O encontro de Pedro Costa com Ventura, o decano e pioneiro cabo-verdiano mais respeitado do Bairro das Fontainhas, herói tão temerário e icónico como um John Wayne ou um Henry Fonda no cinema de John Ford, dá-se com Juventude em Marcha, o segundo filme do pequeno ciclo Costa programado para Braga e para o Porto, e a nossa próxima sessão. Será antecedido por uma apresentação em vídeo por Carlos Melo Ferreira, que já falou connosco sobre O Rio Vermelho do grande Howard Hawks.
Em entrevista para o jornal Público em 2006, Pedro Costa disse que Ventura "é um homem que já não espera grande coisa de nada. Ficou numa espécie de encantamento, em relação a uma coisa passada. Não reage a nenhuma novidade. A sua personalidade é constante, fiel, muito forte nas convicções. É pai, é um avô, é uma figura do passado. Já o conhecia vagamente, de passagem lá pelos becos e pelas tabernas [das Fontaínhas]. Depois, quando comecei a pensar neste filme, a ideia era ter alguns pilares de lá, alguns dos construtores das primeiras barracas, dos primeiros chegados de Cabo Verde. Comecei a estar mais com o Ventura e ele começou a revelar-se generoso comigo. Quando tomei a decisão de filmar com ele, foi quando começámos a falar do momento em que ele deslizou para o silêncio, para uma escuridão, para uma solidão. É uma pessoa lendária no bairro. Ninguém se aproxima dele. Foi numa conversa que tivemos que percebi que em 1974/1975 eu devia ter estado nos mesmos sítios que ele. 74/75 foi importante para mim. Foi a altura em que comecei a ver filmes, foi a altura daquela nossa história [a Revolução], e ocorreu-me que em todo o lado em que estava, não tinha visto um negro nas manifestações. Mas ele estava, naquela altura, no Jardim da Estrela, eu vivia em S. Bento, e lembro-me, de facto, de pequenos ajuntamentos no jardim, de quatro ou cinco negros aterrorizados. Na altura não pensei dois segundos sobre isso. Mas via-os. E quando comecei a falar com o Ventura, lembrei-me das festas que eles faziam numas esquinas em S. Bento. Mas nas fotografias, nas imagens, não se encontra um negro num milhão de pessoas nas manifestações do 1.º de Maio. Os tipos que tinham chegado, a partir de 70, viviam no medo, era o pânico nas ruas. O Ventura disse-me que esteve a um passo de se ir embora. Eram coisas que eu queria contar, e que acabaram por sair através dele. Quando comecei a filmar vieram os outros, veio a Vanda, que já me tinha pedido para entrar no filme. Eu queria muito filmar com eles outra vez, e desta vez todos me pediram para trazer as suas próprias histórias."
Por alturas da estreia do filme, Luís Miguel Oliveira [nosso conhecido das sessões da Úlima Valsa e The Thing] escreveu para o Público que "Juventude em Marcha é o terceiro filme que Costa foi rodar ao bairro, e com gente do bairro, depois de Ossos (1997) e No Quarto da Vanda (2000). Apesar das aparências, e apesar do que os une, são três filmes diferentes. Ossos, integrando a "impureza" conciliatória da presença de actores profissionais com actores amadores recrutados no bairro, era um projecto cinematográfico "convencional": havia uma narrativa, uma espécie de "contracampo" a Casa de Lava (que, em 1994, fora o filme anterior de Costa), e essa narrativa, esse "argumento", utilizava o bairro e os seus habitantes, servia-se deles para se desenvolver, mesmo se nesse processo (a "teoria do vitral") a luz com que o cinema de Costa os atravessava (ao bairro e às pessoas) lhes dava um recorte "sobrenatural", atribuindo-lhes qualidades (mitológicas, pictóricas) que nem por sombra os reduziam, bem pelo contrário. Mas havia ainda "demasiado cinema" (coisa que até No Quarto da Vanda Pedro Costa foi tendo tendência para dizer, sempre, do filme anterior, quase os renegando), e o reconhecimento de que a luz e voz não eram deles (do bairro, e das pessoas).
