quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Die Sehnsucht der Veronika Voss (1982) de Rainer Werner Fassbinder



por Alexandra Barros

No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os actores associados ao regime nazi foram ostracizados pela indústria cinematográfica alemã. Perdido o estatuto e o emprego, muitos entraram em espirais de auto-destruição, dominados pelo álcool ou por drogas. Sybille Schmitz foi uma dessas atrizes. Famosa e admirada durante o Terceiro Reich, foi afastada no pós-guerra, tornou-se dependente da morfina e suicidou-se em circunstâncias misteriosas. A Drª Ursula Moritz, ao cuidado de quem Schmitz se encontrava, foi acusada de promover a dependência da actriz com o intuito de a explorar financeiramente. Paul Demmler, um funcionário do Departamento de Saúde de Munique foi chamado para depor no caso e contra todas as evidências defendeu a médica, levantando suspeitas de corrupção. No decorrer de uma investigação realizada por jornalistas, descobriu-se que a polícia e o Departamento de Saúde nunca abriram inquérito para averiguar a conduta da Drª Moritz, que num espaço inferior a três anos prescreveu quase 800 receitas de narcóticos aos seus pacientes, tendo outros dois, para além de Schmitz, posto fim à própria vida. 
 
Foi a partir deste caso que Fassbinder criou este film noir, onde Veronika Voss é a personagem que toma o lugar de Schmitz e a Drª Katz é a médica que a mantém refém, alimentando-lhe o vício. As convenções visuais do film noir estão, no entanto, aqui invertidas. As cenas passadas na clínica da Drª Katz, onde Veronika vive sob a manipulação e domínio da médica, são fortemente iluminadas por uma ofuscante luz branca, onde tudo se dissolve. Aí, Veronika parece incorpórea, fantasmagórica. E não é ela afinal um fantasma do período nazi? Veronika só se materializa quando abandona a clínica e vagueia nas sombras negras da noite. Nos bares tenuemente iluminados, o seu corpo projecta nas paredes uma sombra densa e bem definida e o seu rosto apresenta-se esplendoroso como o das divas do cinema clássico. A luz é dissolução, a escuridão é possível salvação. Numa noite tempestuosa, conhece por acaso um jornalista desportivo, Robert Krohn, por quem se vem a interessar. Krohn fica simultaneamente atraído e intrigado pela bizarria de Veronika e pelas circunstâncias estranhas em que vive. Ao descobrir a teia em que Veronika é mantida pela Drª Katz, Krohn procura socorrê-la, mas Veronika impede-o. Subjugada pela morfina, é a própria quem sabota a sua libertação. 
 
Para Veronika só existem a dor da vida real ou a alienação da morfina. A sua vida é a preto e branco, como os filmes em que outrora brilhou. “Luz e sombra, são os segredos do cinema.” diz Veronika Voss. Fassbinder, por seu lado, afirmou que o preto e o branco são as mais belas cores em cinema[1]. Considerado uma homenagem ao clássico de Hollywood O Crepúsculo dos Deuses[2], o filme de Fassbinder é mais do que a história de uma estrela de cinema decadente. Nas palavras de Fassbinder: “Um tema é a destruição e queda de uma pessoa [...]; o outro tema é a exploração criminosa dos diferentes tipos de desespero de indivíduos excessivamente sensíveis.” Um dos outros pacientes da Drª Katz é Jan Treibel, um sobrevivente dos campos de concentração da Alemanha nazi, a quem a Drª Katz deixa de fornecer morfina, após apoderar-se de todos os seus bens. O casal Treibel acaba por se suicidar quando é abandonado pela Drª Katz. Ao procurar refúgio na morfina para os traumas do Holocausto, os Treibel encontram outro tipo de desumanidade: o de um poder que se alia a gananciosos sem escrúpulos e despreza aqueles que devia proteger. Confirmada a suspeita de uma aliança criminosa entre a Drª Katz e um funcionário do Ministério da Saúde (Dr. Edel), Krohn vê-se definitivamente derrotado e pede a um taxista que o transporte até à sua própria forma de alienação. 
 
