por António Cruz Mendes
Hoje, vamos ver “um Nanni Moretti” diferente daquele que conhecemos melhor. Julgo
que podemos observar, sobretudo nos seus primeiros filmes, um registo quase
documental. De forma alguma o tipo de documentário que se apresenta como uma
apresentação da “realidade tal qual ela é”, mas antes aquele que se revela claramente
como “um discurso sobre”. Em Palombella Rossa, Querido Diário ou Abril, havia uma
personagem-guia, uma espécie de narrador, no qual éramos tentados a ver o próprio
realizador, que nos conduzia através do seu mundo particular, a Itália contemporânea e
a sua realidade política, convidando-nos a conhecer e a partilhar as suas próprias
angústias e perplexidades. Três andares não nos fala de Itália, os seus temas são
universais: as dificuldades da vida em comum, as responsabilidades que resultam da
parentalidade e das consequências das nossas acções. A justiça e a culpa. E nele não
temos sequer uma personagem-âncora em torno da qual se construa uma narrativa,
mas três diferentes histórias, ainda que unidas por temas, um espaço físico e
personagens comuns. Um filme-mosaico, portanto, um complexo de histórias sobre as
quais nenhuma das personagens tem uma perspectiva privilegiada.
Numa entrevista recente, Moretti defendia o seu direito de não fazer apenas comédias.
É certo que Três andares não é uma comédia, tal como também não o eram O quarto
do filho e Minha mãe, melodramas dominados pelo tema da morte. Mas, na verdade,
também nunca entendi como verdadeiras comédias Palombella Rossa, onde Moretti,
na pele de Michele Apiccena, é um ex-dirigente do PCI que, depois de um acidente,
perdeu a memória, ou Querido diário, filme onde ele personifica um realizador de
cinema que, nas palavras de João Lopes, “filma na primeira pessoa, não para afirmar a
verdade da sua visão, antes sublinhando a singularidade do seu ‘eu’, desse lugar a
partir do qual ele adquire os contornos de uma solidão irredutível” (Expresso). De Abril,
poder-se-ia dizer o mesmo. Nesses filmes, o exercício de auto-ironia é por demais
evidente e as situações cómicas apenas disfarçam uma amargura latente.
“Mostrai que mostrais”, pedia Bertold Brecht aos seus actores. E não será, afinal, isso
que Margherita, a realizadora de Minha mãe, um alter ego de Moretti, pretende quando
diz aos seus actores que não precisam de encarnar a sua personagem, mas de “estar
ao seu lado”? Este efeito brechtiano de distanciamento sempre me atraiu nos filmes de
Nanni Moretti e é isso que, antes de mais e na minha opinião, fazia deles, tão
claramente, objectos políticos.
Três andares não é certamente uma comédia, mas não é apenas isso que o destaca
das primeiras obras de Moretti, mas sobretudo a renúncia àquele distanciamento
irónico que se interpunha entre o realizador e a matéria dos seus filmes. Agora, o
espectador é convidado a observar, aparentemente sem filtros, a vida das três famílias
que habitam um prédio burguês, numa cidade qualquer. É claro que já em O quarto do
filho e Minha mãe, Moretti tinha abdicado dos temas explicitamente políticos presentes
nas suas primeiras obras mas, neles, havia ainda um fundo autobiográfico: a primeira,
reflecte a sua angústia diante de uma eventual perda do seu próprio filho, que tinha
então cinco anos; a segunda, tem como pano de fundo a morte da sua mãe. Em Três
andares, Moretti, ele próprio está, por assim dizer, “ausente”. Pela primeira vez, o
realizador adaptou uma história criada por outro, o romancista israelita Eshkol Nevo.
É claro que isto não nos impede de reconhecer em Três andares um certo “ar de
família” que o liga a outros filmes de Nanni Moretti. Desde logo pela sua presença
como intérprete, mas sobretudo pela forma como questiona, sem nos propor respostas
terminantes, os dramas íntimos que habitam a vida interior das suas personagens.
Lucio e a sua cega obsessão; Monica, a sua solidão e os seus medos; Vittorio e a sua
moralidade intolerante; e Dora (a magnífica Margherita Buy), confrontada com o vazio
da sua existência, entre as perdas do marido e do filho Todas elas, apesar e herdadas
do romance de Eshkol Nevo, são personagens bem “morettianas” que procuram, com
passos incertos, uma saída no labirinto dos erros e das dúvidas onde se perderam.
Passada a experiência traumática do fim do PCI e das esperanças de um mundo novo
que ele transportava, da subida ao poder de Berlusconi e do que ele representa, a Itália
parece ter caído numa ordinária e desesperançada “normalidade”, onde até um ataque
xenófobo a um centro de apoio a imigrantes pobres pode caber. Embora os dramas
íntimos não deixem de ocorrer em contextos sociais precisos, a política cedeu-lhes,
então, o protagonismo que teria tido noutros tempos. Quem pode, portanto, condenar
Nanni Moretti por passar da “comédia” ao melodrama? Afinal, a qualidade dos seus
filmes permanece intacta e, no final (um episódio que não se encontra no romance
adaptado), dança-se o tango e todos sorriem.
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