sábado, 19 de dezembro de 2020

The Apartment (1960) de Billy Wilder



por João Palhares

Pelos vistos, a inspiração original para o filme que hoje vamos ver, foi outro filme, de David Lean, o famosíssimo Breve Encontro entre Celia Johnson e Trevor Howard de 1945. Billy Wilder viu essa obra exasperadamente romântica ambientada ao som do segundo concerto para piano e orquestra de Sergei Rachmaninoff, que também usou na banda-sonora do seu O Pecado Mora ao Lado com Marilyn Monroe de 1955, e concentrou-se essencialmente e de forma bastante curiosa numa personagem secundaríssima, Stephen Lynn, que cede o apartamento ao par de apaixonados que se conhece naquela estação de comboios inglesa. A Cameron Crowe, nos anos 90, confessou mesmo ter pensado “então e o tipo que se tem de arrastar para aquela cama quente? Essa é uma personagem interessante. Então anotei isso, e anotei outras coisas no meu bloco de notas. O herói daquela coisa era o tipo que suportava isto, que era apresentado a tudo por uma mentira. Um tipo na companhia dele precisava de mudar de roupa, dizia ele, e usava o apartamento... e foi isto.”[1] 
 
Não é de admirar que uma personagem que esteja sempre disposta a emprestar o seu apartamento para pequenas aventuras amorosas e adúlteras, à custa de noites muito mal dormidas, constipações bem graves e facadas na própria reputação diante dos vizinhos, que fazem dele um Giacomo Casanova ou um pequeno marquês de Sade, comece a meditar bem a sério na sua relação com o mundo, porque no final das contas é possível passar uma vida inteira a oferecer as mãos e os braços aos outros sem receber o que quer que seja em troca. Affection-wise. Talvez seja essa carência fundamental, que pode dar em chaga insuportável se se beber o suficiente, e se representa por uma secretária entre cem secretárias iguais numa grande empresa de seguros, esperas calmas em recepções vazias à porta de elevadores, encontros frustrados à entrada de teatros, ou noites muito solitárias em balcões de bares, a conceder a O Apartamento um lirismo e uma universalidade ainda inabaláveis. A toda a prova, sessenta anos depois. Jack Lemmon e Shirley MacLaine como todos aqueles que vivem as promessas dos dias durante noites em claro, se sentem sós estando sozinhos ou acompanhados, ou deixam escapar uma centelha nos olhos quando a vida lhes sorri só mesmo um bocadinho. Os que em vez de levar se deixam ser levados. Está bom para santos, para seres humanos nem por isso. 
 
Mas se essa melancolia e essa solidão se sentem, e às vezes de forma insuportável, é por força da câmara de Wilder, que afinal não era tão apegado aos seus guiões perfeitos e acabados que o impedisse de escrever novas cenas inspirado por locais, gestos, olhares e pelo momento durante a própria rodagem. Daí o efeito caleidoscópico das cem secretárias, daí as personagens encurraladas em si mesmas diante de salões de entrada vazios ou vastas paredes e móveis de apartamentos, daí a pista sintética dada por um espelho partido que anda de mão em mão durante uma secção importante do filme, daí esse plano fabuloso de um telefone ameaçador em primeiro plano a tentar destronar o amor próprio de uma pessoa quase desfeita (o da nota, também), daí a simetria sempre desarmante e milagrosa do último plano do filme. Pode desaguar tudo, mas mesmo tudo, como flagelos que atingem a carne e a mente, na sequência basilar da noite de véspera de Natal. Imersos em álcool e comprimidos, um homem e uma mulher são acordados para a vida por um anjo da guarda que também se há-de vestir de branco por profissão. Ela, literalmente. Ele, e à falta de melhor expressão, de forma espiritual. Vemos então um corpo estendido num cadeirão e enquadrado ao lado de uma árvore de Natal luminosa e decorada: a ironia não escapa a ninguém. Como que presa, ainda, nas incessantes subidas e descidas do seu elevador, a “Miss Kubelik” de Shirley MacLaine vacila entre a realidade e o sono derradeiro ao som violentíssimo das chapadas do homem que quer transformar o menino Baxter num “mensch”. Este, o “Mister Baxter”, que achava que o elevador era só mais um meio para subir na vida, começa a descobrir que às vezes o que é preciso mesmo é descer assim decididamente e a pique até ao piso térreo. E entre a verticalidade do elevador e a horizontalidade do apartamento, a vida acontece e duas almas encontram-se, como numa cruz fortuita e plena de rimas e sentidos que talvez só se desenhe mesmo no cinema.