Depois deste filme, Fassbinder realizou ainda Querelle, mas A Saudade de Veronika Voss foi o último que estreou em vida, com ele fechando a trilogia BRD[3], consagrada à República Federal da Alemanha. Com este filme, Fassbinder ganhou um Urso de Ouro (no Festival de Berlim de 1982), negado em edições anteriores a Effi Briest e a O Casamento de Maria Braun. Morreu de uma overdose de cocaína pouco tempo depois.

[1] A propósito do preto-e-branco, evoco uma extraordinária frase da personagem de Samuel Fuller (cameraman) no filme O Estado das Coisas de Wim Wenders: "A vida é a cores, mas o preto e branco é mais realista."
[2] Sunset Boulevard, de Billy Wilder, 1950.
[3] Da trilogia BRD (Bundesrepublik Deutschland) fazem ainda parte: O Casamento de Maria Braun (1979) e Lola (1981).



domingo, 28 de janeiro de 2024

328ª sessão: dia 30 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


“A Saudade de Veronika Voss” encerra ciclo Fassbinder 

Em Janeiro, inaugurando o novo ano das suas actividades, o Lucky Star – Cineclube de Braga, em parceria com o Goethe-Institut de Portugal, promove o ciclo “Poder e opressão - As Mulheres de Fassbinder”, com a exibição de quatro filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Rainer Fassbinder nasceu em Bad Wörishofen, na Baviera, a 31 de Maio de 1945. Faleceu em Munique a 10 de Junho de 1982, aos 37 anos. Durante a sua breve carreira, que durou apenas quinze anos, escreveu vinte e quatro peças, escreveu e realizou mais de quarenta filmes, entrando como actor noutros tantos, e fez duas séries para a televisão. 

O ciclo dedicado ao alemão termina hoje às 21h30 com a exibição de A Saudade de Veronika Voss, segundo tomo da trilogia BRD (acrónimo de “Bundesrepublik Deutschland”, República Federal da Alemanha), apesar de cronologicamente ter sido o último a ser realizado. As outras duas partes da trilogia são O Casamento de Maria Braun e Lola, já exibido pelo cineclube no âmbito deste ciclo. 

Ambientado nos anos cinquenta, em Munique, o filme centra-se na vida da actriz Veronika Voss, que tem muitas dificuldades em conseguir papéis. Outrora estrela da UFA, diz-se ter dormido com Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Terceiro Reich. Um dia, enquanto anda no metro de Munique, conhece Robert Krohn, um jornalista desportivo com quem começa um relacionamento. 

“A história do cinema passa necessariamente, entre 1969 e 1982, pelo cinema de Fassbinder,” escreveu Camille Nevers para os Cahiers du Cinéma em 1993, “esse bloco de tempo talhado à imagem de uma nação da qual regista a memória e a história. Fassbinder é um autor não porque ilustra o mundo através do seu olhar artístico (o autor-iluminador, como se ilustra hoje), mas porque, tendo visto algo de uma sociedade, mete o nosso nariz nela, colocando aí as formas.” 

"Antes de Fassbinder,” escreveu Serge Daney num artigo sobre A Saudade de Veronika Voss, precisamente, “havia apenas uma questão na Alemanha, do tipo: como podemos viver com essa coisa, a besta imunda? Depois de Fassbinder, por causa dele, a pergunta deslocou-se de forma insidiosa: como podemos esquecer tão facilmente?” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Lola (1981) de Rainer Werner Fassbinder



por João Palhares

O livro em que se basearam O Anjo Azul de Josef von Sternberg, O Anjo Azul de Edward Dmytryk, Pinjra de Shantaram Rajaram Vankudre, Anjo Loiro de Alfredo Sternheim e este Lola de Rainer Werner Fassbinder, foi publicado em 1905 e foi escrito por Heinrich Mann, irmão mais velho de Thomas Mann. Chama-se “Professor Unrat ou O Fim de um Tirano” e só em Fevereiro do ano passado foi traduzido e publicado entre nós pela E-Primatur, sendo aliás o primeiro e único romance de Heinrich Mann editado em Portugal. Não foi oficialmente banido na Alemanha, mas recebeu muitas críticas negativas e circulou apenas em meios intelectuais até finais dos anos vinte. Em 1933, três anos depois de ter sido adaptado ao cinema pela primeira vez, certamente por criticar as classes altas e os poderosos, e certamente por o seu autor ter assinado com Albert Einstein e outros escritores, políticos e cientistas um apelo à unidade para impedir os nazis de subir ao poder, o livro foi um dos muitos queimados em Berlim numa campanha iniciada por estudantes alemães com o apoio de Joseph Goebbels. 
 
