O
sufoco do medo e da memória são incessantes em A Flor do Buriti, no qual nem a beleza natural da floresta brasileira nos consegue distrair dos horrores vividos e contados pelo povo Krahô no Brasil. O filme narra os eventos deste povo desde 1940, ano em que um massacre matou dezenas de pessoas indígenas que protegiam as suas terras e as suas casas de fazendeiros invasores. Seguiu-se a adesão forçada a um grupo paramilitar durante a ditadura militar nos anos 60, lembrada vivamente pelos membros da comunidade na atualidade. Por sua vez, estes descendentes têm ainda de lutar incessantemente pela proteção do seu território e pelo seu direito a existir em comunidade.
A ameaça dos Krahô tem o nome de cupē, uma designação previamente atribuída aos portugueses na época colonial e que agora é usada como referência aos fazendeiros que tanto ameaçam as nações indígenas da região. A ganância levou à violência e ao massacre contra os povos originários que se opuseram ferozmente à exploração das suas terras para a pecuária de larga escala da época moderna. Num mundo em que a vida humana indígena é desprezada e aniquilada para o bem do gado, os fazendeiros surgem como o pior dos males contra a natureza no Brasil contemporâneo. Compete aos Krahô proteger e zelar pela preservação do meio ambiente que os rodeia, assim como o estilo de vida comunitário que acompanha os seus esforços para proteger as suas terras ancestrais.
A resistência tem um preço demasiado elevado em todas as épocas retratadas no filme. Os Krahô são perseguidos não só pelos interesses gananciosos dos cupē, bem como pelos interesses opressores de um Estado militarizado e, mais tarde, de um Estado ainda indiferente e, até, hostil à luta e causa indígena. No entanto, o filme demonstra a importância que esta tem para os povos originários que se encontram sem outra alternativa a não ser a recusar vergar-se às forças opressoras do poder global e da criminalidade local.
Assistir a um retrato tão poderoso do Krahô não deixa margem para indiferenças por parte dos espectadores, sobretudo quando grande parte da narrativa é vista pelos olhos de Jotàt, uma jovem atormentada nos seus sonhos pelo sofrimento dos seus antepassados. Num mundo percepcionado através do medo, a mãe e o tio fazem tudo para eliminar as inquietudes da filha, embora saibam que as ameaças são reais e o passado se possa vir a repetir.
Contudo, as memórias do passado não se podem simplesmente evitar ou até expungir-se da alma, coletiva ou individual. O passado dos Krahô tem um peso incalculável na consciência deste povo e, por isso, ele é retratado pelos próprios com tanta vivacidade e responsabilidade. Assim, o filme presenteia-nos com a sua contribuição incrivelmente marcante. Não é de todo surpreendente que o filme tenha ganho o prémio de Melhor Elenco na sua estreia no Festival de Cannes em 2023.
Porém, o filme não se fica por uma mera recriação da história dos Krahô, ensina-nos que, se o passado é cruel, o presente é determinante para que a história seja redirecionada. Este é o motivo que leva dois membros da aldeia, Hyjnõ e Pratpro, à capital brasileira para se encontrarem com membros de outras comunidades indígenas, também elas a enfrentar memórias e eventos traumáticos e a tentar prevenir um futuro igualmente nefasto. Afinal, a união faz a força e é em Brasília onde os Krahô podem finalmente ver a sua realidade espelhada. É lá onde talvez possam encontrar as soluções que tanto procuram para os males que tanto os atormentam.
No entanto, quando estamos perto de encontrar algum tipo de resposta, o filme regressa novamente à terra dos Krahô, onde assistimos ao nascimento tão esperado do filho de Hyjnõ. A mãe faz o seu melhor para evitar que o bebé seja sufocado no parto, pois a sombra do medo surge logo à nascença. Pouco tempo depois, a criança está segura no peito da mãe, partilhando já os receios que assolam a sua tribo. Contudo, também nasce com ela a esperança de um mundo melhor, um mundo sem medo e com liberdade. E essa é uma possibilidade que se torna tão sufocante como o medo.
Sem comentários:
Enviar um comentário