por Alexandra Barros
No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os actores associados ao regime nazi foram ostracizados pela indústria cinematográfica alemã. Perdido o estatuto e o emprego, muitos entraram em espirais de auto-destruição, dominados pelo álcool ou por drogas. Sybille Schmitz foi uma dessas atrizes. Famosa e admirada durante o Terceiro Reich, foi afastada no pós-guerra, tornou-se dependente da morfina e suicidou-se em circunstâncias misteriosas. A Drª Ursula Moritz, ao cuidado de quem Schmitz se encontrava, foi acusada de promover a dependência da actriz com o intuito de a explorar financeiramente. Paul Demmler, um funcionário do Departamento de Saúde de Munique foi chamado para depor no caso e contra todas as evidências defendeu a médica, levantando suspeitas de corrupção. No decorrer de uma investigação realizada por jornalistas, descobriu-se que a polícia e o Departamento de Saúde nunca abriram inquérito para averiguar a conduta da Drª Moritz, que num espaço inferior a três anos prescreveu quase 800 receitas de narcóticos aos seus pacientes, tendo outros dois, para além de Schmitz, posto fim à própria vida.
Foi a partir deste caso que Fassbinder criou este film noir, onde Veronika Voss é a personagem que toma o lugar de Schmitz e a Drª Katz é a médica que a mantém refém, alimentando-lhe o vício. As convenções visuais do film noir estão, no entanto, aqui invertidas. As cenas passadas na clínica da Drª Katz, onde Veronika vive sob a manipulação e domínio da médica, são fortemente iluminadas por uma ofuscante luz branca, onde tudo se dissolve. Aí, Veronika parece incorpórea, fantasmagórica. E não é ela afinal um fantasma do período nazi? Veronika só se materializa quando abandona a clínica e vagueia nas sombras negras da noite. Nos bares tenuemente iluminados, o seu corpo projecta nas paredes uma sombra densa e bem definida e o seu rosto apresenta-se esplendoroso como o das divas do cinema clássico. A luz é dissolução, a escuridão é possível salvação. Numa noite tempestuosa, conhece por acaso um jornalista desportivo, Robert Krohn, por quem se vem a interessar. Krohn fica simultaneamente atraído e intrigado pela bizarria de Veronika e pelas circunstâncias estranhas em que vive. Ao descobrir a teia em que Veronika é mantida pela Drª Katz, Krohn procura socorrê-la, mas Veronika impede-o. Subjugada pela morfina, é a própria quem sabota a sua libertação.
Para Veronika só existem a dor da vida real ou a alienação da morfina. A sua vida é a preto e branco, como os filmes em que outrora brilhou. “Luz e sombra, são os segredos do cinema.” diz Veronika Voss. Fassbinder, por seu lado, afirmou que o preto e o branco são as mais belas cores em cinema[1]. Considerado uma homenagem ao clássico de Hollywood O Crepúsculo dos Deuses[2], o filme de Fassbinder é mais do que a história de uma estrela de cinema decadente. Nas palavras de Fassbinder: “Um tema é a destruição e queda de uma pessoa [...]; o outro tema é a exploração criminosa dos diferentes tipos de desespero de indivíduos excessivamente sensíveis.” Um dos outros pacientes da Drª Katz é Jan Treibel, um sobrevivente dos campos de concentração da Alemanha nazi, a quem a Drª Katz deixa de fornecer morfina, após apoderar-se de todos os seus bens. O casal Treibel acaba por se suicidar quando é abandonado pela Drª Katz. Ao procurar refúgio na morfina para os traumas do Holocausto, os Treibel encontram outro tipo de desumanidade: o de um poder que se alia a gananciosos sem escrúpulos e despreza aqueles que devia proteger. Confirmada a suspeita de uma aliança criminosa entre a Drª Katz e um funcionário do Ministério da Saúde (Dr. Edel), Krohn vê-se definitivamente derrotado e pede a um taxista que o transporte até à sua própria forma de alienação.
Depois deste filme, Fassbinder realizou ainda Querelle, mas A Saudade de Veronika Voss foi o último que estreou em vida, com ele fechando a trilogia BRD[3], consagrada à República Federal da Alemanha. Com este filme, Fassbinder ganhou um Urso de Ouro (no Festival de Berlim de 1982), negado em edições anteriores a Effi Briest e a O Casamento de Maria Braun. Morreu de uma overdose de cocaína pouco tempo depois.
[1] A propósito do preto-e-branco, evoco uma extraordinária frase da personagem de Samuel Fuller (cameraman) no filme O Estado das Coisas de Wim Wenders: "A vida é a cores, mas o preto e branco é mais realista."
[2] Sunset Boulevard, de Billy Wilder, 1950.
[3] Da trilogia BRD (Bundesrepublik Deutschland) fazem ainda parte: O Casamento de Maria Braun (1979) e Lola (1981).