O romance de Mann é sobre o professor que lhe dá o título, embora “Unrat” seja uma alcunha que os alunos lhe dão e signifique “esterco”. Com algum poder nas suas salas de aula, o professor Raat atormenta os seus alunos por viver em grande frustração. É viúvo, tem 57 anos, tem um filho que deixou de ver e já deve ter dado aulas a grande parte dos habitantes da sua pequena cidade, que o desprezam como ele os despreza a eles. A dada altura na estória, encontra um poema escrito por um dos alunos dirigido a uma certa menina Rosa Fröhlich, que localiza num bar chamado Anjo Azul. Ele quer repreendê-la e impedi-la de corromper os seus alunos, dizendo-lhe até para abandonar a cidade no dia seguinte, mas acaba por ser seduzido e apaixonar-se perdidamente por ela. No final, depois de algumas peripécias, ele é despedido, fica sem dinheiro, ela engana-o e, depois do professor a tentar estrangular e roubar um antigo aluno que se oferece para lhe pagar as dívidas, Raat e Rosa acabam na prisão. 
 
Isto será o essencial do livro de Mann, que não li mas gostava muito de ler. Tendo como base as adaptações de Sternberg e de Fassbinder, parece-me que nenhum faz justiça ao potencial deste esquema de acontecimentos, e conhecendo as obras dos dois, é pena, porque lhes cairiam como uma luva. Mas o filme de Sternberg, primeiro dos sete que fez com Marlene Dietrich, é o pior da série e sofre imenso por ser sonoro, na altura uma novidade e um empecilho para alguns actores e realizadores, que se viam de repente com instrumentos muito rudimentares para criar obras com toda uma outra linguagem. O lado tirânico do professor, interpretado por Emil Jannings, não parece de todo evidente e surpreendemo-nos com o final terrível e sádico que lhe é destinado. De resto, os primeiros dois terços do filme são muitíssimo enfadonhos e só se entende a perenidade desta obra pela iconografia em torno de Dietrich (principalmente nos números musicais) e os primeiros passos da sua fama como estrela em Hollywood. 
 
O filme de Fassbinder não faz melhor. O professor Unrat, aqui o inspector de obras Van Bohm, é durante praticamente todo o filme respeitado ao mais altíssimo grau por todos os habitantes da cidade, que não é a sua, centrando-se agora a estória na sua luta perdida contra a corrupção durante o pós-guerra na Alemanha e caindo a sua relação com Lola para segundíssimo plano, não se notando nele essa paixão capaz de o perder e degradar para todo o sempre. Estranho para um filme chamado “Lola” e estranho para um filme de Rainer Werner Fassbinder. As cores são fabulosas, não haja dúvida, mas a crueldade e a raiva do alemão que fez As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, O Direito do Mais Forte à Liberdade, Martha e Lili Marleen, são substituídas por um cinismo pálido e calado que não me convence. No interior de uma obra de mais de quarenta longas-metragens, realizadas num período de quinze anos entre mil outros afazeres, talvez seja normal, e talvez seja a razão por que outros se destaquem antes e depois, por tentativa, erro e ensaio e sem as ambições desmedidas, excessivamente auto-conscientes e completamente irrealistas em relação à “obra” que tem por exemplo um Quentin Tarantino. 
 
