terça-feira, 27 de março de 2018

87ª sessão: dia 30 de Março (Sexta-Feira), às 21h30


Terminando a primeira parte desta aventura pelo cinema francês, lembramos o grande Jean Vigo, poeta supremo e farol para tantos cineastas e cinéfilos, autor de uma obra construída em apenas quatro anos mas que ficou imortalizada. O Atalante, única longa-metragem do realizador, será a nossa próxima sessão, antecedida por uma curta-metragem (Voyage à travers l'impossible) doutro grande sonhador, Georges Méliès.

François Truffaut, em Les Films de ma vie, escreveu que "O Atalante tem todas as qualidades de Zero em Comportamento e também outras como a maturidade e a mestria. Aqui encontram-se, reconciliadas, duas grandes tendências do cinema, o realismo e o esteticismo. Na história do cinema, houve grandes realistas como Rossellini e grandes estetas como Eisenstein, mas poucos cineastas estiveram interessados em combinar as duas tendências, como se fossem contraditórias. Para mim, O Atalante contém tanto À Bout de Souffle de Godard como Noites Brancas de Visconti, isto é, dois filmes incomparáveis, que estão mesmo nos antípodas um do outro, mas que representam o que se fez de melhor em cada género. No primeiro, trata-se de acumular pedaços de verdade que, ligados uns aos outros, vão levar a uma espécie de conto de fadas moderno; no segundo, de partir de um conto de fadas moderno para encontrar uma verdade global no fim da viagem.

"Enfim, acho que se subestima O Atalante com frequência vendo nele um pequeno tema, um tema "particular" a que se opõe o grande tema "geral" tratado em Zero em Comportamento.

"O Atalante aborda realmente um grande tema, raramente tratado no cinema, os começos de um jovem casal na vida, as dificuldades em se adaptarem um ao outro, primeiro com a euforia do acasalamento (o que Maupassant chama: "o brutal apetite físico rapidamente extinto"), depois os primeiros conflitos, s revolta, a fuga, a reconciliação e finalmente a aceitação de um pelo outro. Sob este ângulo, vemos que O Atalante não trata um tema mais pequeno que Zero em Comportamento."

Bernard Eisenschitz, que já nos apresentou The Lusty Men e também realizou um documentário sobre as várias versões que o filme de Jean Vigo foi tendo ao longo dos anos (Les voyages de L'Atalante), disse a Michel Guilloux que "Vigo representa outra via para o cinema, que não foi abordada antes dele: trazer emoções intimamente pessoais para o écrã - o que é diferente da autobiografia -, fabricar um cinema de expressão directamente pessoal mas através do próprio cinema.

"Essa prática está em total ruptura com o cinema da época. No mesmo ano, Renoir vê o seu Madame Bovary ser amputado por uma hora e La Chienne remontado pelo seu produtor, antes de conquistar o cinema francês do "interior da fortaleza", de acordo com a fórmula de Godard. Vigo, esse, propõe outra coisa, ainda hoje irredutível. Há qualquer coisa de rebelde nos seus filmes, seja qual for o momento em que os vejamos. Evidentemente, teria preferido que Zero em Comportamento fosse escolhido para a bandeja! mas a rebelião do Atalante é a do próprio cinema."

