Com este remake de um filme-cerco de William Wyler com Humphrey Bogart também chamado The Desperate Hours, Cimino, regressado dos grandes exteriores da Sicília, não consegue limitar-se ao cenário da
casa sitiada, levando os seus bandidos várias vezes para a acalmia repousante da natureza, intercalando-a com a velocidade frenética da estrada. O sonho e a família americanos voltam a ser questionados e
postos à prova pela resiliência e pelo carácter destes ladrões e raptores que são muito mais do que aquilo que poderiam parecer ao princípio.
Quem são os polícias, quem sãos os ladrões, o que é uma boa ou uma má acção no grande esquema das coisas? Sob o risco de não vermos estas questões respondidas, voltemos nesta nossa próxima sessão à obra de Michael Cimino, que sempre soube que a procura era o que realmente
interessava.
Cimino, neste excerto de uma entrevista à Les Inrockuptibles em 1993 traduzido por Manuel Cintra Ferreira e presente no catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado ao cineasta, diz que Desperate Hours "foi tirado de uma peça de teatro. Por natureza, a envergadura do filme é, pois, diferente. O desenvolvimento orgânico da história não permitia explorar a grandiosidade. Apesar disso, metade do filme passa-se em exteriores. Herman Melville disse que o espaço era um elemento fundamental na América. Temos este país, de uma beleza incrível, principalmente no Oeste. O cenário, as dimensões das paisagens do Oeste são avassaladoras, tem-se a sensação de que este espaço se estende até ao fim do universo. O espaço é o tema da América. Mas damos-lhe pouca atenção, na maior parte das vezes somos inconscientes. Somos cegos quando a temos diante dos olhos. Alguns grandes fotógrafos como Hansel Adams souberam captar as imagens. Mas a maior parte das vezes ignoramo-lo, atravessamo-lo de carro, compramos postais e somos incapazes de o integrar em nós mesmos. Recordo-me de um voo, há anos, entre Nova Iorque e a Califórnia. O dia estava magnífico, o sol brilhava, era de tarde. O piloto anunciou de súbito: "Senhoras e senhores, à direita do avião, o mundialmente célebre Painted Desert do Sudoeste", e ninguém no avião se interessou, ninguém espreitou pelas vigias, toda a gente bebia o seu brandy, comia, fumava charutos. Todos ignoraram este majestoso espectáculo. No dia seguinte tinha de filmar uma publicidade para a Pepsi ou para a Coca na Disneyland. Há ali uma reconstituição em miniatura do Painted Desert. Centenas de pessoas fotografavam o falso deserto! Não consigo compreender que na América, a réplica, a fotocópia provoque um fascínio maior do que a coisa real. É o revelador da nossa personalidade, o que é bastante curioso.
"Em Desperate Hours nenhuma das personagens presta atenção ao que a rodeia. Ninguém repara no espaço, na beleza do céu, na beleza das montanhas. É típico da América: olhamos para o relógio sem parar, preocupamo-nos mais com o lugar onde temos de estar a seguir do que com o lugar onde nos encontramos. Algures, estamos sempre desesperados. A única personagem que repara na beleza do lugar, e absorve a beleza do espaço é, ironicamente, o mais simplório, o mais infantil, o mais inocente. No momento preciso que precede a sua morte, ele pára para absorver tudo.
"Conheci muitas pessoas que tentaram suicidar-se. Dizem sempre o mesmo: antes de carregar no gatilho, tudo se intensifica. O azul do céu torna-se o mais azul dos azuis, o vermelho, o mais vermelho dos vermelhos, as cores tornam-se intensas, o som torna-se intenso, ouve-se a água, as aves. Tudo é magnificado. É por isso que, nesse momento preciso, tentei tornar tudo de uma beleza sobrenatural. Apenas as pessoas próximas da infância podem apreciar estes lugares."
Christophe Fouchet, no seu blog Avis sur des films, escreveu sobre o filme, dizendo que "Os defensores da política dos autores podem ligar facilmente esta encomenda ao resto da obra de Michael Cimino graças à avalanche de signos que fazem da família atacada a família americana por excelência mas também e sobretudo graças às fugas dos espaços fechados em direcção aos desfiladeiros do Far-West que são de uma serenidade magnífica. Contudo, o que faz desta nova versão das Horas de Desespero um filme a merecer bastante melhor que a reputação desastrosa dada por certos fãs do cineasta, desapontados pela ausência de ambição aparente do projeto, é o irrompimento de um estilo que consegue apagar o artifício de vários pretextos dramáticos: a elegância dos movimentos de câmara, a secura precisa da montagem, a sensibilidade pela beleza das paisagens, a expressividade das iluminações e a sumptuosidade hermanniana da música denotam a implicação dum arquitecto e conferem a este policial modesto um aspecto mais sofisticado."
Até Terça-Feira!
Até Terça-Feira!
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