por Alexandra Barros
Catarina, a realizadora do filme, perdeu a mãe quando tinha 17 anos. Nessa altura, Catarina e o seu pai, Jacinto, criaram um laço ancorado na perda, que vai para além da relação entre pai e filha. Jacinto também perdera a mãe, Beatriz, durante a sua juventude. Quando a mãe lhe faltou, Catarina passou a sentir igualmente o espaço ocupado pela falta da avó. Quis então saber tudo sobre ela e sobre a parte do pai que até aí nunca tinha conhecido: a parte “que ele era com a mãe”. É com as memórias familiares que Catarina constrói o filme e é através delas que pai e filha procuram ultrapassar a dor da ausência das respectivas mães.
Catarina conta-nos a história da família através do cruzamento de pequenas histórias de três gerações e entretece nelas uma outra: a História de Portugal durante o Estado Novo e a Guerra Colonial. Ao aprofundar o conhecimento deste período histórico que não viveu, ela percebe o privilégio que é viver em Liberdade.
Jacinto é o mais velho dos seis filhos de Beatriz e Henrique. De Beatriz diz-se que era uma árvore e que aprendeu tudo com a verticalidade das plantas. Henrique era oficial da Marinha e andava grande parte do tempo no mar. Por isso, a relação de Henrique e Beatriz era feita de palavras. As palavras viajavam entre Beatriz e Henrique através de cartas. Nelas se falava de saudade, de amor, da vida quotidiana de Beatriz e seus filhos em terra e da solidão de Henrique no mar...
Nunca sabemos se estamos perante memórias reais ou ficcionadas, tanto mais que as palavras (sempre em voz off) são acompanhadas de imagens em tons oníricos, cuidadosamente encenadas: o olhar metálico de Sta Luzia pendurado na parede ao lado de uma pintura de Sorolla; mãos-espelhos que reflectem o olhar que as contempla / o olhar que se contempla; um mar de céu e um céu de mar; navios que navegam numa garrafa, numa fotografia, numa pintura; dezenas de olhos enfileirados em penas de pavão; caixas de charutos que guardam conchas, as inúmeras nervuras das folhas, troncos
enxertados com pedaços reflectidos de outros troncos[1]... Poemas visuais. Alguns são pinturas, muitas são de mães. Outros parecem pinturas, como o grupo de fantasmas muito brancos, no meio de um campo muito verde, que parecem posar para a fotografia como uma família em piquenique de domingo. Ou a imagem assombradora de Beatriz a usar como brinco o cavalo-marinho que Henrique lhe enviou (os objectos também nos podem assombrar só por serem muito bonitos). Há muitas imagens construídas com espelhos ou lupas, instrumentos ópticos que nos devolvem imagens semelhantes às reais, mas nunca iguais às reais. Como a memória, que nos devolve histórias mais ou menos semelhantes às que vivemos, mas nunca como as vivemos ou mesmo nada como as vivemos.
Portugal pré-25 de abril emerge na narrativa representado por imagens de forte carácter simbólico, como a tomada/mulher presa à parede e a ficha/homem que anda por todo o lado. Aos belíssimos selos das cartas enviadas por Henrique a Beatriz justapõem-se os pensamentos condenatórios de Jacinto sobre a participação portuguesa na colonização de África.
À medida que os filhos crescem, Beatriz sente crescer também o espaço entre a sua realidade e a deles. Não são precisos mais que uns brevíssimos segundos para a distância entre o sufoco dos filhos sob o regime ditatorial de Salazar e o alheamento político da mãe nos ser revelada. Beatriz segura uma revista Flama, com a notícia sobre a morte de Salazar na capa. Em voz off, anuncia: “Eis que aconteceu aquilo que tanto ansiávamos, Henrique: os nossos filhos cresceram”.
A realidade o que é? Beatriz quando vê os filhos subir às árvores só vê a probabilidade da queda e eles só vêem a possibilidade de voar. Os antigos, que nada sabiam sobre a migração dos pássaros, pensavam que os pássaros que apareciam ao mesmo tempo que outros desapareciam, apesar de terem características diferentes, eram sempre os mesmos. Tinham apenas sofrido uma metamorfose. “Aquilo que o ser humano não consegue explicar, inventa.”
Catarina, para fazer este “documentário”, também inventou. Até o nome do pai é inventado, apesar dos seus protestos: “Não são os filhos que dão o nome aos pais. O tempo não anda para trás”. O passado porém pode andar para a frente. Catarina, Jacinto e os irmãos recitam os lugares onde suas mães vivem ainda: nos lençóis, nas chávenas de chá, em todos os objectos do dia-a-dia, nos objectos coleccionados, nas árvores e plantas que as mães cuidaram, nos gestos e hábitos dos filhos, nos seus olhos e narizes ... Os filhos são diferentes dos pais, mas são também suas metamorfoses.
[1] Os espelhos da floresta de Catarina lembram os espelhos d’As Praias de Agnès Varda.
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