Em entrevista para o jornal Público em 2006, Pedro Costa disse que Ventura "é um homem que já não espera grande coisa de nada. Ficou numa espécie de encantamento, em relação a uma coisa passada. Não reage a nenhuma novidade. A sua personalidade é constante, fiel, muito forte nas convicções. É pai, é um avô, é uma figura do passado. Já o conhecia vagamente, de passagem lá pelos becos e pelas tabernas [das Fontaínhas]. Depois, quando comecei a pensar neste filme, a ideia era ter alguns pilares de lá, alguns dos construtores das primeiras barracas, dos primeiros chegados de Cabo Verde. Comecei a estar mais com o Ventura e ele começou a revelar-se generoso comigo. Quando tomei a decisão de filmar com ele, foi quando começámos a falar do momento em que ele deslizou para o silêncio, para uma escuridão, para uma solidão. É uma pessoa lendária no bairro. Ninguém se aproxima dele. Foi numa conversa que tivemos que percebi que em 1974/1975 eu devia ter estado nos mesmos sítios que ele. 74/75 foi importante para mim. Foi a altura em que comecei a ver filmes, foi a altura daquela nossa história [a Revolução], e ocorreu-me que em todo o lado em que estava, não tinha visto um negro nas manifestações. Mas ele estava, naquela altura, no Jardim da Estrela, eu vivia em S. Bento, e lembro-me, de facto, de pequenos ajuntamentos no jardim, de quatro ou cinco negros aterrorizados. Na altura não pensei dois segundos sobre isso. Mas via-os. E quando comecei a falar com o Ventura, lembrei-me das festas que eles faziam numas esquinas em S. Bento. Mas nas fotografias, nas imagens, não se encontra um negro num milhão de pessoas nas manifestações do 1.º de Maio. Os tipos que tinham chegado, a partir de 70, viviam no medo, era o pânico nas ruas. O Ventura disse-me que esteve a um passo de se ir embora. Eram coisas que eu queria contar, e que acabaram por sair através dele. Quando comecei a filmar vieram os outros, veio a Vanda, que já me tinha pedido para entrar no filme. Eu queria muito filmar com eles outra vez, e desta vez todos me pediram para trazer as suas próprias histórias."
Por alturas da estreia do filme, Luís Miguel Oliveira [nosso conhecido das sessões da Úlima Valsa e The Thing] escreveu para o Público que "Juventude em Marcha é o terceiro filme que Costa foi rodar ao bairro, e com gente do bairro, depois de Ossos (1997) e No Quarto da Vanda (2000). Apesar das aparências, e apesar do que os une, são três filmes diferentes. Ossos, integrando a "impureza" conciliatória da presença de actores profissionais com actores amadores recrutados no bairro, era um projecto cinematográfico "convencional": havia uma narrativa, uma espécie de "contracampo" a Casa de Lava (que, em 1994, fora o filme anterior de Costa), e essa narrativa, esse "argumento", utilizava o bairro e os seus habitantes, servia-se deles para se desenvolver, mesmo se nesse processo (a "teoria do vitral") a luz com que o cinema de Costa os atravessava (ao bairro e às pessoas) lhes dava um recorte "sobrenatural", atribuindo-lhes qualidades (mitológicas, pictóricas) que nem por sombra os reduziam, bem pelo contrário. Mas havia ainda "demasiado cinema" (coisa que até No Quarto da Vanda Pedro Costa foi tendo tendência para dizer, sempre, do filme anterior, quase os renegando), e o reconhecimento de que a luz e voz não eram deles (do bairro, e das pessoas).
"Ossos não era o filme "deles" - e Costa procurou reparar isso oferecendo-lhes
No Quarto da Vanda. Verdadeiro "filme do bairro", espantoso retrato de grupo de uma
comunidade ameaçada de extinção, filme-colmeia que sob a égide de Vanda e do seu
centro de comando (o quarto) se multiplicava em fios e compartimentos, em descrições
de rituais e em "racconti", convocando inúmeras personagens e respectivas vidas e
histórias, sempre na tensão entre a doçura e generosidade do olhar de Costa e a
perversidade do seu papel de cineasta-organizador (teoricamente) na sombra. Se bem se
lembram, é o mais impressionante filme dos últimos, para aí, vinte anos.