E por isso me parecem acertadíssimas e não resisto a partilhar as palavras de Miguel Marías num obituário que escreveu sobre Fassbinder em 1982, belo guia para a descoberta da obra do cineasta alemão em que diz que “se as minhas contas não falham—e não tenho a certeza—, Fassbinder fez 42 longas-metragens ou séries—para o cinema ou para a televisão, em vídeo ou em suporte químico—e quatro curtas. A segunda destas, rodada em 1966, sugeriu-me o título deste comentário: O Pequeno Caos, suponho eu, é a ideia que o seu autor tinha da vida; também é a sensação que a obra de Fassbinder produz naquele que escreve estas linhas, porque nela se combinam, na mais assombrosa das promiscuidades—em poucos meses, com a mesma equipa, baralhando elementos temáticos e dramaturgias semelhantes—, o melhor e o pior que conseguiu dar o cinema dos últimos quinze anos (a sua primeira longa data de 1969). De todos esses quilómetros impressos—e às vezes impressionantes para o espectador—, dos milhares de minutos montados que a sua obra supõe, não vi mais que 18 longas e o episódio, autobiográfico, de Alemanha no Outono (1978), e nessa porção—que não chega a metade—há realmente de tudo: acho detestável a sua adaptação de Nabokov, A Segunda Dimensão (1978), irritantemente nulos, Satansbraten (1976) e In einem Jahr mit 13 Monden (1978); falhado, Lola (1981); desprovidos de interesse, Os Deuses da Peste (1970) e Roleta Chinesa (1976); ao mesmo tempo que me parecem extremamente interessantes o seu contributo para Alemanha no Outono—de uma sinceridade e de um impudor que admiram e assustam—e Amor e Preconceito (1974); apaixonantes, Porque Corre o Sr. R. Amok? (1970), O Mercador das Quatro Estações (1971), As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), O Direito do Mais Forte à Liberdade (1974), Mamã Küsters Vai Para o Céu (1975), A Mulher do Chefe da Estação (1977), O Casamento de Maria Braun (1978) e Lili Marleen (1980), e geniais—terríveis, comoventes, lúcidos e generosos—O Medo Come a Alma (1973), e a filmagem em vídeo—sinuosos e acusadores movimentos de câmara, magistral utilização do espaço cénico e da decoração, aproveitando a textura visual peculiar do material utilizado, com uma direcção de actores quase tão prodigiosa como a de Dreyer em Gertrud—, da sua encenação de “Casa de boneca”, de Herik Ibsen, o «teledrama» Nora Helmer (1973).”



segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

327ª sessão: dia 23 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


“Lola” de Fassbinder para ver na biblioteca 

Em Janeiro, inaugurando o novo ano das suas actividades, o Lucky Star – Cineclube de Braga, em parceria com o Goethe-Institut de Portugal, promove o ciclo “Poder e opressão - As Mulheres de Fassbinder”, com a exibição de quatro filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Rainer Fassbinder nasceu em Bad Wörishofen, na Baviera, a 31 de Maio de 1945. Faleceu em Munique a 10 de Junho de 1982, aos 37 anos. Durante a sua breve carreira, que durou apenas quinze anos, escreveu vinte e quatro peças, escreveu e realizou mais de quarenta filmes, entrando como actor noutros tantos, e fez duas séries para a televisão. 

O ciclo dedicado ao alemão continua amanhã às 21h30 com a exibição de Lola, terceiro tomo da trilogia BRD, apesar de cronologicamente ter sido o segundo a ser realizado. As outras duas partes da trilogia são O Casamento de Maria Braun e A Saudade de Veronika Voss, que será exibido pelo cineclube na última sessão de Janeiro, dia 30 às 21h30. 

A trilogia BRD é uma trilogia temática, não narrativa, e o acrónimo “BRD” significa “Bundesrepublik Deutschland”, que se traduz em português como “República Federal da Alemanha”. Os três filmes centram-se na vida de uma mulher diferente durante o pós-guerra e o chamado “milagre económico” alemão dos anos cinquenta. 

Lola situa-se então no pós-guerra, centrando-se na personagem-título que trabalha como cantora num bordel onde se encontram os ricos e poderosos. 