Se nos quisermos concentrar na vida, e avaliando, ressentindo e aceitando todo o ano que vivemos (em 2020, a véspera de Natal é numa Quinta-Feira como em O Apartamento), às vezes basta um homem, uma mulher, uma raquete de ténis e um prato de esparguete, almôndegas e molho de carne para improvisar uma consoada. Em termos de companhia e gastronomia, não estamos nada mal servidos.

[1] in «Conversations with Wilder» de Cameron Crowe, Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1999, p. 136.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

185ª sessão: dia 17 de Dezembro (Quinta-Feira), às 19h00


Quase no final do ano, a uma semana do Natal, é altura de viver ou reviver as duas horas de tristezas e alegrias de um dos mais belos pares da história do cinema, entre elevadores, pratos de esparguete, amores, enganos e promessas. Assim, O Apartamento de Billy Wilder é a nossa última sessão de 2020. Com Jack Lemmon e Shirley MacLaine, no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa.

A Cameron Crowe, em Conversations with Wilder (Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1999), o cineasta austríaco disse que "a origem de O Apartmento foi o facto de ter visto o belo filme de David Lean, Breve Encontro (1945). Era a história de um homem que está a ter um caso com uma mulher casada e vem de comboio para Londres. Eles vão para o apartamento de um amigo dele. Eu vi-o e disse, “Então e o tipo que se tem de arrastar para aquela cama quente... ?" Isso é uma personagem interessante. Então anotei isso, e anotei outras coisas no meu  bloco de notas. O herói dessa coisa era o tipo que suportava isto, que era apresentado a tudo por uma mentira. Um tipo na companhia dele precisava de mudar de roupa, dizia ele, e usava o apartamento... e foi isto. 

"Peguei nele outra vez porque tínhamos acabado de terminar o Quanto Mais Quente Melhor e eu gostei tanto de Jack Lemmon. A primeira vez que trabalhámos juntos foi em Quanto Mais Quente Melhor, e eu disse, “O tipo é este. É este o tipo para interpretar o protagonista."Um bocado submisso, como dissemos, tem-se pena dele. Mas tive O Apartamento na cabeça durante anos e anos antes de ser mesmo activado. "Como é que se vai sentir o tipo que rasteja para aquela cama depois dos amantes saírem?" Isso foi mesmo como começou. Pensei, "Vai ser censurável." Mas mantive essa ideia, e depois quando os [padrões] se soltaram um bocado, fizemo-lo. Tinha o ponto de vista do tipo dos seguros, o C.C. Baxter. E queria dizer que Lemmon é um tipo ingénuo. O superior dele - aquele tipo que dirige a companhia - quer ir à ópera, e gostava de usar o apartamento para trocar de roupa. E Lemmon diz, "Pode-o usar!" E isso desencadeia a forma como ele se torna um criado para o chefe, o presidente do grupo de seguros, que depois lhe arranja um emprego melhor. Ele tinha de ser um bocado tímido em relação ao assunto para a coisa resultar. Isso era uma questão importante, o problema que tivemos de resolver - tivemos de encontrar a forma perfeita para transmitir isso. Ele faz isso tudo de forma ingénua."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, e depois de enumerar as injustiças e as acumulações raras da obra nos Óscares, João Bénard da Costa escreveu que "(...) a singularidade deste filme vai muito para além destas singularidades com ou sem estatueta. Um espectador apressado pode dizer que com tais actores (e aos três designados vale bem a pena juntar o veterano Fred MacMurray) tal argumento e tais técnicos (LaShelle, Trauner, Fred Lau) qualquer um, medianamente competente, fazia um bom filme. Precisamente, a história de Hollywood dos fifties e do início dos sixties mostra que com fábulas de quotidiano análogo, longínqua ou proximamente a seguir modelos da TV da época, se registaram os piores malogros (com actores, argumento e técnicos de igual calibre) e que Billy Wilder se aventurou aqui num dos caminhos mais arriscados da sua obra. Não fosse a prodigiosa realização (a arte de tudo modular, tudo obnubilar e tudo elidir) e The Apartment não seria mais do que um veículo para o excepcional par Lemmon-MacLaine (e já na ideia de juntá-los, honra seja feita a Billy Wilder que o voltou a fazer no prodigioso Irma La Douce, três anos depois) e uma história de pequenas pessoas, pequena burguesia, pequeno quotidiano, um pouco triste, um pouco sórdida, um pouco realista, um pouco cáustica, género Mann (Delbert ou Daniel).