Sobre Voyage à travers l'impossible, damos a palavra a Jacques Lourcelles, que escreveu no Dictionnaire que o filme "ocupa os números 641 a 659 da Star-Film (septuagésimo oitavo dos cento e quarenta títulos conservados até à data de 1981). É uma espécie de remake e ampliação de Viagem à Lua. No seu estudo sobre «Le premier Wells», Borges escreve: «Verne escreveu para a adolescência, Wells para todas as idades do homem. Há outra diferença entre eles, já indicada pelo próprio Wells na altura: as ficções de Verne são sobre o devir provável [...], as de Wells sobre o puro possível.» Méliès, que se terá inspirado em Verne e Wells, mistura sem vergonha e sem complexos as duas fontes. Para ele, a ficção cinematográfica engloba o documentário e a ficção científica, a descrição do real e do imaginário, o sonho sobre o provável e o possível. Esses limites, que a ficção científica moderna quer apagar (cf. The Andromeda Strain de Wise), negou-os ele desde a origem. Inventor do espectáculo cinematográfico, Méliès sente que tudo aquilo que aparece sobre uma tela deve ser por essência espectacular, ou seja, fascinante e credível, quer se trate das actualidades reconstituídas ou do deslumbramento mais delirante. Essa intuição pulveriza as distinções falaciosas, e a história do cinema (a despeito dos próprios historiadores) vai-lhe dar inteiramente razão. Efectivamente, um filme como Una voce umana de Rossellini (uma mulher ao telefone sozinha num aposento durante 35 minutos) e Os Dez Mandamentos de DeMille são tão espectaculares um como o outro. Notemos brevemente que, com as suas actualidades reconstituídas, Méliès ter-se-á antecipado na política-espectáculo. A sua formação de mágico era a melhor possível, não só para inventar o espectáculo cinematográfico, como para lhe fixar os valores essenciais, ainda válidos hoje em dia. A mise en scène consiste efectivamente, como a magia, em dirigir e em se apropriar do olhar do espectador, em fazer com que ele veja aquilo que se quer que ele veja, excluindo tudo o resto. As qualidades psicológicas e as intenções do mágico são também aquelas do verdadeiro cineasta. Tanto um como o outro nos fazem duvidar da realidade, ao a substituir pela deles. Eles tornam o deslumbramento inseparável da inquietude, o fantástico e o humor indissociáveis da vertigem. No plano técnico, alguns exegetas modernos querem que haja montagem em Méliès a todo o custo, como se isso aumentasse a sua modernidade. Pelo contrário, os planos longos e generosos aos quais estava restrito e que apenas desejava enriquecer através de uma profusão de trucagens, e eventualmente de personagens, vão-se unir ao cinema mais moderno, ou antes: vão ser reencontrados por ele. Dando a ver ao espectador a porção do real que escolheu (pela posição da câmara e pelo enquadramento), fornecendo-lhe uma (falsa) impressão de liberdade em relação ao conteúdo desse enquadramento, o seu cinema anuncia, para citar apenas dois nomes, o de Tati e o de Fritz Lang. A reflexão sobre Méliès está só a começar; ela sem dúvida que não está para acabar porque, nesse precursor genial, as noções de base do cinema como espectáculo já se encontram largamente exploradas."

N.B. Resta esperar que antes da celebração do primeiro centenário do nascimento do cinema possamos ver finalmente toda a obra existente de Méliès (à volta de catorze horas de projecção; encontram-se alguns filmes todos os anos), não em selecções temáticas caprichosas mas na sua rigorosa continuidade cronológica. Isso nunca foi proposto ao público."

Até Sexta!

quarta-feira, 21 de março de 2018

Voyage à travers le cinéma français (2016) de Bertrand Tavernier



por Carlos Melo Ferreira

Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier/Voyage à travers le cinéma français, de Bertrand Tavernier (2016), é um filme muito bom e completo sobre uma das cinematografias mais importantes da Europa e do mundo, feito a partir do ponto de vista e da experiência do cineasta desde a sua infância.

Sempre com recurso a excertos de filmes e declarações dos envolvidos na sua produção, começa com Jacques Becker e termina com Claude Sautet, aos quais é dedicado. Fica bem ao cineasta deter-se, além de Jean Renoir, Jean Gabin, Jean Vigo, Marcel Carné, Jacques Prévert e Jean-Pierre Melville, nos menos conhecidos Edmond T. Gréville e John Berry entre outros, bem como em Eddie Constantine, que o marcaram e são raramente referidos.

Lamento, contudo, que a referência à nouvelle vague francesa seja tão breve e selectiva, deixando de fora Rivette e Rohmer, por exemplo, e que René Clair, Robert Bresson, Henri-Georges Clouzot, Jean Rouch, Alain Resnais e Jacques Tati sejam pouco referidos, quando não omitidos. Mas tal dever-se-á provavelmente a ele ser um homem da Positif, uma importante e antiga revista francesa de cinema, o que o faz estar atento aos compositores Maurice Jaubert e Joseph Kosma.

Na sua longa duração este filme contém histórias curiosas, algumas delas fabulosas e desconhecidas do cinema francês que Tavernier descobriu e trouxe para o seu filme, feito à maneira dos de Martin Scorsese sobre o cinema americano e sobre o cinema italiano, como eles completo e muito bem feito.