"Temos visto alguma tentação de descrever Juventude em Marcha como uma
sequela desse filme, um "No Quarto da Vanda II", agora com Ventura (o pai de Vanda
Duarte) em mestre de cerimónias. Nada mais errado. Juventude em Marcha é outra
coisa, outro filme. Mantém-se o Monument Valley e, embora os actores (fora Vanda)
sejam outros, uma impressão de "troupe" que também começa a ser fordiana. Diferente
porquê, então? Por um lado, porque o bairro já praticamente não existe, e as pessoas que
estavam juntas em No Quarto da Vanda estão agora separadas umas das outras. Foram
realojadas em prédios de habitação social, num bairro novo (onde Ventura se perde)
imaculada e indistintamente branco."
No essencial Cem Mil Cigarros - Os Filmes de Pedro Costa, Andy Rector [que já nos presenteou com vídeos sobre Ride Lonesome e Cracking Up] no seu Pappy: A Rememoração dos Filhos, escreveu que "Juventude em Marcha é uma longa viagem (de regresso a casa?) - um filme de viagem - e poderia ser comparado a Liliom (Fritz Lang, 1934), Deutschland im Jahre Null (Alemanha Ano Zero, Roberto Rossellini, 1948), Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, Kenji Mizoguchi, 1953), Appointment in Honduras (Jacques Tourneur, 1953), Les Maîtres fous (Jean Rouch, 1955), Murder is My Beat (Edgar G. Ulmer, 1955), Céline et Julie vont en bateau (Jacques Rivette, 1974), Allemagne 90 neuf zéro (Jean-Luc Godard, 1991) ou As Bodas de Deus (João César Monteiro, 1999). As pessoas destes filmes têm um caminho, ou são colocadas num caminho, e estão a tentar não ser apagadas. Estes filmes escrevem, e ousam escrever epicamente e para lá dos Limites sobre a vida, a morte, as verdadeiras ruínas, a guerra, o amor, o suicídio, a diplomacia, o colonialismo, a ficção, o imperialismo, o falhanço histórico, a velhice e a juventude. Às vezes as pessoas regressam - fantasmas, espectros narrativos, recalcamento histórico -, os expropriados reapropriam-se através do cinema, mesmo que por pouco tempo ou de forma ambivalente (por exemplo, as personagens do filme - com os realizadores - podem regressar da sua viagem, de volta ao normal, de volta aos Limites, ao Poste, à Vedação). Em resumo, Juventude em Marcha é único neste momento na história do cinema por pôr em cena a reapropriação do cinema pelos expropriados.
"Como é que é posta em cena esta reapropriação? À "antiga": "o conjunto dos mecanismos do cinema não é exterior ao seu objecto - e ao colocar o cinema do lado do seu objecto, deixa de ser um instrumento de lei e ordem."* Há qualquer coisa de destino, sofrimento e, acima de tudo, de necessidade no modo como Costa faz filmes. Talvez fosse natural - para alguém armado de cinema (como Jean-André Fieschi chamou ao espectador ideal operário/camponês de Straub/Huillet), e que caíram dos seus andaimes. Os "desaparecidos" por sua vez estavam destinados a regressar.
* Quintín sobre No Quarto da Vanda: "Mr Costa goes to Vienna", Cinema Scope, nº25, Inverno de 2006.
"Se Costa é um respeitoso filho do cinema, e de todos os que o construíram (do esforço deles), é justo que se esclareça que não o é no sentido de uma criação cine-franskensteiniana - já não faz filmes cosidos com bocados de cinefilia. Mas se o facto de olharmos para Ford, Ulmer ou Tourneur faz hoje sentido, Costa prova que eles também têm utilidade. Se for tão simples como "tornar conhecidas outras pessoas, outros problemas" (Rossellini), Juventude em Marcha prova que hoje em dia essa tarefa não é nada simples. Os anos 20 e 30 (surrealismo, expressionismo, os soviéticos, Flaherty, Walsh, Chaplin) e os anos 70 (Godard, Duras, Eustache, Reis) são necessariamente evocados. E, no entanto, é um filme que se aguenta de pé sozinho. É um filme em que um Guarda de Museu é um Guarda de Museu, um Rubens é um Rubens, um Agente Imobiliário é um Agente Imobiliário, uma Mãe é uma Mãe. Os filmes de Costa são uma intrincada interdependência de dádivas atrás e à frente da câmara; filmes Mutualistas [Mutual Films] - tanto quanto é concebível hoje em dia."