"Billy Wilder nessas não caía e quanto mais pensamos na construção do filme, mais vemos como o seu lado "quotidiano" e "realista" é genialmente subvertido. Correm as letras do genérico, e o que vemos (ainda sem o saber) é a fachada do apartamento de C.C. Baxter, que logo a seguir surge em voz off (primeiras estatísticas de água no bico) e, depois, em carne e osso, na profundidade de campo do imenso escritório esvaziado dos seus 87.000 empregados. Nunca nos é claramente dito, mas esse apartamento, elogiado e invejado por todos os ilustres e menos ilustres visitantes, é o pequeno "desequilíbrio" da vida do cumpridor, meticuloso e pontual C.C. Baxter (toda a gente, naquela companhia, tem nomes próprios anónimos). Para o pagar (está acima das suas posses, ainda por cima com o recente aumento de renda do senhorio), Baxter começa a vender-se e a vendê-lo. Tão divertidas são as peripécias, os hóspedes (aquela loira que só copia Marilyn na voz) e tão simpático é o pobre Lemmon, que vai passando despercebido que a chave que corre de mão em mão é também a chave que dá acesso ao 27º andar e ao "executive material", alvos das desgraças de C.C."

No seu Dicionário do Cinema, Jacques Lourcelles diz que é o "segundo dos sete filmes com Jack Lemmon rodados por Billy Wilder, O Apartamento teria resultado de uma promessa feita ao actor pelo cineasta, encantado com a sua composição em Some Like it Hot, de escrever um dia um argumento especialmente para ele. O Apartamento é também o primeiro de uma série de quatro filmes em Cinemascope a preto e branco (cf. One, Two, Three, Kiss Me, Stupid, The Fortune Cookie) que forma um conjunto muito original na obra de Wilder. Aqui, uma comédia mordaz e amarga muda-se a pouco e pouco para um melodrama desolador ao qual Wilder escolhe dar um final feliz. Este cruzamento de tons muito habilidoso não é apenas um efeito da virtuosidade do autor mas corresponde também à dupla natureza do seu tema. Se sabe descrever personagens fortes, «vencedores» (cf. The Spirit of St. Louis ou Stalag 17, em que William Holden encarna um «vencedor» original e muito mal visto pela sua comitiva), Wilder também gosta de evocar os perdedores, as vítimas, os explorados pela sociedade, que a seus olhos não são de todo marginais, mas sim americanos médios que a doçura de carácter e a fantasia transformaram em negligenciados em nome da «struggle for life». Shirley MacLaine (no seu melhor papel) e Jack Lemmon encarnam dois destes explorados, um no plano sentimental, o outro no plano profissional. Sob o efeito de uma influência recíproca, vão encontrar a coragem para se libertar das suas correntes. A passagem para o melodrama serve para revelar a verdadeira natureza das duas personagens. Lemmon, falso bon vivant e falso Don Juan, na realidade é um solitário, um homem brando que suporta a tirania e a chantagem dos seus chefes. Shirley MacLaine, jovem sedutora e cobiçada, paga o azar amoroso com a sua tristeza e os seus suicídios falhados. O scope a preto e branco acrescenta ao filme um lirismo secreto, uma gravidade e um suplemento de realismo que implantam a intriga numa verdade emocional um pouco mais profunda, ainda. Como nos seus melhores filmes, Wilder permanece aqui um pintor social muito virulento; o seu desejo é iluminar com uma luz crua, e no entanto não desprovida de ternura, os corredores um pouco vergonhosos da sociedade em que vive. 