Aproxima-me deste cineasta francês, justamente célebre, ter tido como ele uma "primo-infecção" na infância e o gosto pelo cinema americano, mas afasta-me dele o gosto pessoal e a perspectiva crítica que, sendo também parcial e subjectiva, nos Cahiers du Cinéma dos anos 50 era mais virulenta, mais apaixonada e esclarecida - embora por vezes também mais injusta -, o que fez com que das suas fileiras tenha saído o melhor da nouvelle vague.

Mas vejam pois, bem documentado e comentado, só vos pode fazer bem na sua seriedade e na sua erudição. Os franceses choraram com este filme, o que com o seu sentimentalismo e o seu chauvinismo se compreende, nós podemos vê-lo com os olhos secos.

no blog Some Like it Hot.

sábado, 17 de março de 2018

86ª sessão: dia 20 de Março (Terça-Feira), às 20h30


Bertrand Tavernier é um dos mais míticos cinéfilos do mundo, tendo programado com Pierre Rissient o cinema MacMahon, que apresentou à França cineastas como Raoul Walsh, Jacques Tourneur ou Leo McCarey, tendo escrito para a Présence du Cinéma e a Positif, trabalhando como assistente de realização ou assessor de imprensa para cineastas como Jean-Luc Godard, Riccardo Freda ou Jean-Pierre Melville, enveredando depois pela realização, com filmes como Coup de Tourchon, Round Midnight, ou Quai d'Orsay, uma das melhores comédias dos últimos anos. O seu último filme é um documentário sobre o cinema francês, que será a nossa próxima sessão. Devido à sua duração, será exibido uma hora mais cedo, nas salas de cinema do Braga Shopping.

A Jean-Jacques Manzanera, e falando da génese e dos objectivos deste filme, Tavernier disse que "realmente, eu tinha reformulado constantemente as minhas obras, mas elas só reflectiam uma parte dos meus muitos centros de interesse. Fazer um documentário sobre o cinema francês em vez do cinema americano facilitava a tarefa do trabalho no terreno em relação a direitos. Tendo trabalhado com os americanos, sabia que não dispunha dos contactos de que Martin Scorsese pôde beneficiar. Teria sido necessário trabalhar nos Estados Unidos, em Los Angeles, contactar os estúdios. No limite, trata-se da parte acessória da explicação: eu queria falar especialmente de cineastas que tinham feito e fizeram sempre parte da minha vida. Falar não como crítico ou historiador mas como cineasta e espectador que tinha mantido lembranças divertidas, bem humoradas e maravilhadas em relação à descoberta destes filmes. Queria mostrar quão vivos estavam estes filmes, que não pertenciam a um passado desaparecido, que não faziam parte de um museu Grévin de cera qualquer, mas que podiam, pelo contrário, iluminar o presente. Podiam aguçar também uma curiosidade necessária aos nossos tempos, se quisermos escapar."

No Ciné-club de Caen, Jean-Luc Lacuve escreve que "para Bertrand Tavernier, a beleza de um filme não resulta tanto da qualidade da mise en scène, entendida como a expressão de um autor, mas como a assembleia bem sucedida das qualidades do trabalho dos actores, dos responsáveis pela decoração, dos músicos ou dos argumentistas.

"Na sua exploração do cinema francês, Tavernier procura também revelar o que é que o nosso cinema nacional tem de especificamente francês. Ele encontra ligações mais ou menos explícitas entre realizadores tão diferentes como Bresson, Becker e Melville, enfatizando a atenção obsessiva que estes cineastas prestam aos gestos e aos rituais quotidianos."

Já Carlos Melo Ferreira, escreveu que "Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier/Voyage à travers le cinéma français, de Bertrand Tavernier (2016), é um filme muito bom e completo sobre uma das cinematografias mais importantes da Europa e do mundo, feito a partir do ponto de vista e da experiência do cineasta desde a sua infância.

"Sempre com recurso a excertos de filmes e declarações dos envolvidos na sua produção, começa com Jacques Becker e termina com Claude Sautet, aos quais é dedicado. Fica bem ao cineasta deter-se, além de Jean Renoir, Jean Gabin, Jean Vigo, Marcel Carné, Jacques Prévert e Jean-Pierre Melville, nos menos conhecidos Edmond T. Gréville e John Berry entre outros, bem como em Eddie Constantine, que o marcaram e são raramente referidos. 

