quarta-feira, 13 de abril de 2022

Black Narcissus (1947) de Michael Powell & Emeric Pressburger



por Alexandra Barros

Black Narcissus é um filme de abismos. Os visíveis são os magníficos precipícios que cercam Mopu, uma aldeia indiana localizada numa região remota e de enorme beleza natural dos Himalaias. Esta paisagem é o centro duma espiral dramática que se desenvolve à medida que outros abismos se vão revelando. 

Cinco freiras anglicanas são incumbidas de transformar um palácio abandonado de Mopu num convento. Clodagh, apesar da sua juventude e impreparação é escolhida para liderar o grupo. O palácio foi em tempos habitado pelo harém do pai do general indiano Toda Rai e é conhecido como Casa das Mulheres. Desses tempos permanecem os frescos eróticos hindus pintados nas paredes. De acordo com a vontade do general, o convento deverá prestar serviços educativos e de saúde à comunidade local. Estes serviços, no entanto, não interessam à população, cujos hábitos culturais chocam com os que as freiras pretendem impor. Esta distância entre as religiosas e a população irá aprofundar-se e uma tragédia transformá-la-á, no final, num abismo intransponível. 

Inicialmente, para garantir o sucesso do projecto, as pessoas são pagas pelo general para receber a educação e os cuidados médicos que não desejam e o convento enche-se diariamente de gente. Quem está verdadeiramente interessado na instrução das freiras é o filho do general, Dilip Rai, um “pavão” vaidoso, mas educado, gentil e sensível. Para agradar ao general, as freiras aceitam-no como aluno, apesar desta presença masculina no interior do convento não ser vista com bons olhos. Kanchi, uma rapariga sedutora e irreverente, também é acolhida pelas freiras para ser por elas “domesticada”. O visitante do convento mais desconcertante, no entanto, é Mr. Dean, um inglês que representa o general e que foi por ele encarregado de ajudar as freiras no que for necessário. As freiras tentam adaptar-se à sua nova casa e ultrapassar as dificuldades inerentes à vida num país do qual desconhecem a língua e cultura. Porém as intensas impressões sensoriais provocadas pelo ambiente e pessoas que as cercam impedem que a paz espiritual se instaure no convento. Mr. Dean é especialmente perturbador, despertando paixões, ciúme, desejo e por fim, loucura. Mas a própria paisagem, majestosa e estonteante, afecta a racionalidade e autocontrole das freiras. Inebriada pela beleza circundante, Philippa semeou flores em vez dos vegetais comestíveis que estavam planeados. A cena em que Philippa é confrontada com a sua irresponsável acção condensa a essência do filme, pelo que não espantaria que Black Narcissus fosse alguma espécie de flor germinada na horta sabotada. Na verdade, Black Narcissus é o nome do perfume usado por Dilip Rai. O seu aroma delicia tanto Kanchi como as freiras e constitui mais um apelo aos seus já sobre-estimulados sentidos. A conversão da Casa das Mulheres num convento parece assombrada pela encarnação anterior do palácio e por espíritos de natureza bem terrena. 

Tal como a paisagem, todo o filme é exuberante, com uma paleta de cores vibrante e com forte carácter simbólico. No guarda-roupa, aos hábitos religiosos de cores neutras contrapõe-se o colorido vestuário indiano, particularmente os exóticos trajes de Dilip e Kanchi. No final, o vermelho do vestido e dos lábios de Ruth espalha-se pelo ar como um veneno até ser engolido por um vertiginoso (e literal) abismo[1]. 

Filmado em Technicolor, e muito elogiado pela sua fotografia, Black Narcissus é considerado o visualmente mais belo filme de Michael Powell e Emeric Pressburger. São deslumbrantes: a cor e o brilho, a apurada escolha de perspectivas e a cuidada composição das imagens. Embora possa parecer ter sido filmado in loco, foi rodado em estúdio. Michael Powell disse, a propósito: “As nossas montanhas foram pintadas em vidro. Decidimos fazer tudo no estúdio para conseguir controlar totalmente a cor. Por vezes, num filme, o tema ou a cor são mais importantes do que o enredo.” 

O enredo de Black Narcissus é bastante bizarro, mas o enredo é sobretudo um pretexto. Importante é o grande tema do filme: o incontrolável poder das forças naturais que se impõem à razão através dos sentidos. Esse poder encantatório do ambiente é um dos elementos dramáticos da narrativa e é determinante no curso dos acontecimentos. "Não pude impedir o vento de soprar, o ar de ser límpido como cristal, não consegui esconder a montanha." - admite Clodagh. 

Num filme pintado de modo tão vibrante, paradoxalmente, o preto é a única cor presente no título - uma (não-)cor, que absorve todas as cores e não reflecte nenhuma[2]. A escuridão em Black Narcissus é como a misteriosa matéria-energia escura do universo. Não se vê, embora se estime que constitua mais de 90% do conteúdo total de massa-energia do universo. O que levou Clodagh, Philippa, Briony, Honey e Ruth a procurar a luz divina terá sido essa infecção invisível de que fala Leonard Cohen - the darkness[3]. Mas a luz do “ar límpido como cristal” que encontraram em Mopu levou-as afinal ao encontro da escuridão. Neste excêntrico psico-drama erótico centrado em abismos, o negro, no fundo, é a mais intensa cor.

[1] Alguns críticos, entre os quais João Bénard da Costa, apontaram relações entre Vertigo, de Alfred Hitchcock, e Black Narcissus, entre as quais constam as enlouquecedoras/enlouquecidas metamorfoses de Judy/Madeleine e da Irmã Ruth, assim como os diversos elementos comuns: freiras/monjas, convento/capela, sinos, alturas, suspense, quedas, ...
[2] As superfícies negras absorvem os comprimentos de onda de todas as cores.
[3]Na canção “Darkness”, do álbum “Old Ideas”.

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