"BIBLIO. : «The Apartment and the Fortune Cookie, two screenplays by Billy Wilder and I.A.L. Diamond», Londres, Studio Vista, s.d. Tratam-se de argumentos de rodagem para os dois filmes redigidos com muitos detalhes pelos dois autores. (As diferenças entre o guião e o filme definitivo são quase nulas para The Fortune Cookie e bastante mínimas para The Apartment.) O argumento de The Apartment (texto idêntico ao da publicação anterior) tinha sido publicado no volume «Film Scripts Three», reunido por George P. Garrett, O.B. Hardison, Jr., Jane R. Gelfman, para a Appleton-Century-Crofts, Nova Iorque, 1972 (com The Misfits de Huston e Charade de Donen)."

Até Quinta!

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Mon Oncle (1958) de Jacques Tati



por Alexandra Barros

Monsieur Hulot vive num bairro onde todos os vizinhos se conhecem e relacionam amistosamente. Juntam-se regularmente no mesmo café, nos tempos de lazer. Têm relações de familiaridade com os comerciantes locais e cuidadores das ruas do bairro (o varredor do lixo e quem faz a sua recolha e transporte para o aterro, numa carroça puxada a cavalos). Abastecem-se e convivem num mercado de rua, onde os clientes chegam a servir-se a si próprios e a deixar o pagamento devido na banca, quando o vendedor está a tomar café, na esplanada próxima. Na parte moderna da cidade, há “casas inteligentes”, fábricas onde os trabalhadores parecem tão automatizados quanto as máquinas que operam, e estradas com várias faixas de rodagem, onde na hora de ponta os carros avançam num lento e ordenado cortejo. 

O prédio onde vive Hulot é o equivalente a uma manta de retalhos. Blocos que parecem vindos de diferentes habitações encaixam uns nos outros, como um Lego montado cooperativamente por várias crianças. Apesar disso, ou talvez por isso, possui o encanto próprio dos enigmas não decifráveis ao primeiro olhar. No prédio, todos parecem viver de portas abertas, como uma grande família. Hulot oferece doces à menina que vive no rés-do-chão, desvia respeitosamente o olhar de uma vizinha em roupa interior, com quem se cruza nas escadas, e mima o canário do vizinho da frente, utilizando o vidro da sua janela para redirecionar os raios de sol para a gaiola do pássaro. Este retribui, cantando. 

Hulot tem uma irmã, Madame Arpel, que vive, juntamente com o marido e filho (Gerard), numa casa “inteligente”, na zona moderna da cidade. Na casa tudo tem uma forma geométrica precisa e Madame Arpel não deixa que um grão de pó macule o aspecto lustroso do conjunto. As janelas circulares do quarto dos Arpel dão à casa o aspecto de um rosto voltado para a casa vizinha. À noite, as silhuetas dos Arpel enquadradas pelas molduras das janelas parecem as pupilas de olhos que espiam. O jardim tem um caminho desenhado que obriga as pessoas a realizar um percurso elaborado e longo entre o portão e a casa, ao longo do qual encontram: uma fonte, com um peixe metálico que deita água pela boca, só acionado quando a casa é visitada por alguém que se quer impressionar; uma mini-esplanada com mini-mesa e mini guarda-sol; arbustos “gémeos” milimetricamente alinhados e canteiros cobertos de gravilha. No interior, as peças de mobiliário têm formas arrojadas, mas não são adequadas às suas funções. As cadeiras e sofás são desconfortáveis ou só utilizáveis quando colocados em posições inusitadas. As escadas interiores minimalistas (só com um corrimão) não são seguras e as tecnologias de que tanto se orgulham os Arpel chegam a colocá-los em situações perigosas, como quando ficam fechados na garagem por causa de um sensor mal concebido. Quem visita os Arpel é orgulhosamente levado a percorrer a casa, como se de um museu se tratasse. Madame Arpel destaca o facto de todos os compartimentos comunicarem entre si. “Tudo comunica!”, diz infalivelmente. Se na casa tudo comunica, o mesmo não acontece com os seus habitantes. Entre os pais e o filho existe uma distância que nem os brinquedos oferecidos pelo pai diminuem. Gerard mostra total desinteresse pelo comboio sofisticado que o pai lhe traz de presente. Quando, logo a seguir, o tio chega com umas figuras de papel, animadas por cordéis, o miúdo não contem as gargalhadas. Noutra cena, Gerard, ouvindo o som do aspirador na sala, corre ao encontro da mãe, mas sai desiludido ao encontrar apenas o aspirador, que foi deixado a trabalhar de forma autónoma. 