"Lamento, contudo, que a referência à nouvelle vague francesa seja tão breve e selectiva, deixando de fora Rivette e Rohmer, por exemplo, e que René Clair, Robert Bresson, Henri-Georges Clouzot, Jean Rouch, Alain Resnais e Jacques Tati sejam pouco referidos, quando não omitidos. Mas tal dever-se-á provavelmente a ele ser um homem da Positif, uma importante e antiga revista francesa de cinema, o que o faz estar atento aos compositores Maurice Jaubert e Joseph Kosma."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 14 de março de 2018

Lumière! L'aventure commence (2016) de Thierry Frémaux



por João Palhares

[nota prévia: à falta da versão para cinema de Lumière!, que não consegui arranjar para escrever esta folha, vi a que consta num DVD de 2015 editado pelo Institut Lumière e que se chama Lumière! Le cinématographe 1895-1905, que sei que não é a mesma por não ter visto ou ouvido Martin Scorsese em lado nenhum, mas em que há a opção de ver o filme sem os comentários de Thierry Frémaux, o que é óptimo (e fá-lo-ei em breve) e nos traz o trabalho dos Lumière em todo o seu esplendor – mas não numa sala de cinema. Em todo o caso, se essa versão é muito diferente do filme que hoje vão ver, peço imensa desculpa. A Thierry Frémaux também.] 

Um problema que se coloca ao tentar escrever sobre este projecto de Thierry Frémaux, o director do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, é saber se se deve falar dele como um filme de Frémaux ou como parte da obra dos Lumière, como uma colectânea dos seus filmes. Porque se no filme de Éric Rohmer que vimos a semana passada se começa por separar as “vistas” dos Lumière dos comentários de Renoir e de Henri Langlois, deixando-as respirar e deixando sobretudo que o espectador as veja, para depois imbuir “vistas” e comentários e elevar esse episódio de « Aller au Cinéma » a obra capital do cinema, e como obra de Éric Rohmer, num trabalho de montagem exímio e fascinante, em Lumière! ouvimos Frémaux do princípio ao fim e vemos filmes dos Lumière do princípio ao fim. Os críticos mais avançados e mais modernos diriam que é tudo respeito do realizador pelo espectador, que no fim de contas consegue fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Diriam que é respeito do realizador pela obra que comenta, mantendo-a totalmente intacta. Mas quando vemos ensaios de Tag Gallagher, por exemplo, não duvidamos por uma vez que para falar sobre os filmes por meios visuais é preciso pará-los, puxá-los para a frente e para trás, descaracterizá-los ao máximo para lhes fazer a máxima justiça, para a imagem encontrar um equivalente nas palavras. Não é coisa propriamente nova: nos anos 50, Bazin fez comentário semelhante em relação à representação da pintura no cinema, em como era preciso desvirtuá-la para a coisa funcionar. Será a única maneira? Não sei, mas vendo Lumière! fica-se com a sensação de nem se ver os Lumière nem se ouvir Frémaux. 

 Isto não quer dizer que Frémaux diga coisas desinteressantes, porque não é verdade que o faça, nem que não haja momentos bem bonitos de junção das imagens com as palavras que diz, como quando fala de Chaplin enquanto vemos uma criança a afastar-se sozinha pela estrada ou quando descreve a parte final daquele que, para ele, é o melhor filme dos Lumière e dos seus operadores, Le village de Namo – Panorama pris d’une chaise à porteurs (1900) de Gabriel Veyre. Mas parece que são apenas momentos felizes e aleatórios e não deixa de dar a ideia de que estamos a ver uma retrospectiva do trabalho dos Lumière enquanto alguém fala ao nosso lado na sala durante toda a sessão. A Frémaux perdoa-se isso, uma vez que é director do Instituto Lumière, é nisso que é suposto acreditarmos e é isso que é suposto defendermos? Podia-se contra-argumentar dizendo que o trabalho dos Lumière se presta a isso, que são imagens avulsas e aleatórias às quais se pode acrescentar sempre um ponto e enquanto o conto decorre, mas o comentário de Frémaux diz exactamente o contrário, fala de mise en scène, de inícios e de fins nos planos únicos, de perspectiva, de pensamento, de precisão e de muitíssimo trabalho. Coisas em que acreditamos piamente, de resto, como puderam verificar na nossa última folha de sala. 

