por José Oliveira
O filme que hoje vamos ver é uma das obras-limite de Douglas Sirk, o grande cineasta Alemão que antes de se refugiar na América para poder continuar a trabalhar se chamou Detlef Sierck e se negou a pactuar com o regime nazi de Hitler. E é completamente suicidária porque indefinível de uma temperatura inaudita, pois trocou as cores garridas e o género melodramático que o cineasta reinventou nos anos precedentes por laivos de ficção cientifica – influência do produtor Albert Zugsmith que anteriormente concebeu desde maquinações com extraterrestres até pornografia – e de romantismo sem almofada nem travões que de chicana em chicana finta a bebida e a perdição da lost generation de Faulkner e dos seus comparsas chocando com a nostalgia em Nebraska de uma escritora tão importante para a Americana como Willa Cather e o seu My Ántonia.
Como no livro em que se baseou Sirk e o argumentista George Zuckerman tudo se passa em Nova Orleães e no epicentro embrulhado de um carnaval que tudo devora e espelha em soturnas relações com os protagonistas, as suas ambições e escolhas. As máscaras, os mascarados e os monstros deste corropio incestuoso – ou os extraterrestres - vão perfurar e esconder-se em cada cena, revelando a um mesmo tempo a condição além-humana de cada qual e expondo a sua participação no baile e no susto, para se perceber que não é impunemente que se ousa a coragem de seguir as motivações e o clamor do sangue. Como disse Tag Gallagher, o ciclópico crítico americano : "No crime como no amor só existem os que fazem e os que não se atrevem." O que é catártico é que neste delírio onde o amor e a loucura são finalmente irmãos em risco e sagrados na certeza individual é que a personagem de Rock Hudson entrevê a verdade precisamente no meio do falso e dos disfarces mais desgarrados, carnívoros e pulsantes. "O Que é a verdade?", perguntou há muito tempo Pilatos a Jesus, para uma conclusão talvez suspensa até hoje. Rock Hudson, e quem souber ver e sentir sem condicionantes desleais, vai perceber a verdade, ou seja, da fonte inicial até ao abismo ou às bocas da morte, todos vão desfilar indecifrável e inaceitavelmente nus – é o cerne do livro e do filme.
Pylon é uma das grandes obras de William Faulkner, tecida numa aparente linearidade que é a cada instante estilhaçada precisamente pelo presente atropelado, pelo "agora" que consome cada um daqueles seres sem passado nem horizonte. Tal como uma tecedeira que sutura tecido injuntável e sabe a causa impronunciável de tal, quem o trajou e o que nele fez, como rasgou e o que secou. Passados e horizontes em corpo presente e exposto, sendo a memória uma memória do presente, transformando-se os longínquos mosaicos e o compósito Faulknariano em parede ou ecrã reflector concentracionário, cegante. A epifania do jornalista que se espanta ao descobrir mentes e carnes sobre as quais não é possível resumir como manda a regra da profissão só pode ser aguentada no álcool, esse purgatório dos muito honestos. Mentes e carnes frias, mecânicas, conservadas e a trabalhar nos óleos e pelos combustíveis que nos permitiram ganhar asas, entrever o derradeiro abismo e a imortalidade. Veias de aço, ossos como inquebráveis tubos, sentimentos objectivos, electricidade e instinto. Órbitas avessas que olham para dentro do próprio crânio. A fome e o sexo e a dor em circuito programado. Sem união para lá da união desconhecida permitida à tecnologia. Vida e morte fundidas e carentes de importância como no sono profundo e sem despertador. É disto que o jornalista cadavérico que se parece com um espantalho dá de cabeça quando pensava que de tudo já tinha visto e rasurado. A corrida dele com os limites e a justiça, a poesia e o ininteligível, vai arder e enlaçar no fogo dos pilotos, dos pára-quedistas, das esposas petrificadas e desses mecânicos que só parecem realmente existir nos breves segundos onde no céu procuram a meta como quem por Deus grita. Não é curiosidade mórbida ou antropologia oportunista o que faz mover o homem das letras em direcção aos super-homens suicidas, antes algo da ordem, visceralmente, do puramente humano, isto é, tocar uma sensibilidade que de tão aflorada e antiga corre o risco de ser percebida e cristalizada em altares patológicos. Todos eles, e o jornalista alcançando-os, são especiais pois não se prenderam ao suposto e no seu tudo ou nada clamam o absoluto, nada menos, bilhete para os nossos sanatórios oficiosos. A prosa de Faulkner alinha-se para rebentar numa violência de realismo inacreditável que assim é pela nossa imemorial tendência de amarrar o fácil e o óbvio, e pinta-se num gótico que é tão lancinante e complexo e inaugural como escravaturas e bíblias. A peça final para o jornal ou para nada que nos é dada a cheirar, a descarnada e a polida, vinda do céu e do lixo e do whiskey, manda o cosmos putrefacto da perpetuação do dia-a-dia manipulado para o inferno engomado. “A integridade de uma pessoa encontrar-se-á sempre naquilo que não consegue fazer? Penso que, em geral, sim, porque o livre-arbítrio não significa um só arbítrio, mas vários, que se confrontam no mesmo indivíduo. A liberdade não pode ser concebida simples. É um mistério, um mistério que a um romance, mesmo um romance cómico, apenas pode ser pedido que aprofunde” , isto é o que Flannery O'Connor pergunta e responde no prefácio da segunda edição do seu Wise Blood, e que se torna verdade simples e geométrica da tragédia de Pylon.