Hulot está desempregado. Monsieur Arpel, que trabalha numa fábrica que produz tubos de plástico, tenta arranjar-lhe emprego. Hulot, no entanto, não está formatado para um mundo onde todos os gestos têm que obedecer a coreografias específicas e os homens são complementos das máquinas. Estas aproveitam as distrações e inépcia de Hulot para “saírem da rotina”, produzindo quilómetros de “salsichas” de plástico ou “serpentes” com vida própria, em vez dos tubos programados. Na casa da irmã, Hulot sente-se igualmente confuso e mesmo ameaçado pelos electrodomésticos autónomos, que parecem procurar uma oportunidade para atacá-lo. As visitas de Hulot são, porém, uma alegria para Gerard, que não aprecia a vida na casa-museu e só se diverte quando o tio o leva a passear ou nos encontros com amigos que vagueiam livremente, improvisando diversões inspiradas nas situações com que se deparam. O cão da família também gosta de fazer umas escapadelas e juntar-se a grupos de cães vadios que percorrem a cidade, procurando comida e brincando. 

No final do filme, máquinas de demolição avançam sobre as habitações degradadas do bairro de Hulot e a praça do mercado está vazia, indicando que o desenvolvimento imobiliário alcançou o bairro. 

Neste filme, em que os diálogos são escassos, o contraste marcado e caricatural entre o velho bairro e a cidade moderna é conseguido através dos cenários primorosamente projectados por Tati, incluindo a casa dos Arpel, concebida com a colaboração de Jaques Legrange, argumentista com background em arquitectura e ligações a Le Corbusier. Além de um olhar crítico sobre a modernidade e a homenagem nostálgica a um estilo de vida prestes a desaparecer, o filme reflecte a importância que os espaços onde habitamos, trabalhamos e passamos os tempos livres têm no nosso bem-estar e no modo como nos relacionamos com os outros. Os edifícios e espaços urbanos determinam modos de vida pela forma como se deixam ou não habitar. A configuração do bairro de Hulot proporciona proximidade e a existência de uma comunidade. Nos subúrbios modernos, os vizinhos mal se conhecem e a casa dos Arpel mais do que servi-los, parece ser servida por eles.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

184ª sessão: dia 10 de Dezembro (Quinta-Feira), às 19h00


Depois de As Férias do Sr. Hulot e Parade, exibidos durante o nosso pequeno ciclo de cinema francês em 2018, regressamos à obra do grande mestre do cinema e da comédia Jacques Tati, mostrando pela altura do Natal o humano e belíssimo O Meu Tio, a nossa próxima sessão no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Às 19h.

Em entrevista a André Bazin e François Truffaut dos Cahiers du Cinéma, em 1958, e explicando as intenções e o mecanismo de um dos seus gags, o cineasta francês começa por explicar que "o sobrinho, o filho dos Arpel, entende-se muito bem com o tio. Antes da recepção, e sem o fazer de propósito, ele parte o pequeno galho. Quando o tio chega, ele vai procurá-lo e pede-lhe que o repare. O tio corta, é a única coisa a fazer: ao cortar, apercebe-se que ainda se nota mais. Começa então a cortar o galho simétrico, e a pouco e pouco, isso vai levá-lo a reduzir tudo. Mas a Sra. Arpel passa mesmo nesse momento - não convém esquecer que estamos numa recepção - e o tipo não consegue continuar a fazer o seu número. Antigamente, não sei se concordam comigo, só havia espectadores que viam o que se passava no ecrã, mas os actores que acompanhavam os cómicos nunca se davam conta que eles estavam a fazer um gag. Eu faço sempre o contrário: os actores estão ao mesmo nível que os espectadores para ver que um senhor se esqueceu de fechar uma porta. Em Laurel e Hardy, via-se pessoas a manejar tartes, caçarolas, e as outras tinham ar de circular à volta delas, sem se dar absolutamente conta que um senhor estava a caminhar com uma caçarola na cabeça. Portanto a passagem da Sra. Arpel interrompe a história da poda do arbusto. Terminada a recepção - já não há ninguém, o jardim está vazio, os Arpel vão-se deitar - é altura de ir acabar o trabalho. É a pequena sequência nocturna. Suspense, se assim se quiser, na pereira. Suspeita-se - suponho eu, pelo menos - que Hulot está a terminar o trabalho começado. E depois não se fala mais. Já não há razões para que se fale. De resto, e normalmente, se a Sra. Arpel não sair por ali no dia seguinte, não o vê. Quando as crianças partem qualquer coisa no jardim da mãe, não é cinco minutos depois que as pessoas se apercebem. Pode-se muito bem encontrar isso no outro Domingo. É só dois dias depois que o Sr. Arpel, ao entrar, descobre com os faróis o trabalho - que é bastante catastrófico, diga-se. Talvez esteja muito mal construído para um filme, mas normalmente, acho que isto se passaria desta forma."

