por João Palhares
Depois de baralhar as contas, como as tinha baralhado Fritz Lang em Beyond a Reasonable Doubt, dizendo-nos em Anatomy of a Murder que para ilibar todos os inocentes é preciso deixar escapar alguns culpados e que é preferível esse sistema àquele que castiga alguns inocentes para prender todos os culpados, não sem mostrar a dose de desilusões pessoais e profissionais que ser por tal sistema carrega consigo, entre noites mal dormidas e trabalhos mal pagos acompanhados pelo jazz e pelos blues de Duke Ellington; depois de ter dito bom dia à tristeza e boa noite à felicidade com Jean Seberg nos bares sujos de Bonjour Tristesse; de ter descoberto a mesma Jean Seberg e a ter feito passar pelas venturas e pelos martírios da Jean eterna e milenar no aço e no fogo de Saint Joan; de opor Gary Cooper ao mundo no pequeno e afunilado tribunal de The Court-Martial of Billy Mitchell, em que parte das tensões em jogo também se deviam à oposição da velha (Cooper) à nova Hollywood (Rod Steiger); a sinfonia sensual e desesperada de Carmen Jones, ópera selvagem em que Dorothy Dandrige cantava a Harry Belafonte que “If I love you, that's the end of you” e não se enganava; os pecados, as desilusões e os arrependimentos de Marilyn Monroe ao longo desse River of No Return, tão fundo quanto o orgulho de cada um o fizer, cristalizados nos ritmos dessa linda canção que no fim se canta e filmados em Technicolor e Cinemascope; o nocturno inferno de Where the Sidewalk Ends em que se pode ver mesmo Dana Andrews a olhar de frente e a atravessar o fio da navalha que separa as acções da consciência; as obsessivas deambulações de Andrews e Gene Tierney em Laura e Whirlpool, estandartes do fascínio do noir e dos mágicos anos 40; e depois de duas bizarrias totalmente opostas mas consecutivas e exactamente do mesmo ano (1947) - o desbragado e explosivo Forever Amber que eternizou Linda Darnell e o contido e hipnótico Daisy Kenyon, que pela certeza nos leva e na dúvida eterna nos deixa – Otto Preminger realiza Exodus.
A fluidez da câmara de Preminger nesta etapa da sua obra – a passagem dos anos 50 para os anos 60 e daí quase até ao final dos anos 70 – atinge o seu zénite. Além de Exodus e Anatomy of a Murder, filmes como Advise & Consent, The Cardinal, In Harm's Way e Bunny Lake is Missing parecem a ilustração perfeita das palavras de Jacques Rivette a propósito de Angel Face e The Moon is Blue em 1954: “Preminger acredita acima de tudo na mise en scène, na criação dum composto preciso de cenários e personagens, uma rede de relações, uma arquitectura de ligações, um complexo animado que parece suspenso no espaço. O que é que o tenta, senão o talhar duma

peça de cristal para transparência com reflexos ambíguos e linhas claras e nítidas ou o tornar audível certos acordes desconhecidos e raros, em que a beleza inexplicável da modulação justifica subitamente o conjunto da frase?” Como estes filmes se assentam e partem de linhas narrativas precisas e personagens muitíssimo bem definidas, Preminger pode não só dar-se ao luxo de os encher com percursos e ideias aparentemente irreconciliáveis numa propagação inesgotável do contraditório e numa capacidade dialéctica que só pode resultar numa sensação de causalidade perfeita; como também de dar azo ao impressionista que há em si e ilustrar essa causalidade com sequências absurdas e loucas como a do assalto à prisão em Exodus ou a fuga pela noite do senador interpretado por Don Murray em Advise & Consent ou os vinte minutos finais de Bunny Lake is Missing. Muito como um romancista que sabendo perfeitamente o rumo dos acontecimentos se deixa perder em devaneios belíssimos e poéticos que só atestam a realidade e a verosimilhança do que quer contar, Preminger é capaz de se perder durante largos minutos no que confessa uma personagem sem que achemos por um momento que é despropositado.
Os acontecimentos de Exodus têm lugar dois anos depois do fim da segunda guerra mundial e da barbárie dos campos de concentração e tudo isso assombra as personagens: Kitty é viúva e perdeu o filho, Ari perdeu a noiva e mal se recompôs, Karen ouve uma explosão ao longe e todas essas terríveis lembranças parecem surgir num fluxo só que a faz cair numa crise nervosa. Dov tem uma recaída na longa e insuportável cena do interrogatório a que é sujeito para entrar no grupo terrorista do Irgun quando tem que contar a Akiva (o tio de Ari e líder do Irgun) tudo aquilo por que passou em Auschwitz para sobreviver; o próprio pai de Karen deixa transparecer estas lembranças e o pesadelo constante numa mudez e num fitar de olhos doentio e já arrebatado pelo mundo dos mortos. Preminger não é um optimista e podemos-lhe associar a tempestade final de In Harm’s Way, que expressa as convulsões desta gente que luta para não morrer mas que já morreu por dentro de tantas formas, sequência surrealista que só pode significar e ilustrar essa batalha interior e essa barreira intransponível que é a consciência, com que todos os personagens da obra de Preminger se batem ferozmente e quase que compulsivamente. Em Exodus não haverá alternativa a isto, o realizador não quis confortar ninguém, a luta parece constante e os tempos parecem ter-lhe dado razão. Também lhe podemos associar os ecos de No return, no return... que saem da profunda melancolia de Marilyn Monroe ou o olhar vazio do cardeal de The Cardinal que usou a religião como protecção e para negar os verdadeiros sentimentos...
O Cinemascope foi inventado para filmar personagens que se confrontam não com os outros, nem sequer com o que os rodeia mas consigo próprias, como se ao abrir as lentes e as margens que nos passam a mostrar planícies e montanhas a perder de vista se abrisse também a caixa de Pandora e a porta para o inconsciente. A figura perdida na imensidão da paisagem, o homem perdido no turbilhão da história, a alma reflectida no céu e nos vales da Palestina...
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