Enfim, não podíamos levar Frémaux aos céus poucos dias depois de termos visto Louis Lumière, e temos que nos perguntar se este empreendimento muito necessário, importantíssimo e infinitamente louvável de restaurar a obra dos irmãos precisava deste filme, que pelas palavras do seu realizador quer “mostrar o restauro dos filmes Lumière e ir ao encontro do público em condições normais de projecção,” mas faz isso com os comentários de Frémaux e essa é uma nuance que não se pode ignorar. Pode-se supor, no entanto, que era a única maneira desse empreendimento ser concretizável e viável, porque um filme de uma hora e meia “só” com música de Saint-Saëns e “só” com as curtas dos Lumière nunca passaria em sala e nunca teria um investidor. Mas se calhar só assim é que a aventura começava. E isto são tudo perguntas e considerações que podemos fazer depois de ver esta experiência de Frémaux, mas para isso temos que a exibir e deixar-vos tirar as vossas próprias conclusões. São as diferenças entre programar um filme e ter que falar sobre ele. E podem ser mais notórias, de vez em quando.

segunda-feira, 12 de março de 2018

85ª sessão: dia 13 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Continuamos a nossa viagem aos primórdios do cinema francês e de todo o cinema, por extensão, com a exibição de Lumière!, colectânea de 108 curtas dos Lumière comentada pelo director do Instituto Lumière e do Festival de Cannes, Thierry Frémaux. É a nossa próxima sessão e uma oportunidade para ver o trabalho dos Lumière como deve ser visto, num écrã de cinema, o do Braga Shopping.

Em entrevista a Nicolas Gilson, Thierry Frémaux disse que "o desafio era fazer um filme de 90 minutos como um filme de hoje e tentar que ele voltasse a encontrar espectadores. É um património comum, universal. Prevaleceram duas ideias ao fazer este filme: mostrar o restauro dos filmes Lumière e ir ao encontro do público em condições normais de projecção. É um acontecimento tão mais considerável já que depois da altura nunca mais houve filmes Lumière no cinema – houveram acontecimentos culturais, certamente, mas o cinema de Lumière nunca mais voltou às salas. Depois de termos feito um primeiro DVD « de museu », decidimos tentar a nossa sorte. O distribuidor francês Ad Vitam veio atrás de nós, tal como a companhia Wild Bunch, convencida que o filme se iria vender no estrangeiro. Foi um verdadeiro acto de fé, de amor, para fazer justiça aos irmãos Lumière : eles também inventaram a sala de cinema e era preciso que lá voltassem."

Para o Diário de Notícias, Inês Lourenço escreveu que "celebrar o cinema é isto: ir à sua origem e colher a magia das primeiras imagens em movimento. Thierry Frémaux, director do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, oferece-nos essa viagem privilegiada, ao longo de 108 filmes - dos mais de 1400 da colecção dos irmãos inventores do cinematógrafo - que provam como o seu olhar tinha um rigoroso sentido de mise en scène.

"Cada uma destas obras, com menos de um minuto, é uma linguagem sobre a realidade, desde os magníficos enquadramentos à construção dramática...

"Já era altura de mostrar assim, através de um rico trabalho de composição, com preciosos comentários do próprio Frémaux, que afinal Auguste e Louis Lumière não foram apenas inventores de um aparelho, mas também pioneiros da arte que se faria com ele. Está lá tudo. E é maravilhoso perceber isso ao longo do prazeroso roteiro que é Lumière!"

No seu blog, Carlos Melo Ferreira, autor do prefácio ao nosso livro e que já apresentou Howard Hawks ao público fiel do nosso cineclube (tem um livro novo sobre o realizador, para quem estiver interessado), escreveu que se trata "de um empreendimento histórico pela sua amplitude e os filmes que inclui, já sujeitos a uma completa análise histórica, que têm tudo que ver com o cinema que antecipam em encenação - a profundidade de campo, a diagonal, o fora de campo - e em construção dramática ou cómica, mesmo se também inspirados na pintura do século XIX. Tinham razão aqueles que afirmaram que o cinema estava já completo nesses primeiros filmes de um só plano. A montagem estava já em cada um deles, embora a de mais de dois planos tenha chegado poucos anos depois. 

