quarta-feira, 27 de abril de 2022

Lilith (1964) de Robert Rossen



por António Cruz Mendes

O que quer dizer HIARA PIRLU RESH KAVANI? Nunca saberemos. Lilith criou a sua própria linguagem, a linguagem de um mundo que só a si pertence. Criou-o para se proteger e para proteger os outros, porque Lilith, como Deus, queria amar a todos, mas o seu amor leva à morte aqueles de quem gosta. Responsabiliza-se pela morte do irmão, que a amava e lhe oferecia presentes, e vive desde os 18 anos reclusa no seu mundo-quarto-caverna donde quase nunca sai. Até que, da sua janela protegida por uma rede, observa a chegada de Vincent que a convida a participar num pic-nic. 

Chove torrencialmente. Um grupo de pacientes tenta abrigar-se debaixo de uma árvore. Vincent procura Lilith e Steven que se afastaram e encontra-os à beira de um rio de águas revoltas. Os dois jovens parecem fascinados pela beleza da rapariga que as desenha convulsivamente. Steven está apaixonado. Ela é a única razão de ser da sua existência. Suicidar-se-á quando se julgou rejeitado. 

Lilith olha, absorta, a corrente de água tumultuosa que corre aos seus pés. A montagem intercala uma sucessão de imagens dos três, dos seus olhares que se cruzam, com as do rio indomado, numa vertigem que nos arrasta para as belas e ameaçadoras profundezas daquela torrente. Lilith atirou-lhes o pincel e Steven arrisca-se perigosamente pelos rochedos para o tentar recuperar. 

Nas imagens da sequência do pic-nic, condensa-se o tema do filme de Robert Rossen, Lilith e o seu Destino. Quem viu o Esplendor na relva, o filme da última sessão do cineclube recordar-se-á daquele outro rio de águas selvagens, onde Bud e Juanita saciam o seu desejo e onde Leslie tenta afogar a sua paixão. 

A tentativa de suicídio de Leslie condu-la a um hospital psiquiátrico e também é aí que se encontra internada Lilith, diagnosticada como esquizofrénica. O amor torna-se numa doença quando transgride as normas que são socialmente aceitáveis. 

Em Lilith, o rio está sempre presente. Na sua cena de amor com Vincent, à imagem dos seus corpos, sobrepõe-se a dos reflexos do sol sobre a sua superfície; nele, se vê a imagem distorcida dos rostos de Lilith e da paciente com quem se vai unir num celeiro; e é nele que Lilith vê sua imagem reflectida, imagem que desaparece quando se debruça para a beijar. Destruímos sempre o que amamos. 
 
Na história do cinema, não faltam exemplos de “mulheres fatais”, seres sedutores que, como as sereias da Odisseia, arrastam os homens para a perdição. Lilith é um nome com ressonâncias bíblicas que sublinham essa ideia. Mas, será esse o caso da Lilith de Robert Rossen? 

Vincent é um jovem errante e vulnerável que, desmobilizado depois da guerra da Coreia, procura um rumo para a sua vida. O que é que o terá levado a procurar trabalho num hospital psiquiátrico? Até que ponto as evidentes parecenças de Lilith com a sua mãe explicam a sua paixão? Quem é a aranha esquizofrénica, autora da teia perturbadoramente assimétrica que se vai tecendo diante de nós? 

Foram os doentios ciúmes de Vincent que levaram Steven ao suicídio, replicando a morte do irmão de Lilith, e destruíram o frágil equilíbrio do mundo que ela construiu para si própria. Por onde passa, afinal, a fronteira que separa a sanidade mental da loucura?

Sem comentários:

Enviar um comentário