por João Palhares
Pronto, passaram-se. Estava tudo a correr tão bem, os programadores pareciam tão cultos e tão informados, respeitavam e divulgavam a grande história do cinema, os artistas e as correntes que o fizeram, a opinião dos críticos e historiadores que a comentavam: como é que agora se lembram de programar lixo americano dos anos 90 depois de ciclos dedicados ao cinema francês, a Kenji Mizoguchi e a Pedro Costa? Estava tudo a correr tão bem. O caso torna-se tema de conversa em todos os cafés de Braga e de Lisboa, amizades desfazem-se, os sócios revoltam-se, os espectadores boicotam a sessão, convocam-se reuniões extraordinárias ao mais alto nível, as distribuidoras e os realizadores portugueses recusam-se a negociar com os responsáveis do cineclube: escândalo! sacrilégio! violação! homicídio! estão a equiparar os Coen aos grandes génios do cinema, informem as entidades reguladoras, chamem as forças de segurança pública!
O "caso Coen" enche as manchetes dos jornais, abafando o interesse dos meios de comunicação pelos incêndios florestais, pela contratação de Cristiano Ronaldo e pelas conferências de imprensa de Bruno de Carvalho: Augusto M. Seabra, António Guerreiro e Alexandra Lucas Coelho escrevem extensos ensaios a acusar o cineclube de Braga de crimes contra a cultura. Os responsáveis vão-se tentando defender das acusações, mas acabam por citar João Soares e, como lição, são escoltados pela polícia para o Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, onde terão de aguardar julgamento. A lição não sai muito bem à sociedade pois os responsáveis são declarados intocáveis por Paulo Raposão, homicida e traficante de droga, fã confesso de O Grande Lebowski, que se compadece com a situação dos programadores bracarenses. Depois de recitarem com ele o filme inteiro no pátio da prisão, e enquanto os seus advogados (Luís Tarroso Gomes e Mário Fernandes) preparam a defesa, os cineclubistas redigem um depoimento conjunto para a imprensa:
"Nem sempre é fácil descartar os grandes encontros com filmes vividos durante a infância e a adolescência, e que vão de Fievel - Um Conto Americano (1986) a Nova Iorque 1997 (1981), passando por Space Jam (1996), Hook (1991) ou Con Air: Fortaleza Voadora (1997), decidir hoje se são bons filmes ou não, se merecem palavras de apreço que passem por mais do que a mera descrição da já imensamente meritória qualidade de nos terem feito os dias meses a fio. Mas há excepções em que a confusão se dissipa, e de que convém dar sempre conta, quando um filme e certas personagens nos acompanham ao longo dos anos, quando os diálogos vão saindo de cor e adaptados a quase todas as circunstâncias da vida (“Fuck it, Dude, let’s go bowling”, “yeah, well, that’s just, like, your opinion, man”, “this agression will not stand” ou “the Dude abides”), quando revisitar o filme é quase como voltar a ver velhos amigos, na acepção dos “filmes de personagens” de Howard Hawks ou dos “hangout films” de Quentin Tarantino, ou quando se começa a ver um caldo geracional riquíssimo e que documenta perfeitamente um local e uma era, dos hippies descontraídos dos anos sessenta aos milennials retraídos e fechados nos quartos dos anos 90, dos veteranos da Coreia aos do Vietname, dos pederastas aos fascistas, dos surfistas aos cowboys, dos niilistas às feministas, do submundo dos pornógrafos que tiveram de competir com a explosão do VHS aos grupos elitistas e poliglotas que frequentavam a cena artística nos anos 80."É possível que em Portugal, país em que a resposta à pergunta "Mas onde é que tu estavas no 25 de Abril" ainda pode pôr termo a uma amizade, pareça estranho, inconcebível ou mero macguffin narrativo que um hippie, que nos anos sessenta podia perfeitamente ter recebido os soldados do Vietname com gritos nada pacíficos de "baby killers" ou "make love, not war", e um veterano dessa guerra, que depois das notícias dos massacres da comuna de Charles Manson e dos desacatos trágicos no concerto de Altamont podia perfeitamente passar a ver a "geração do amor" com outros olhos, sejam amigos para a vida. Não há explicação para esta amizade no filme dos irmãos Coen e também não é preciso, porque acreditamos sempre nela, mas sabendo do destino dos ex-combatentes do Vietname e dos últimos resistentes do "flower power" (e partindo do princípio errado que os grupos definem os seus membros), do desprezo a que a sociedade e a opinião pública americanas os votaram durante os anos setenta e oitenta, das demonstrações gratuitas de violência a que foram submetidos pelas autoridades ou por consórcios criminosos como os Hells Angels, não é difícil imaginá-los a encontrarem-se e a conhecerem-se num recinto perdido de bowling qualquer nos subúrbios de Los Angeles, a curar as suas frustrações derrubando pinos como se fossem inimigos ou perseguidores políticos com uma bola pesada de plástico rígido."Pode ser essa a grande lição do Grande Lebowski, entre o muito de surreal que acontece na demanda por um tapete (o verdadeiro macguffin do filme) por essa Los Angeles fora: ser possível encontrar um amigo na pessoa mais improvável e sem pensar nas suas afinidades políticas ou na possibilidade vergonhosa de ser visto com ele em certos círculos e em certos contextos. Numa altura em que as convicções e as palavras das pessoas estão sob vigilância máxima, à custa de empregos e imagem pública, nunca é demais lembrar que não vale mesmo a pena terminar uma amizade por razões políticas, que a vida é curta demais para isso. É sempre preferível resolver as diferenças com um “Walter, I love you, but sooner or later you’re going to have to realize the fact that you’re a god damn moron” ou então um “Fuck the tournament? Okay, Dude, I can see you don’t want to be cheered up, here. Come on, Donny, let’s go get ourselves a lane”."Podemos não gostar da obra dos Coen como um todo, o que até é verdade, concordar que Barton Fink, Miller’s Crossing ou Fargo são filmes afectados e muitíssimo ostensivos, mas isso não nos pode impedir de admitir que às vezes as coisas resultam (ou "sometimes there's a man...", como atira Sam Eliott nas suas divagações de narrador), consegue-se realmente criar uma ligação perfeita entre intérpretes, um ambiente ideal para a criação e para a naturalidade nas relações e nos diálogos, imagens icónicas e originais que dependem de aparatos técnicos muito complexos, como carros telecomandados com câmaras especiais a seguir bolas de bowling ou plataformas gigantes que simulam o ponto de vista dessas bolas, perfeitamente justificados pelos desmaios recorrentes da personagem de Jeff Bridges e da sua apetência por charros e pelo “occasional acid flashback” a que por vezes não resiste. São as pequenas coisas que nos fazem gostar muito deste filme, e por isso o mostramos. Não nos censurem."
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