Fassbinder falou sobre a génese de Lola no dossier de imprensa do filme, explicando que “depois de ter feito A Segunda Dimensão com Dirk Bogarde, ele escreveu-me uma carta a dizer que, embora na verdade não quisesse fazer mais filmes, gostava de fazer outro filme comigo—e queria que fosse o Professor Unrat de Heinrich Mann. Achei que isto era uma ideia empolgante.” 

“Mas os meus escritores, Peter Märthesheimer e Pea Fröhlich,” continuava ele, “disseram que a estória no romance tal como está não lhes interessava muito. Entretanto, eu também estava no ponto de pensar para mim mesmo que o período em que o romance se situa—ou seja, antes da Primeira Guerra Mundial—também não me interessava muito. Eu estou interessado nos anos cinquenta.” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Lili Marleen (1981) de Rainer Werner Fassbinder



por António Cruz Mendes

Fassbinder morreu em 1982, com 37 anos. Nesse curto espaço de vida, realizou quarenta e três filmes, sendo um deles “Berlin Alexanderplatz”, a série cinematográfica com a duração de mais de quinze horas que adapta para a televisão o famoso romance de Alfred Döblin. No quadro dessa extraordinária actividade criativa, não é simples identificar um estilo que o defina. Os seus filmes podem variar entre um barroquismo estético e uma extrema depuração, assumir códigos de representação próximos dos do teatro, ou serem mais convencionalmente cinematográficos. Contudo, confere-lhes uma coerência própria o facto da Alemanha se encontrar sempre no centro da sua atenção. “Espero viver o suficiente para realizar umas dezenas de filmes que retratem a Alemanha, tal como a vejo, na sua globalidade”, afirmou. E, ainda numa entrevista ao Le Monde: “”procuro-me na história do meu país, porque sou alemão”. 

Nessa busca, o passado nazi não poderia ser ignorado e Lili Marleen foi o seu primeiro filme onde esse tema ocupou um lugar central. Trata da história de um amor proibido, mas, sobretudo, da história de uma canção e coloca-nos diante de uma questão central: na Alemanha, diante do nazismo e da guerra a neutralidade seria possível? O tema é particularmente sensível por causa da pretendida inocência do povo alemão, tão reclamada nos anos do pós-guerra. Uns apenas cumpriram ordens e os outros, simplesmente, nada sabiam do que se passava à sua volta. E, rapidamente, se lançou um manto de silêncio sobre o assunto. 

Neste sentido, de certa forma, Willie, personifica a Alemanha. Para ela, o nazismo e a guerra são realidades distantes e, afinal, “Lili Marleen”, que nos fala dos soldados que, nos seus aquartelamentos ou na frente de batalha, sonham com o dia em que voltarão a reencontrar as suas amadas, é apenas uma canção... O próprio Goebbels a deprecia por não estimular o “espírito patriótico alemão”. Para ele, ela é apenas “uma tolice com cheiro a morte”. E, no entanto, torna-se uma espécie de hino que todos conhecem, alimenta o moral das tropas e, portanto, a sua disposição combatente. O próprio Hitler o admite e o sucesso de “Lili Marleen” vai ser o sucesso de Willie. Abrem-se-lhe as portas de acesso às altas esferas do regime e o seu deslumbramento é evidente. Finalmente, diz-nos ela, “tive sorte na vida”. Numa sequência fabulosa, sobre si, no palco, caem flores, enquanto no campo de batalhas, as bombas caem sobre os soldados. Ao glamour da sua vida artística contrapõe-se a sordidez e a violência da guerra, mas as duas realidades são inseparáveis. 