Na entrada dedicada ao cineasta francês no projecto megalómano em dois volumes de Richard Roud, Cinema - A Critical Dictionnary (1980), Jean-André Fieschi escreveu que "a estranha carreira de Jacques Tati (nascido em 1908)—cinco filmes em quase vinte e cinco anos—é original em dois contextos: no interior do cinema francês, em que apenas Vigo e Bresson podem ser comparados a ele, e no interior do cinema 'cómico' em que os seus únicos antecedentes, os palhaços brancos e lunáticos (Keaton, Langdon, Laurel), servem apenas para revelar o quanto ele difere deles, e quão marginal e excêntrica é a posição de Tati. 

"Na verdade, o lugar de Tati é entre os 'construtores', entre aqueles que acima de tudo se preocupavam com o jogo estrutural, cujo interesse na estrutura comanda de forma imperativa cada elemento figurativo e os reúne em construções perfeitas; em que a estrutura aparente, e mesmo claramente indicada, não é o esqueleto de um discurso formal, mas antes o próprio discurso: semelhante a Fritz Lang no primeiro Mabuse ou em Os Espiões, Bresson em Pickpocket e O Processo de Joana d'Arc, Antonioni em Cronaca di un amore; hoje em dia a Jean-Marie Straub e Miklos Jancso, certamente. 

"Referindo-se a outras estéticas e ideologias prudentes e irreconciliáveis, uma enumeração destas apenas indica que Tati pertence a uma família de cineastas sistemáticas, em que cada trabalho é a soma de uma série de compromissos fortemente marcados, seja em oposição, atrás, ou à frente do cinema dominante dos seus contemporâneos."

Aquando doutra das reposições do filme, em 2007, Mário Jorge Torres escreveu para o Público que "O Meu Tio prolonga a figura do senhor Hulot, acentuando a sátira da sociedade contemporânea com uma leitura profunda não apenas da relação do cineasta com os "gags" visuais - que articula com o seu militante individualismo, transformando a herança de Buster Keaton (The Electric House é uma das matrizes incontornáveis) em algo de pessoal e intransmissível -, mas também a abrir para uma experimentação sobre a cor e sobre uma modernidade patente nos cenários, na arquitectura de interiores e na intromissão de uma banda sonora minimalista e essencial. 
 
"Uma obra-prima absoluta a rever e a revalorizar sempre, universal e localizada no tempo de uma ruptura com os mecanismos de representação."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Fanny och Alexander (1982) de Ingmar Bergman



por António Cruz Mendes

Quando realizou Fanny e Alexandre, Bergman anunciou que esse filme seria a sua última longa-metragem. Tinha apenas 64 anos, mas dizia-se física e psicologicamente sem forças para continuar. De facto, depois dela, só encenou peças de teatro e filmou obras para a televisão. A longa duração do filme, o enorme elenco de atores, a sumptuosidade do décor, tudo isso nos permite dizer que, à sua escala, Bergman se quis despedir dos cinemas com uma superprodução. 
 