"Ora este filme de filmes tem tudo que ver com a "ontologia do cinema" tratada por André Bazin num escrito célebre, recordada no número 742 deste mês de Março dos Cahiers du Cinéma por Stéphane Delorme no importante dossier "Pourquoi le cinéma?", em "Sensibilité - La corde sensible", um texto a que tenho a objectar só utilizar exemplos europeus e norte-americanos e usar como sinónimos "sentimentos" e "emoções", sem os distinguir - cf. António Damásio."

Até amanhã!

domingo, 11 de março de 2018

Louis Lumière (1968) de Éric Rohmer



por João Palhares

Devido à existência de várias versões das chamadas “vistas cinematográficas” dos irmãos Lumière e devido às grandes diferenças entre elas, aliadas às cronologias estabelecidas pelos historiadores para encontrar as versões oficiais das mesmas, às vezes delineadas por meras flutuações no clima registadas na altura, a idade dos intervenientes nas imagens dos Lumière ou pequenos apontamentos em artigos dos jornais da época, tornou-se imperativo apelidar os Lumière de cineastas e deixar de repetir a história dos técnicos ingénuos que fizeram curiosidades históricas, simples documentos da viragem do século. O assombro causado por muitas das curtas dos Lumière é um efeito a que eles não eram de todo inconscientes, porque reparavam erros durante a captação das suas “vistas”, intuitivamente, e na procura desse mesmo efeito. As correcções feitas a La sortie de l’usine Lumière à Lyon (nas três versões que se conhecem) são por isso reveladoras: nas primeiras duas versões, os trabalhadores levam muito tempo a sair da fábrica e as carroças puxadas a cavalo atrapalham-lhes os movimentos, por isso Louis Lumière decidiu retirar a carroça totalmente e apressar os seus trabalhadores, conseguindo a fluidez e a ideia de início e de fim (aqui marcadas pelo abrir e fechar dos portões) que estão presentes em tantas das suas curtas. 

“Quando se olha com muita atenção para os filmes de Lumière”, diz Langlois neste filme, depois de Rohmer ter dito que não havia mise en scène nos filmes dos irmãos, “parecem muito espontâneos, que só puseram as câmaras na rua e que é a rua a desfilar, e se é bom, se nos impressiona, dizemos que foi sorte. Mas não é sorte, porque há planos dos Lumière que são evidentes. Por exemplo, quando se vê num filme de Louis Lumière– e isto é uma questão de tempo, temos um filme e ele dura tanto e o plano dura outro tanto – mas por exemplo, o filme começa com um eléctrico que entra em plano pela direita, depois há uma série de movimentos, e acaba com outro eléctrico que entra em plano pela esquerda. Acha que é sorte? Não é sorte, de todo. Eles procuraram locais, eles viram como é que as coisas se passavam durante algum tempo, escolheram o melhor ângulo e conseguiram a coisa mais extraordinária (e que costumamos esquecer) que foi inserir na imagem, durante esses poucos segundos, o máximo de planos, sem mudar o lugar da câmara. Temos o grande plano, o plano médio, o plano americano e temos o plano de conjunto com um movimento que os liga a todos. E isso não é sorte. É ciência.” 

É a partir deste momento que o que achávamos ir ser só uma conversa com belos testemunhos, um mero registo de uma conversa feito para a televisão, se transforma no equivalente cinematográfico para a obra de Platão ou de Xenofonte, filósofos gregos que documentaram não só a existência como o pensamento de Sócrates, o mais famoso dos filósofos. Tal como Renoir e Langlois dão testemunho do génio de Lumière e tal como Rohmer documenta o pensamento de Langlois. Louis Lumière, o filme, o episódio da série « Aller au cinéma », como lhe quiserem chamar, faz-nos ver a fragilidade dos meios que albergam o conhecimento, das dificuldades físicas da sua transmissão, das barreiras temporais e das circunstâncias que se batem com ele de forma impiedosa e tantas vezes nos conseguiram impedir de lhe aceder. Podíamos ter perdido Sócrates, podíamos ter perdido Lumière e perdemos muita coisa, sem dúvida, do incêndio de Alexandria à chegada do cinema sonoro aos Estados Unidos da América, que condenou 90% do cinema mudo à destruição. Langlois, que com Lotte Eisner salvou centenas de bobines durante o flagelo da segunda Guerra Mundial, sabe do que fala quando menciona essa fragilidade, ainda muito real. Como quando descreve feitos que ainda não eram conceitos, por parte dos operadores dos Lumière, ou quando descreve o cinema como o objectivo e a meta do impressionismo. 