Para Willie, “Lili Marleen” é sinónimo de fama e de riqueza; para os soldados alemães, a promessa de dias melhores; para Robert, encerrado numa pequena cela, obrigado a ouvi-la a toda a hora, dias e noites sem fim, é um instrumento de tortura; depois da descoberta da relação de Willie com um judeu e da falsa denúncia da sua morte, é usada como instrumento da propaganda dos Aliados; e, finalmente, para Taschner, o seu pianista, remetido para o inferno da “frente Leste”, ela vai ser a armadilha que o conduzirá à morte. Afinal, quantos usos pode ter uma inocente canção de amor?



domingo, 14 de janeiro de 2024

326ª sessão: dia 16 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


“Lili Marleen” é a próxima sessão do cineclube 

Em Janeiro, inaugurando o novo ano das suas actividades, o Lucky Star – Cineclube de Braga, em parceria com o Goethe-Institut de Portugal, exibe quatro filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Rainer Fassbinder nasceu em Bad Wörishofen, na Baviera, a 31 de Maio de 1945. Faleceu em Munique a 10 de Junho de 1982, aos 37 anos. Durante a sua breve carreira, que durou apenas quinze anos, escreveu vinte e quatro peças, realizou mais de quarenta filmes, entrando como actor noutros tantos, e fez duas séries para a televisão. 

O ciclo, intitulado “Poder e opressão - As Mulheres de Fassbinder”, continua na terça-feira dia 16, às 21h30, com a exibição de Lili Marleen, produzido em 1981 com um orçamento considerável para Fassbinder e filmado em língua alemã e em língua inglesa. O título do filme vem de uma canção famosa tanto entre os Aliados como entre as potências do Eixo durante a 2ª Guerra Mundial, pela voz de Lale Andersen. 

História de amor em tempos de guerra entre uma cantora alemã, Willie, que se torna um símbolo nacional durante o Terceiro Reich, e Robert, um aprendiz de maestro judeu que quer fazer tudo para salvar o seu povo dos nazis, o filme conta com as participações do americano Mel Ferrer, do italiano Giancarlo Giannini e a alemã Hanna Schygulla, que interpreta o papel principal. 

Schygulla, nascida em 1943, trabalhou com Fassbinder em O Amor é Mais Frio do Que a Morte, O Machão, Os Deuses da Peste, Das Kaffehaus, Porque Corre o Sr. R. Amok?, A Viagem a Niklashauer, Rio das Mortes, Pioneiros em Ingolstadt, Whity, Cuidado com Essa Puta Sagrada, O Mercador das Quatro Estações, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Jogos Perigosos, "Acht Stunden sind kein Tag", Amor e Preconceito, O Casamento de Maria Braun, A Terceira Geração, “Berlin Alexanderplatz” e Lili Marleen, a última colaboração entre os dois. 

“Baseámo-nos em factos,” disse Hanna Schygulla à televisão francesa pela altura da estreia do filme, nos anos oitenta, “mas exagerámo-los. Descobrimos que era uma canção que podia ser usada para satisfazer os soldados, que estavam efectivamente na merda, para os fazer sonhar um bocado. Mas mesmo assim havia qualquer coisa de subversivo na canção.” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Martha (1974) de Rainer Werner Fassbinder



por João Palhares

Antes de Rainer Werner Fassbinder, o alemão que viveu 37 anos e durante os quinze que durou a sua curta carreira realizou mais de quarenta filmes, encenou mais de vinte peças e fez duas séries para a televisão, já vários realizadores tinham adaptado obras do escritor americano Cornell Woolrich, como Jacques Tourneur em O Homem Leopardo (1943), que adaptava “Black Alibi”, Robert Siodmak em Phantom Lady (1944), já exibido por nós em 2016 e que adaptava o livro homónimo de 1942, Mitchell Leisen em No Man of Her Own (1950), que adaptava “I Married a Dead Man”, ou Alfred Hitchcock em Janela Indiscreta (1954), que adaptava o conto “It Had to be Murder”, além de François Truffaut em A Noiva Estava de Luto (1968) e A Sereia do Mississipi (1969), que adaptavam respectivamente os romances “The Bride Wore Black”, o seu primeiro policial, de 1940, e “Waltz into Darkness” de 1947. 