Fê-lo contando uma história com claras conotações autobiográficas. O seu pai, tal como o padrasto de Alexander, foi um severo pastor luterano, mas ele, como Alexander, na sua infância, conheceu na casa da sua avó um mundo maravilhoso, povoado por fantasmas, onde não era fácil distinguir a realidade da fantasia. Foi lá que Ingmar Bergman brincou pela primeira vez com uma lanterna mágica, observando o movimento das figuras com o mesmo olhar sonhador que divisamos em Alexander. Mas, se Bergman nunca desmentiu aqueles que viram no jovem Ekdahl o seu alter ego, teve, contudo, o cuidado de acrescentar que, nele, havia também muito do bispo Edvard. E é nesta ambivalência que se joga o enredo dramático deste filme. 
 
Alexander, que cresceu no seio de uma família da atores, proprietários de um teatro, é um menino sensível e imaginativo. Conhecemo-lo logo nas primeiras sequências do filme vagueando, sonhador, pela casa, semi-deserta, porque quase todos estão no Teatro. 
 
Estamos na véspera do Natal e ali representa-se o nascimento de Cristo. Caído o pano, os artistas e todos os que lá trabalham reúnem-se num alegre banquete. Oscar Ekdahl, ator e diretor, discursa com contida emoção, explicando quais são as duas grandes funções do teatro, “um pequeno mundo que, por vezes, consegue refletir o grande mundo que existe lá fora”: às vezes, permite-nos “compreendê-lo melhor”, outras vezes, permite-nos esquecer, por breves instantes, esse “áspero mundo exterior”. 
 
A ceia de Natal da família Ekdahl dá-nos a conhecer o mundo de Alexander. As salas luxuosamente mobiladas, as festivas decorações natalícias, a mesa abundante, o convívio descontraído, a liberalidade dos costumes. Ficamos a saber das dificuldades económicas do tio Carl, da libertinagem do tio Gustav Adolf, da melancolia que se apodera da avó Helena quando pensa na passagem inelutável dos anos. Mas, nada disso impedia que a liberdade e alegria reinassem na casa dos Ekdhal. Até que a morte os surpreendeu, vitimando o pai de Alexander. 
 
A morte de Oscar e o casamento de Emilie com o bispo Edvard fratura o filme a meio. As cores quentes e sensuais, onde predominam os vermelhos e os dourados, que coloriam a primeira parte do filme, vão dar lugar aos negros e cinzentos que dominam a segunda. Ao luxo, sucede a austeridade; à liberdade, a disciplina; ao divertimento, a obrigação. A naturalidade deu lugar à desconfiança e a alegria, ao medo. Na casa dos Ekdahl, Alexander, às vezes, vislumbra a figura fantasmagórica do pai, vestido de branco. O padrasto veste-se de negro. 
 
Na cerimónia de casamento, em campo-contracampo, vemos os Ekdahl e os Vérgerus alinhados, face a face. São dois mundos que se confrontam. Emilie e os seus filhos devem chegar, por vontade de Edvard, à casa onde mora com a sua sombria família, despojados de tudo o que lhes recordasse a antiga casa, a sua vida passada. À mudança deveria corresponder um renascimento. Apenas Alexander resiste a essa imposição trazendo consigo um pequeno animal de peluche. 
 
A oposição de Alexander àquele casamento é imediata. A sua mãe percebe-o e pede-lhe para “não fazer de Hamlet”, nem ela é a rainha Gertrud, nem Edvard o rei da Dinamarca e a casa onde eles agora moram, apesar de nua e fria, não é o castelo de Elsinor. Contudo, a comparação é inevitável e só não é inteiramente verdadeira porque, ao contrário de Hamlet, Alexander não vive dilacerado pela dúvida. Para ele, o padrasto é a personificação do mal e a sua nova casa, uma prisão. 
 
Na opinião do bispo, existe uma falha de carácter em Alexander, ele não sabe distinguir a verdade da mentira. Um dia, contou aos colegas da sua escola que a mãe planeava vendê-lo a um grupo de saltimbancos. (Sabe-se, pela sua autobiografia, que essa foi uma história que o próprio Bergman, quando criança, imaginou e que mereceu do seu pai uma reação semelhante à de Edvard.) Já em casa do padrasto, contou a Justine, uma empregada do bispo (Harrietr Andersson numa curta, mas impressiva interpretação) que os espectros da primeira mulher de Edvard e dos seus dois filhos lhe apareceram e contaram que morreram afogadas quando tentavam fugir da casa do bispo, que as tinha aprisionado num quarto, sem alimentos. O castigo que lhe foi infligido foi a gota de água que decidiu Emilie a querer fugir daquela casa com os seus filhos. 
 