É pelas palavras de Langlois que as curtas ou “vistas” dos Lumière se vão transformando em cinema à frente dos nossos olhos, numa viagem de descobertas infindáveis, um caleidoscópio ilimitado que contém toda a gramática do cinema. Rohmer terá percebido isso durante a fase da montagem (crença minha) e o cepticismo inicial deu lugar à fé absoluta, seleccionando a melhor ordem de imagens para nos causar essa sensação maravilhosa de descoberta, sem dúvida semelhante à sua: dos primeiros movimentos em diagonal (ou em triângulo, como diz Langlois) à abstracção pura dos aquários inundados de luz e das imersões na escuridão de túneis que testam os limites da sensibilidade dos obturadores. E se o melhor filme de Éric Rohmer é uma pequena conversa feita para a televisão em 1968? Cinema são sons e imagens, orquestrados para produzir um efeito, mil sensações. Grande parte das vezes (para não dizer sempre, que não é isso que nos toca, é o jogo que isso potencia) não são precisos heróis nem vilões, suspensões da descrença, três actos ou morais da história, basta uma câmara apontada a um homem que não para de fumar e que fala do que gosta. Depois mostra-se do que é que ele gosta e na acepção dos russos cria-se essa terceira imagem que nos deixa atónitos e em busca de palavras para a descrever (os tratados imersivos e utópicos de Eisenstein, os aforismos em formas de perguntas de Jean-Luc Godard). O concreto e o material do cinema entram no domínio do metafísico, no mundo invisível que perfaz os sonhos e o conhecimento e nos ajuda a reagir ao mundo visível e material. 

Que é como quem diz, dos Lumière para esta sala.

quarta-feira, 7 de março de 2018

84ª sessão: dia 9 de Março (Sexta-Feira), às 21h30


E em Março assistimos ao nascimento do cinema pelas mãos dos irmãos Lumière e dos seus operadores. Veremos as defesas aguerridas, apaixonadas e informadas de Henri Langlois e Jean Renoir em Louis Lumière (1968), filme realizado por Éric Rohmer para a televisão francesa e que será a nossa próxima sessão.

O filme será antecedido pelo filme com o comboio dos Lumière que assustou os seus contemporâneos na sua apresentação pública. João Bénard da Costa descreveu o efeito numa das suas crónicas para o Independente, "O Olhar de Ulisses", contando que "o êxito de L'Arrivée d'un Train à la Gare de Ciotat (Louis Lumière, 1895) deveu-se ao facto de se "acrescentar" à fotografia o movimento, introduzindo assim uma nova dimensão na representação visual. Não era a fotografia de um comboio, nem a de uma estação, o que importava. Mas o movimento do comboio a avançar até ao plano próximo e a provocar, segundo a lenda, a fuga dos espectadores, aterrados com semelhante aproximação. Recorrendo a esse exemplo famoso, esquece-se, habitualmente, que a força da imagem reside no seu enquadramento e "planificação", e esquece-se que o espectador era conduzido a um lugar que raramente ocupou, a não ser que seja ferroviário ou miraculoso sobrevivente de um desastre ou tentativa de suicídio: estar de pé numa linha de caminho-de-ferro, virado para um comboio a avançar contra ele.

"Seja como for, o sucesso do cinema deveu-se a esse efeito do real e, por isso, nos primeiros tempos dele, tanto se insistiu na possibilidade de ver "como se lá se estivesse". Mesmo quando Méliès encenou em estúdio a coroação de Edward VII (1901) o filme foi publicitado como reportagem dessa coroação."

No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles termina a sua entrada sobre La sortie de l'usine Lumière à Lyon escrevendo que "hoje já ninguém duvida que é necessário designar Lumière como o primeiro realizador da história do cinema. Vamos vê-lo fascinado pelo movimento, tal como os seus discípulos e operadores que percorriam o mundo. Essa fascinação é contagiosa. Normalmente surge do facto de que Lumière procura o ângulo em que o maior movimento, e o mais harmonioso, é captado pela câmara. Câmara fixa, obviamente, mas que Lumière e os seus operadores irão colocar o maior número de vezes possível sobre um suporte móvel (cf. os admiráveis planos da Exposição universal de Paris captados do comboio que circula no interior da exposição; encontram-se vários nos dois documentários de Marc Allégret, Lumière e Exposition 1900, 1966). Como a necessidade aguça o engenho, muito do génio de Lumière reside na sua escolha de ângulos, sendo os mais naturais às vezes também os mais hábeis. Na imobilidade da câmara de Lumière, menos ávido em se mexer do que em captar o movimento, estão já contidos os planos (voluntariamente fixos) que realizarão Ford ou Lang no pico da sua arte algumas décadas mais tarde."