Cornell Woolrich nasceu em 1903, vivendo com o pai no México e com a mãe em Nova Iorque depois destes se separarem quando era ainda muito jovem. Inscreveu-se na Universidade de Columbia, mas saiu antes de se licenciar quando conseguiu publicar o seu primeiro romance, “Cover Charge”, primeiro de uns poucos que escreveu durante os anos vinte e trinta inspirados no trabalho de F. Scott Fitzgerald e nos chamados “loucos anos vinte”. Com o segundo, “Children of the Ritz”, venceu um concurso organizado pela revista College Humor e pela First National Pictures, que o contratou para trabalhar como argumentista em Hollywood. Foi em Los Angeles que explorou a sua homossexualidade, enquanto estava casado com Violet Blackton, filha de um produtor de cinema que terminou tudo com ele quando descobriu um diário em que Woolrich descrevia os seus encontros. Sabe-se que vestia um uniforme de marinheiro, que escondia numa mala, e saía à noite para a zona portuária. 

Em 1932, mudou-se com a mãe para um apartamento no Hotel Marseilles, no Harlem, cuja fauna de ladrões, prostitutas e marginais o terá certamente inspirado e assombrado durante anos. Foi nessa altura que começou a escrever contos para revistas de género policial como a Ellery Queen’s Mystery Magazine, a Black Mask, a Detective Magazine, a Double Detective, a Shadow Mystery Magazine ou a Dime Detective Magazine. Escreveu tantas histórias que teve de usar pseudónimos, como William Irish e George Opley. Entre nós, foram publicados “A Noiva Vestia de Negro”, “A Mulher Fantasma”, “Vingança Diabólica”, “A Serenata do Estrangulador”, “O Anjo Negro”, “Valsa Sombria”, “Ronda nas Trevas”, “A Intrusa”, “Noite de Angústia”, “O Autocarro sai às Seis” e “A Cortina Negra”, entre títulos da Colecção As Maiores Obras de Mistério e Acção, da Colecção Vampiro, da Colecção Rififi e da Colecção Caminho Policial de Bolso, mas principalmente da Colecção Xis, da Editora Minerva, que editou oito obras de Woolrich. 

*

“Era num crepúsculo de Maio, à hora de todos os encontros,” lê-se mesmo no início de “A Mulher Fantasma”, o no 38 da Colecção Vampiro. “Hora a que a metade da população menor de trinta anos penteia os cabelos para trás, deita uma olhadela à carteira e se apresta jovialmente para aquele encontro marcado. Entretanto, a outra metade da população, também menor de trinta, empoa o nariz, enverga uma toilette especial e arranja-se para ir ao mesmo encontro. Para onde quer que se olhasse, viam-se as duas metades da população reunir-se. Em cada esquina, em cada bar e restaurante, à porta de farmácias, nos vestíbulos dos hotéis e sob os relógios das joalharias, em cada ponto de referência havia alguém que tinha chegado primeiro. Repetiam-se as velhas frases, tão gastas mas sempre novas. 

- Aqui estou. Há muito tempo que esperas? 

- Estás linda! Onde vamos? 

Pois era uma dessas noites. Para o ocidente, o Céu estava de um lindo vermelho, como se se houvesse preparado também para um encontro; ornara-se de algumas estrelas à guisa de broche de diamantes, fechando o decote do vestido de gala. Os tubos de neon começavam a piscar pela rua fora, «flirtando» com os transeuntes como tudo o mais; buzinas de automóveis grasnavam e toda a gente ia tomando rumo, todos ao mesmo tempo. O ar não era apenas ar, era champanhe atomizado, com um ligeiro sopro de Coty para completar, e subia à cabeça de quem não tomasse cautela. À cabeça ou ao coração.”

*

Não é nada surpreendente que Fassbinder se tenha interessado em algum momento na obra de Woolrich, apesar de negar ter pensado na história quando escreveu o guião[1]. Woolrich era um homossexual não confessado, cheio de sentimentos de culpa que o levaram ao consumo abusivo de álcool e à maior das tristezas[2], que nunca criou uma personagem homossexual em qualquer das suas histórias mas que dinamitou em todas as instituições do amor e do casamento como a sociedade e a cultura as instituíram. São lampejos de revolta encarnados por “mulheres fantasma” ou homens acossados, sedutoras experimentadas e proletários desesperados, jovens passivas e inocentes e libertinos sádicos. E que são verdade e acontecem, quem se comanda pelo que querem os outros normalmente não tem bom fim, quem foge a todo o custo do passado acaba por encontrá-lo ao dobrar duma esquina.

