por João Palhares
Se há coisa que os clássicos nos ensinaram e continuam a ensinar, esquecendo por momentos as duas maiores definições da expressão e do conceito[1], e reduzindo-os no tempo aos anos 40 e 50 e no espaço à fábrica de sonhos de Hollywood, é a não temer os excessos. O melodrama e o descomedimento. A hipérbole e o paroxismo. E há poucos filmes que exemplifiquem e encarnem melhor isso do que os de King Wallis Vidor[2]. E há poucos filmes que exemplifiquem e encarnem melhor isso do que Duelo ao Sol. Foram pelo menos sete os realizadores que passaram pela rodagem deste filme, despedidos e contratados pelo nunca satisfeito David O. Selznick, produtor americano que se apaixonou perdidamente pela talentosíssima actriz Jennifer Jones, nos anos 40, e passou parte da vida a oferecer-lhe filmes e produções como prova do seu amor. A grandiloquência de Duelo ao Sol sente-se logo de início, com um genérico em fundo amarelo e letras pretas e vermelhas empurradas pela marcha imperial de Dimitri Tiomkin[3], como um rio revolto e fértil que não se deixa secar pelo astro rei. Os choques cromáticos e formais continuam e acumulam-se enquanto assistimos ao amadurecimento e à auto-descoberta da Pearl Chavez de Jones, mulher nunca ajustada com as suas pulsões e os seus desejos e se vê dividida entre a atracção por dois irmãos, Jesse e Lewt McCanles. O primeiro incute-lhe valores como a justiça e a bondade e estimula-a mentalmente, o segundo é uma força animal que lhe desperta os sentidos e estimula-a fisicamente. E assim se estendem as armadilhas situadas no limiar do amor e do desejo. A fronteira pode ser tão ténue e indestrinçável. Pelo desejo, perde-se o amor e pelo amor mata-se o desejo. Mas o ser humano vai ser sempre um animal e não sobrevive sem escoar os impulsos, por isso há-de engendrar sempre formas de o fazer, por mais estranhas, disformes e perigosas que sejam. Ciúmes, castidade e morte. Depois dos vermelhos mais vermelhos, dos azuis mais azuis e do negro mais negro que se viram ou hão-de ver, provas de que foi em censura e durante códigos de produção que se foi mais directo ao alvo nas questões do amor e do sexo (os contornos épicos equiparam-nas a um caso de vida ou de morte; a forma e o conteúdo são a mesma coisa; não é o que se diz, é como se diz; “não basta gostar de um filme, é preciso gostar dele pelas razões certas”; etc., etc., etc.), a travessia final para a montanha onde se intersectam as forças criadoras de Jones, O. Selznick, Vidor e o romancista e argumentista Niven Busch, sob o sol abrasador do deserto que quer secar a fonte da vida. É sempre incerto, o que lá se vai passar. É sempre incerto, como é que o público vai reagir. O que nunca será incerto é que é o espelho eterno do tumulto interior do homem, o cúmulo do impressionismo e do romantismo, a realização e demonstração de que o belo é uma invenção nossa e que não há sol ou vendaval que o negue ou o dizime.
[1] "Obra clássica: aquela que pertence quer ao passado quer ao futuro e, mediante cada um de nós, está também no coração do presente” (da descrição não assinada da «Colecção Horizonte - Clássicos») e “Eu não sei o que é um filme clássico” (Tag Gallagher, 2015).
[2] Cineasta nascido em Galveston, no Texas, em 1894, e que aos seis anos assistiu a um enorme ciclone, cujo turbilhão descreveu num artigo de 1935 para a revista Esquire. Filmou também a cena do tornado de O Feiticeiro de Oz. E Ruby Gentry e The Fountainhead, já exibido pelo nosso cineclube em 2016 com apresentação em vídeo do arquitecto José Neves, podem ser descritos como verdadeiras tempestades.
[3] Compositor russo-americano que escreveu umas boas dezenas de bandas-sonoras fabulosas em Hollywood, como as de Rio Bravo, O Rio Vermelho, High Noon, Céu Aberto, Álamo.
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