-de ter. Lembre-se a morte da personagem de Jeff Bridges em Thunderbolt and Lightfoot, com os olhos postos no horizonte dessas possibilidades, que ecoa aqui na morte da personagem de David Morse, Albert, que o destino encaminha para um fojo mortal onde ainda consegue assobiar o Red River Valley, canção centenária das grandes saudades e dos grandes apelos, não restando dúvidas de que o que quer é só "a place to call my own". E se era só isso o que queriam aqueles três homens?

"Michael Bosworth is looking for a place to call home... Just for a few hours", diz o poster de Desperate Hours. E se é verdade que esta ideia se tornaria palpável e material caso a montagem fosse a de Cimino (e note-se que apesar dos muitos problemas e das muitas batalhas que teve com os estúdios, este filme é o único da obra dele que não tem uma montagem sua), também é verdade que conhecendo os seus outros filmes a ideia ganha muita força. Mas quando começa o filme e Tim Cornell chega a uma casa completamente dilacerada, sabemos que algo vai explodir, sobretudo tendo já visto a personagem de Kelly Lynch a bulir pela estrada com um nervosismo desesperado. Os demónios da família Cornell estão prestes a vir ao de cima e quando Cimino nos mostra que o Michael de Rourke e o Wally de Elias Koteas são irmãos e que o Tim Cornell de Hopkins é veterano da guerra do Vietname aponta a problemas ainda maiores, ficando a certeza que os demónios e a raiva contida (voltando ao princípio deste texto) são da América inteira.

E nessa noite que podia ser de lua cheia ("I'm gonna break in like the big bad wolf", não é o que diz Hopkins quando entra em casa pela segunda vez e já lá estão os três homens? - e não são as histórias sobre lobos recorrentes nos filmes de Cimino?), em que os lobos tiram as suas peles de cordeiro, todos se confessam pela violência e pelo desespero. Dispara-se em todas as direcções, arrisca-se por todos os meios possíveis na esperança de um lugar ao sol. Como nas várias tentativas de Cornell em recuperar a sua casa e o respeito da sua família ou como na fatídica fuga de Albert, que provoca o seu próprio destino ao querer fugir com a vontade toda que acumulou durante os anos numa só investida. Com todo o som e com toda a fúria. Como com todos os desejos adormecido que acordam num lampejo exasperado, a solução é a aniquilação e a tragédia é inevitável. Restam as perguntas e a inquietação. Só quando chegar The Sunchaser, que projecta toda a obra de Cimino nos séculos vindouros, é que a tragédia se volve em redenção e chegam as respostas e o entendimento.

Não há obra mais coerente do que a de Michael Cimino.

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