Martha é um filme cruel, como pode ser a vida para alguns, e que estende por vezes para lá do suportável o sofrimento da sua heroína. Enquadramentos que a esmagam não faltam, daqueles que a sufocam quando solta os seus gritos desesperados com a mão direita à frente da cara àquele terrível com o marido e o gato no topo das escadas e ela em baixo confusa e apreensiva, passando ainda pelos da estufa em que fuma e lê e os das sombras das chamadas telefónicas. Intempestivo, este alemão que se imagina a filmar como surge em Kamikaze 1989, a arrombar dezenas de portas de pistola na mão, a levar actores e projectores e obturadores ao limite para ser fiel ao campo de batalha da emoção descrito por Samuel Fuller e que também foi o seu durante quinze anos e cinquenta e quatro filmes.

[1] Foram os responsáveis pelo acervo de Cornell Woolrich que obrigaram Fassbinder a partilhar crédito com o escritor norte-americano, sob ameaça de processos legais. E a verdade é que as histórias são muitíssimo parecidas, da estrutura e da narração ao animal morto, que no livro é um cão, e ao final, que também envolve um acidente de carro e condena a heroína a uma cadeira de rodas. 
[2] “Tentei apenas despistar a morte. Tentei apenas superar por um bocado as trevas que soube toda a vida e com toda a certeza que iam entrar um dia dentro de mim e obliterar-me.” Palavras escritas por Woolrich e encontradas num fragmento entre os seus manuscritos e papéis.



domingo, 7 de janeiro de 2024

325ª sessão: dia 09 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


“Martha” de Fassbinder é o filme desta semana 
 
Em Janeiro, inaugurando o novo ano das suas actividades, o Lucky Star – Cineclube de Braga, em parceria com o Goethe-Institut, exibirá quatro filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
Fassbinder nasceu em Bad Wörishofen, na Baviera, a 31 de Maio de 1945. Faleceu em Munique a 10 de Junho de 1982, aos 37 anos. Durante a sua breve carreira, que durou só quinze anos, escreveu vinte e quatro peças, realizou mais de quarenta filmes, entrando como actor noutros tantos, e fez duas séries para a televisão. 
 
O novo ciclo, intitulado “Poder e opressão - As Mulheres de Fassbinder”, inicia-se no dia 9 de Janeiro com a exibição de Martha, filme realizado pelo cineasta, encenador e actor para a televisão alemã e protagonizado por Margit Carstensen e Karlheinz Böhm. 
 
Baseado num conto de Cornell Woolrich publicado na Ellery Queen’s Mystery Magazine em 1968, “For the Rest of Her Life”, o filme centra-se na personagem-título, Martha, uma jovem com pouco mais de trinta anos que está de férias em Roma com o pai, quando este morre na sequência de um ataque cardíaco nas escadarias da Praça de Espanha. 
 
“Eu sou tão crítico de uma mulher como de um homem,” disse Fassbinder a Christian Braad Thomsen em 1974 quando questionado sobre a sua obsessão por personagens femininas. “A questão é que eu sinto poder expressar melhor aquilo que quero dizer quando utilizo uma personagem feminina no centro. As mulheres são mais excitantes, porque por um lado são oprimidas, e por outro não são mesmo, porque recorrem a essa ‘opressão’ como aterrorização.” 
 
“Os homens são tão simples,” continuava ele, “são mais vulgares do que as mulheres. Também é mais divertido trabalhar com mulheres. Os homens são primitivos nos seus modos de expressão. As mulheres podem mostrar mais as emoções, mas com os homens isso torna-se aborrecido.” 
 
Martha, como vários filmes de Fassbinder, contou com Michael Ballhaus na direcção de fotografia e tem um movimento de câmara de 360º muito famoso e muito imitado desde então. Sobre ele, em entrevista a Jörn Hetebrügge, Ballhaus disse apenas que “eu sou muito adepto do lema “moção é emoção”. Quando se move a câmara, provoca-se emoção nos espectadores.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!