Até Terça-Feira!
No essencial Cem Mil Cigarros - Os Filmes de Pedro Costa, Andy Rector [que já nos presenteou com vídeos sobre Ride Lonesome e Cracking Up] no seu Pappy: A Rememoração dos Filhos, escreveu que "Juventude em Marcha é uma longa viagem (de regresso a casa?) - um filme de viagem - e poderia ser comparado a Liliom (Fritz Lang, 1934), Deutschland im Jahre Null (Alemanha Ano Zero, Roberto Rossellini, 1948), Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, Kenji Mizoguchi, 1953), Appointment in Honduras (Jacques Tourneur, 1953), Les Maîtres fous (Jean Rouch, 1955), Murder is My Beat (Edgar G. Ulmer, 1955), Céline et Julie vont en bateau (Jacques Rivette, 1974), Allemagne 90 neuf zéro (Jean-Luc Godard, 1991) ou As Bodas de Deus (João César Monteiro, 1999). As pessoas destes filmes têm um caminho, ou são colocadas num caminho, e estão a tentar não ser apagadas. Estes filmes escrevem, e ousam escrever epicamente e para lá dos Limites sobre a vida, a morte, as verdadeiras ruínas, a guerra, o amor, o suicídio, a diplomacia, o colonialismo, a ficção, o imperialismo, o falhanço histórico, a velhice e a juventude. Às vezes as pessoas regressam - fantasmas, espectros narrativos, recalcamento histórico -, os expropriados reapropriam-se através do cinema, mesmo que por pouco tempo ou de forma ambivalente (por exemplo, as personagens do filme - com os realizadores - podem regressar da sua viagem, de volta ao normal, de volta aos Limites, ao Poste, à Vedação). Em resumo, Juventude em Marcha é único neste momento na história do cinema por pôr em cena a reapropriação do cinema pelos expropriados.
"Como é que é posta em cena esta reapropriação? À "antiga": "o conjunto dos mecanismos do cinema não é exterior ao seu objecto - e ao colocar o cinema do lado do seu objecto, deixa de ser um instrumento de lei e ordem."* Há qualquer coisa de destino, sofrimento e, acima de tudo, de necessidade no modo como Costa faz filmes. Talvez fosse natural - para alguém armado de cinema (como Jean-André Fieschi chamou ao espectador ideal operário/camponês de Straub/Huillet), e que caíram dos seus andaimes. Os "desaparecidos" por sua vez estavam destinados a regressar.
* Quintín sobre No Quarto da Vanda: "Mr Costa goes to Vienna", Cinema Scope, nº25, Inverno de 2006.
"Se Costa é um respeitoso filho do cinema, e de todos os que o construíram (do esforço deles), é justo que se esclareça que não o é no sentido de uma criação cine-franskensteiniana - já não faz filmes cosidos com bocados de cinefilia. Mas se o facto de olharmos para Ford, Ulmer ou Tourneur faz hoje sentido, Costa prova que eles também têm utilidade. Se for tão simples como "tornar conhecidas outras pessoas, outros problemas" (Rossellini), Juventude em Marcha prova que hoje em dia essa tarefa não é nada simples. Os anos 20 e 30 (surrealismo, expressionismo, os soviéticos, Flaherty, Walsh, Chaplin) e os anos 70 (Godard, Duras, Eustache, Reis) são necessariamente evocados. E, no entanto, é um filme que se aguenta de pé sozinho. É um filme em que um Guarda de Museu é um Guarda de Museu, um Rubens é um Rubens, um Agente Imobiliário é um Agente Imobiliário, uma Mãe é uma Mãe. Os filmes de Costa são uma intrincada interdependência de dádivas atrás e à frente da câmara; filmes Mutualistas [Mutual Films] - tanto quanto é concebível hoje em dia."
Até Terça-Feira!
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