domingo, 3 de abril de 2022

Tre piani (2021) de Nanni Moretti



por António Cruz Mendes

Hoje, vamos ver “um Nanni Moretti” diferente daquele que conhecemos melhor. Julgo que podemos observar, sobretudo nos seus primeiros filmes, um registo quase documental. De forma alguma o tipo de documentário que se apresenta como uma apresentação da “realidade tal qual ela é”, mas antes aquele que se revela claramente como “um discurso sobre”. Em Palombella Rossa, Querido Diário ou Abril, havia uma personagem-guia, uma espécie de narrador, no qual éramos tentados a ver o próprio realizador, que nos conduzia através do seu mundo particular, a Itália contemporânea e a sua realidade política, convidando-nos a conhecer e a partilhar as suas próprias angústias e perplexidades. Três andares não nos fala de Itália, os seus temas são universais: as dificuldades da vida em comum, as responsabilidades que resultam da parentalidade e das consequências das nossas acções. A justiça e a culpa. E nele não temos sequer uma personagem-âncora em torno da qual se construa uma narrativa, mas três diferentes histórias, ainda que unidas por temas, um espaço físico e personagens comuns. Um filme-mosaico, portanto, um complexo de histórias sobre as quais nenhuma das personagens tem uma perspectiva privilegiada. 

Numa entrevista recente, Moretti defendia o seu direito de não fazer apenas comédias. É certo que Três andares não é uma comédia, tal como também não o eram O quarto do filho e Minha mãe, melodramas dominados pelo tema da morte. Mas, na verdade, também nunca entendi como verdadeiras comédias Palombella Rossa, onde Moretti, na pele de Michele Apiccena, é um ex-dirigente do PCI que, depois de um acidente, perdeu a memória, ou Querido diário, filme onde ele personifica um realizador de cinema que, nas palavras de João Lopes, “filma na primeira pessoa, não para afirmar a verdade da sua visão, antes sublinhando a singularidade do seu ‘eu’, desse lugar a partir do qual ele adquire os contornos de uma solidão irredutível” (Expresso). De Abril, poder-se-ia dizer o mesmo. Nesses filmes, o exercício de auto-ironia é por demais evidente e as situações cómicas apenas disfarçam uma amargura latente. 
 
“Mostrai que mostrais”, pedia Bertold Brecht aos seus actores. E não será, afinal, isso que Margherita, a realizadora de Minha mãe, um alter ego de Moretti, pretende quando diz aos seus actores que não precisam de encarnar a sua personagem, mas de “estar ao seu lado”? Este efeito brechtiano de distanciamento sempre me atraiu nos filmes de Nanni Moretti e é isso que, antes de mais e na minha opinião, fazia deles, tão claramente, objectos políticos. 

Três andares não é certamente uma comédia, mas não é apenas isso que o destaca das primeiras obras de Moretti, mas sobretudo a renúncia àquele distanciamento irónico que se interpunha entre o realizador e a matéria dos seus filmes. Agora, o espectador é convidado a observar, aparentemente sem filtros, a vida das três famílias que habitam um prédio burguês, numa cidade qualquer. É claro que já em O quarto do filho e Minha mãe, Moretti tinha abdicado dos temas explicitamente políticos presentes nas suas primeiras obras mas, neles, havia ainda um fundo autobiográfico: a primeira, reflecte a sua angústia diante de uma eventual perda do seu próprio filho, que tinha então cinco anos; a segunda, tem como pano de fundo a morte da sua mãe. Em Três andares, Moretti, ele próprio está, por assim dizer, “ausente”. Pela primeira vez, o realizador adaptou uma história criada por outro, o romancista israelita Eshkol Nevo. 

É claro que isto não nos impede de reconhecer em Três andares um certo “ar de família” que o liga a outros filmes de Nanni Moretti. Desde logo pela sua presença como intérprete, mas sobretudo pela forma como questiona, sem nos propor respostas terminantes, os dramas íntimos que habitam a vida interior das suas personagens. Lucio e a sua cega obsessão; Monica, a sua solidão e os seus medos; Vittorio e a sua moralidade intolerante; e Dora (a magnífica Margherita Buy), confrontada com o vazio da sua existência, entre as perdas do marido e do filho Todas elas, apesar e herdadas do romance de Eshkol Nevo, são personagens bem “morettianas” que procuram, com passos incertos, uma saída no labirinto dos erros e das dúvidas onde se perderam. 

Passada a experiência traumática do fim do PCI e das esperanças de um mundo novo que ele transportava, da subida ao poder de Berlusconi e do que ele representa, a Itália parece ter caído numa ordinária e desesperançada “normalidade”, onde até um ataque xenófobo a um centro de apoio a imigrantes pobres pode caber. Embora os dramas íntimos não deixem de ocorrer em contextos sociais precisos, a política cedeu-lhes, então, o protagonismo que teria tido noutros tempos. Quem pode, portanto, condenar Nanni Moretti por passar da “comédia” ao melodrama? Afinal, a qualidade dos seus filmes permanece intacta e, no final (um episódio que não se encontra no romance adaptado), dança-se o tango e todos sorriem.

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