quarta-feira, 18 de julho de 2018

Juventude em Marcha (2006) de Pedro Costa



por João Mário Grilo

SUBLIME DISTÂNCIA 

Depois de No Quarto da Vanda e do seu cinema extremo, ninguém sabia muito bem para onde iria a obra de Pedro Costa. A surpresa foi grande (tão grande que o projecto acabaria por chumbar três vezes às mãos dos doutos juízes do ICAM) quando se soube que não ia para parte alguma. Que ficava por ali mesmo, nas Fontainhas, para onde Ossos a tinha levado. E que continuaria a contar a história dos habitantes do bairro, que tinha entrado, entretanto, num processo irreversível de transformação, com o seu deslocamento do dédalo arcaico das Fontainhas (entretanto, arrasado pelas máquinas da câmara) para a brancura surrealista da urbanização do Casal da Boba. Dos catrapilas do final de No Quarto da Vanda aos móveis arremessados por Clotilde da janela da casa de Ventura, a ligação é assim directa, como se se tratasse, quase, do mesmo filme. Com a diferença que a própria mudança do bairro conduz Pedro Costa a um interesse mais preciso sobre a origem daquele mundo, pelo seu momento, digamo-lo, “abraâmico”.

Ora, o Abraão de Juventude em Marcha chama-se Ventura. É ele quem guia o cineasta por uma paisagem mental infinita povoada pelos seus filhos reais e imaginários. Em certo sentido, Juventude em Marcha é a projecção fantasmática do mundo interior de Ventura, ao mesmo nível que o era já a América do jovem Lincoln, de John Ford. O que vemos, então, neste filme, nas suas brutais dialécticas de luz e trevas, de paralelas e oblíquas e de passado e presente é o retrato de um homem ou, mais exactamente, a projecção exterior do seu retrato interior. 

Neste movimento de “purificação cinematográfica”, Juventude em Marcha vem lembrar-nos algumas coisas essenciais: por exemplo, a imensa distância que opõe um “cinema de personagens”, mais os seus planos médios e as suas receitazinhas dramatúrgicas, a um cinema de heróis, inteiramente nascido de uma relação original entre a palavra, o corpo, o espaço e o destino épico das criaturas que o habitam; vem também lembrar-nos como o cinema opera sobre a realidade, inscrevendo-a num outro plano e, sobretudo, numa outra (e própria) racionalidade histórica, essencialmente “projectiva”. 

Neste sentido, existe uma articulação profunda, primordial, entre o cinema de Pedro Costa e o mundo do qual ele próprio (o seu cinema) acabou por fazer parte. Filmes como Casa de Lava, Ossos, No Quarto da Vanda ou Juventude em Marcha são etapas de uma grande epopeia fundacional (porque, como o título o lembra, é mesmo do “nascimento de uma nação” que aqui se trata), que partilhando, cinematograficamente, a desmesura de Griffith e, sobretudo, de Ford, reconduz-nos, através dela, à matriz homérica da História. 

Daí que pareça profundamente estranho, ridículo (e, também, esclarecedor) que, numa apresentação televisiva de Juventude em Marcha, a jornalista - animada, decerto, das melhores intenções, isto é, procurando ilustrar “até que ponto o filme falava verdade” - tenha utilizado, pelo meio de um excerto do filme, os seus planinhos de reportagem. Fazer isto é passar ao lado da realidade que Juventude em Marcha nos conta, a qual, parecendo ser, fisicamente, a mesma, está colocada, de facto, num outro plano e, sobretudo, a uma outra (sublime) distância. O que fazendo toda a diferença, faz também, ao mesmo tempo, a única diferença que realmente importa. 

in blog « Sempre em Marcha »

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