A fuga de Fanny e Alexander e o propósito de divórcio de Emilie, que está grávida, revela-nos um outro Edward, um ser desesperado perante o desabar do mundo ideal que concebeu. Terá ele, também, perdido a sua fé? Na nossa vida, diz-nos a avó Helena, conversando com o se velho amigo Isaac, todos representamos vários papeis e usamos várias máscaras. Mas a de Edward, confessa-o ele próprio a Emillie, fixou-se-lhe de tal forma ao rosto, que não a pode arrancar sem se desfigurar. 
 
Isak é uma antiga paixão de Helena e o seu principal confidente. A sua presença na festa de Natal da família Ekdahl acentua, por contraste com a repulsa com que, mais tarde, é recebido na casa dos Vérgerus, duas formas diferentes de viver a religião, como celebração da vida ou como expiação de um pecado. A sua participação no estratagema concebido para retirar Fanny e Alexander da casa do bispo, vai introduzi-los na sua casa, um mundo mágico, sobrepovoado pelos mais variados e estranhos objetos. Entre eles, uma imagem de Deus deixa Alexander aterrorizado, mas, afinal, ela não é mais do que um fantoche de um teatro de marionetes. É na casa de Isak, que ele vai conhecer a mais enigmática personagem do filme, Ismael, um sobrinho de Isak que aí vive recluso porque tem poderes que o podem tornar perigoso. 
 
Ismael é um ser andrógino (trata-se, de facto, de uma personagem masculina interpretada por uma atriz, Stina Ekbad) que desperta em Alexander sentimentos contraditórios de temor e fascínio. Tenta convencê-lo que os dois podem ser, na verdade, a mesma pessoa, que é capaz de lhe ler os pensamentos, de reconhecer os seus ódios e revela-lhe as imagens do fim atroz do seu padrasto. Até que ponto as nossas fantasias podem comprometer a realidade? 
 
A família Ekdhal reúne-se, de novo feliz, para celebrar o batismo das filhas de Emilie e de Maj, que está sentada à mesa dos senhores que anteriormente servia, na companhia dos atores, das atrizes, dos amigos da família. Uma orquestra toca em segundo plano. Gustav Adolf levanta-se e, rodeando a mesa da refeição, discursa, retomando o tema da oposição entre o pequeno mundo do teatro e o grande mundo exterior que já tínhamos ouvido, pela voz de Oscar, no princípio do filme: “Nós, os Ekdahl, sabemos que, repentinamente, se pode abrir um abismo e a morte pode chegar, mas amamos as nossas ilusões. Retirem-nas a um homem e ele enlouquecerá”. E aproveita a ocasião festiva para nos expor a sua visão epicurista da vida: “O mundo é uma caverna de ladrões e a noite cai. O mal quebra as suas cadeias e corre o mundo como um cão raivoso. O veneno afeta-nos a todos, aos Ekdahl e a todos os outros. Ninguém escapa. Nem Helena Viktoria, nem a pequena Aurora. Assim são as coisas. O melhor é sermos felizes enquanto podemos. Sejamos amáveis, generosos, carinhosos e bons. Não é preciso ter vergonha em ter prazer neste pequeno mundo. Boa comida, sorrisos gentis, árvores em flor, valsas”. Debruça-se sobre um dos berços e ergue nos seus braços o bebé: “Sustento uma pequena imperatriz. Pode-se tocar, mas não tem medida. Um dia provará que tudo o que eu disse estava errado. Um dia, ela não só governará o pequeno mundo, mas todo o mundo”. 
 
Na sequência final, Emilie, por vontade de Oscar, diretora do Teatro, propõe a Helena representarem juntas O Sonho, de Strindberg. Depois de uma primeira recusa (“Esse porco misógino!”), Helena aceita e começa a lê-la a Alexandre que, depois de ter sido surpreendido pela presença fantasmática do padrasto (“Não me podes escapar.”), adormeceu no seu colo.