The Tarnished Angels, visão e sangue fervente de Douglas Sirk, tem dentro uma das mais belas personagens de todo o cinema e de toda a vida, Burke Devlin, o jornalista, aqui nada cadavérico e tão lúcido como o de Faulkner, comoventíssimo e estóico Rock Hudson familiar de todos os dissidentes com causa, cheio do som e da fúria e da raiva e coração dos que já não admitem a lenta e porca burocracia do adormecimento imposto, alguém que não hipoteca a casa para agarrar sucessos mas que simplesmente a oferece a quem precisa, desligado da posse e da carreira. Perdido que se acha nessa perdição fatal, inscrita na sua têmpera, patrão ou alma de todos os seres abandonados e sem lugar, numa reza cósmica e rumorejante, sem lei nem aprovação política. Talvez a pele e os órgãos desgalgados e estripados de Faulkner se tinjam aqui de romantismo secreto, velado em amor puro para lá dos altos, vindo num vento que urge amarrar antes que se esfume para todo o sempre. Como é que um herói de guerra intempestivo, uma mulher estonteante como os anjos da terra, um miúdo atormentado e um mecânico fiel demais à desregra se contentam com circos, feiras e humilhações? Parece ser tudo isto e o segredo deles o que começa por interessar Burke. Assim, suspende a bebedeira crónica para tentar, sempre tentar e talvez nunca alcançar, ver o brilho inaudito que só na mácula reflecte e se esconde revelado. O grande carnaval que no livro se aproxima do deboche, em Sirk, e apesar da horrenda troca sugerida para o piloto conseguir a nova máquina, gira e rói em terrenos e sussurros da solidão, unindo bem e mal e tudo na liberdade e no desejo sem margem para dúvidas do estômago queimante. Burke tem com a pára-quedista aparecida Dorothy Malone igualmente a mais bela das paixões, concretizando-se nos olhares e nos dentros da alma, até ao fundo - irmandade e Mulher, ídolo e carnação. O rodopio e a entrega de Burke, o genial discurso sobre a fascinação do homem pela superação e pelos sonhos superiores, máquina de precisões e comoções, as mãos vazias, a música da infância - pela câmara de Sirk, o espaço agiganta-se para o mínimo e o íntimo sobressaírem, infindável scope para invisíveis fluidos e calores, onde no mundo pós-apocalipse são necessárias novas e letais emoções, mundo assim que concorre para todos os tempos em que a veracidade é lei, utopia suprema a agarrar como o tal vento. R. W. Fassbinder amou o filme e falou a propósito do medo que todos têm, esse desamparo, fragilidade, mesmo sacrifício. Medo que não nasce das dúvidas do modo de vida mas de certeza da possibilidade (sempre a maquinar) de se inserirem na intolerável máquina outra e de travões bem menos afiados e rasteiros, a máquina da realidadezinha fabricada, cobarde e mascarada que marca e engaveta por cartão de identidade e demais papelada como se marca o pobre gado. “Tomorrow? I'll probably be drunk” é o que o tão belo de olhos raiados das lágrimas da verdade esfaqueia a quem lhe manda fazer amanhã o que ele pode fazer hoje. Se só existisse o ontem não havia aflições, disse Faulkner certo dia. E é aqui a medida de todas as coisas. Como a ferida a respirar.
“- Porque devem eles matar? Porque é necessário matar? Cyrus estava profundamente comovido e falou como nunca tinha falado. - Não sei. Estudei as coisas e talvez saiba o que elas são, mas estou muito longe de saber porque são. E não deves esperar encontrar pessoas que te compreendam o que fazem. Tantos actos são instintivos: a abelha fabrica o mel e a raposa caminha no riacho para enganar os cães. A raposa não sabe porque age desse modo, e qual a abelha que se lembra do inverno e prevê que ele há de voltar?”
A Leste do Paraíso, John Steinbeck
Burke Devlin - que Mário Jorge Torres comparou a um comentador teatral, reenviando às tragédias gregas – compreendeu, fora dos limites e dos estratagemas terrestres, essas pessoas como as outras que encontrou em circunstâncias que só são extraordinárias pois a coragem iniciática de novos seres na terra já há muito se foi. Não os tivesse ele encontrado e a vida deles continuaria, morrendo e ressuscitando como as flores selvagens, mas porque ele os achou quando nada esperava e lhes contou a sua história, lhes fixou o fogo e a beleza da ousadia simples, a raça mais uma vez evoluiu no aparente retrocesso, nessa ode de violência doce que é o acreditar de cada um por si. Sendo assim possível a comunidade justa e, resolutamente, livre e unida. Tudo a ver com The Fountainhead, o filme de King Vidor ou o livro de Ayn Rand com que estivemos há uns meses neste cineclube. Das sublimes dádivas gratuitas.
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