Na sua Biographie d'Éric Rohmer, Antoine de Baecque descreve o contexto e o ambiente em que os filmes de Rohmer para a televisão foram feitos, contando que "nesta altura, ele [Rohmer] roda emissões sobre o cinema para a televisão escolar, essencialmente, fecundando assim a sua cinefilia no momento em que esta se apaga, pelo menos na sua forma clássica. Encontra nesta altura Jean Douchet, que criou na segunda metade de 1967, a pedido de Georges Gaudu, a série « Aller au cinéma » para a RTS. Já tinham sido filmados uma dezena de programas antes, desde 1962, nomeadamente por Georges Rouquier, Robert Benayoun, Philippe Pilard, Georges Gaudu, ou pelo próprio Éric Rohmer (Les Histoires extraordinaires de Poe, L'Homme et les Images). Mas é com Douchet que o controlo e a coerência chegam e este programa. Assim, o crítico concebe pessoalmente catorze programas de cinema* de 1967 a 1969, enquanto que, sob a sua direcção, a série é enriquecida com filmes de Jean Eustache, de Jean-Paul Török e Roger Tailleur, de Bernard Eisenschitz ou Georges Rouquier. No total, são realizados quarenta programas em três anos**.

* À propos de Toni et de Païsa (1967), À propos de Tabou (1968), À propos de L'Intendant Sansho (1968), Extraits de À nous la liberté, un film de René Clair (1968), Initiation au cinéma 1: aller au cinéma (1968), Initiation au cinéma 2: voir le film (1968), Initiation au cinéma 3: connaître le passé du cinéma (1968), Les Trois Lumières, postface (1968), Tabou de Murnau (1968), Postface à L'Impératrice rouge (1969).

** Laurent Garreau, Le Cinéma au CNDP, 1962-1975, documento interno do CNDP, 2011. 

"Rohmer encontra naturalmente o seu lugar neste ambiente amigável. Prepara e roda três programas: Postface à L'Atalante, Louis Lumière, e Postface à Boudu sauvé des eaux, difundidos entre 24 de Janeiro de 1968 e 16 de Dezembro de 1969. O primeiro filme é uma entrevista de dezassete minutos com François Truffaut a propósito da sua visão sobre o cinema de Jean Vigo; o terceiro é uma conversa de meia hora entre Jean Douchet e Éric Rohmer sobre Boudu sauvé des eaux, a riqueza da personagem, o seu lado maligno e destrutivo, a cultura clássica e iluminada de Renoir... Um Renoir que está omnipresente nestes filmes, tanto com Rohmer como na série « Aller au cinéma ». O « patrão*** », então rendido à vida cultural francesa - vive em Paris, na avenida Frochot, recebe os seus amigos da Nova Vaga regularmente, preside a comissão de apoio a Henri Langlois em 1968 -, impõe-se como o modelo do autor por excelência.

*** Jacques Rivette, Jean Renoir, le patron, episódio da série « Cinéastes de notre temps », 1966.

"Ele intervém em pessoa no principal filme de Rohmer sobre o cinema: Louis Lumière. É ele que, a pedido de Rohmer e seguindo as suas perguntas, comenta as vistas cinematográficas. Instalado de forma confortável numa poltrona, imediatamente juntado por Langlois, impulsivo e brilhante, Renoir conta da sua descoberta maravilhada destes filmes curtos. Evoca os seus contextos pictóricos e civilizacionais, o que os torna o equivalente de uma obra impressionnista, exalta a captação vibrante da vida real e elogia a composição, bem mais elaborada do que se cria geralmente, os planos, as durações, os movimentos. Rohmer, graças a Renoir e Langlois, contribui humildemente, na posição daquele que faz falar, para o reconhecimento definitivo do génio do cinematógrafo."

Até Sexta!