sexta-feira, 12 de julho de 2019

Cléo de 5 à 7 (1961) de Agnès Varda



por Roger Tailleur

Cléo: Daqui até à Eternidade

Comecemos por colocar o filme num pedestal dentro das minhas classificações pessoais: a meu ver, Cléo de 5 à 7 é o melhor filme francês desde Hiroshima, meu Amor de Alain Resnais, Le Bel Age de Pierre Kast e Le Trou de Jacques Becker.

Não há nada mais admirável do que um intelecto regado com sensibilidade, tirando talvez a sensibilidade guiada pelo intelecto. Não há nada mais raro do que uma mente apaixonada em igual medida pelo rigor e pela fantasia, tirando um temperamento que é hiper-instintivo e extra-lúcido ao mesmo tempo. Agnès Varda é a harmonia dos seus contrários, e talvez a mais completa dos nossos cineastas, se não se vir demasiado limitada pelo seu sexo (nada poderia ser menos certo do que isso, como costuma acontecer). Cléo é então tanto o mais livre dos filmes como o filme que é maior prisioneiro de constrições, o mais natural e o mais formal, o mais realista e o mais precioso, o mais comovente de ver e o mais agradável para assistir. Com tanta felicidade em termos de expressão, uma coisa é clara: Varda, para usar as suas próprias palavras, teve de sujar as mãos pelo menos uma vez na vida. Deu-lhe sorte.[1]

Varda, que é a criadora de La Pointe courte, que outrora nos aborrecia mas que na nova versão foi re-sincronizado e em retrospectiva bem nos podia encher de vergonha – e que também fez três curtas maravilhosas, não é a jóia mais pequena da nova coroa cinematográfica francesa. É uma maravilhosa representante desse cinema, em pé de igualdade com Resnais e Chris Marker, para não mencionar Armand Gatti, Kast e Jean-Claude Bonnardot. Uma família estranha, talvez? No entanto, basta dar uma olhadela às suas respectivas filmografias, em que dão conselhos uns aos outros, comentam o trabalho uns dos outros, partilham montadores, compositores, directores de fotografia, e olhar para os seus filmes, com as suas piscadelas de olho recíprocas e despreocupadas ocasionais, que são notáveis principalmente pela audácia dos seus temas e as suas estruturas, para ver que para além das recepções variadas dadas a estes filmes – ao lado de um êxito rodeado de amarga controvérsia, três filmes totalmente banidos e alguns fracassos de bilheteira – o que estes criadores nos oferecem não é um bando barulhento e bem organizado. Nem um sindicato empenhado na intimidação numa tentativa de ganhar prestígio, mas um verdadeiro Centre National de la Recherche Cinématographique, em que os nómadas respondem aos que ficam em casa e a experiência mais esotérica é bem contrabalançada pelas afirmações de talento mais estritamente estruturadas.

Isto é então um esforço para situar Varda, “condicioná-la”, como ela gosta de dizer, e em relação a Cléo, salientar a pesquisa narrativa, as limitações temporais, as preocupações vitais, o tom e a superfície elegantes, e dois a dois, o humor e a ansiedade, a gravidade e a poesia.



O QUÊ 

Qual é o tema de Cléo? Uma mulher sabe que vai morrer; de forma mais precisa, pode morrer e acredita que vai morrer. É uma mulher jovem e muito bonita. Por um período de noventa minutos, desde a altura (5 da tarde) em que consulta uma adivinhadeira pouco reconfortante, até às 6:30 da tarde, quando um médico lhe dá só com algumas palavras uma perspectiva bem optimista (sobre a qual podemos duvidar da sua sinceridade total) baseada nos resultados de uma análise médica, noventa minutos até ela, como um herói macabro obcecado com uma questão menor, não conseguir pensar em mais nada: o escândalo, a sua morte. A sua secretária Angèle (Dominique Davray), o seu namorado, os músicos com quem ensaia algumas canções às 5:30 da tarde (segundo Varda, “ela não é uma cantora muito conhecida”), uma amiga, Dorothée (Dorothée Blank), que é modelo de esculturas, que ela visita às seis menos dez, um jovem que dá pelo nome de Antoine (Antoine Bourseiller) e que a aborda um quarto de hora mais tarde no Parque de Montsouris e a acompanha para o Hospital de Salpêtriére, nenhum deles se consegue pôr mesmo entre Cléo (Corinne Marchand) e a sua obsessão incontrolável. Nenhum a não ser Antoine, mesmo no fim, apenas alguns momentos antes do médico aparecer, um oráculo subitamente bem fútil.

A morte está em todo o lado pelo caminho seguido por Cléo nessa tarde: é a máscara pálida da adivinhadeira; uma velha de cabelos brancos apanhada subitamente de um ângulo baixo filmada como uma mulher morta num filme de Carl Dreyer (as melhores estão em Eles apanharam a barcaça e Vampiro); são as muitas seduções de uma chapelaria (“O preto fica-me muito bem,” diz Cléo, experimentando vários chapéus); são as máscaras africanas nas janelas da loja de antiguidades na Rua Guénégaud, que nos lembram todas que “as estátuas também morrem” e que os censores estão à frente do funeral; a confrontação com um funeral em Montparnasse, neste caso; é a ironia de uma placa que diz “à nossa saúde”; é um filme curto, macabro e burlesco visto da sala de projecção; ou as palavras infelizes usadas em conversa: “Os mortos, já não sabemos quem são,” diz Dorothée enquanto tenta perceber os nomes das ruas nas placas. “Se se for preso, é improvável que se morra,” diz uma taxista. “Hoje,” diz Antoine, “o sol deixa a constelação de Gémeos e entra na de Carangueijo[2].” Longe de permanecer um leitmotiv abstracto, o pensamento escava fundo pela carne de Cléo, como uma lasca, e qualquer cena que seja ligeiramente anormal, desde que sugira dor física ou acrobacias viscerais, causa repulsa e deixa-nos à beira da náusea.

Um engolidor de sapos, um acupuncturista de rua, um buraco de bala numa janela de café como liquidação de umas contas misteriosas, quase a fazem desmaiar: “Sinto-me virada do avesso.” Depois de ver a primeira máscara africana, põe a cabeça de fora da janela do táxi para uma lufada de ar fresco. Umas notícias na rádio sobre a convalescência difícil da sua bem conhecida colega cantora Edith Piaf, uma história que lhe é contada pela mulher taxista sobre alguns dos seus encontros com clientes difíceis, e uma discussão de mulheres paraquedistas, põem-na fria com o horror. No clima que reina devido a uma obsessão destas, a superstição cresce. Mas Cléo, que procura respostas nas cartas e se aborrece com um espelho partido, não está sozinha em querer propiciar os decretos da providência. Por outro lado, os amigos dela vêem a sua sensibilidade para com o destino como uma forma de serem atenciosos e delicados com ela. “Nada de noves numa Terça-Feira,” diz e repete Angèle, a secretária, “não queres má sorte nenhuma, pois não?” Este táxi, não, tem um número com azar,” acrescenta Angèle dez segundos depois. Dorothée, que se ausenta um momento, diz-lhe para “pensar noutra coisa; conta chapéus de marinheiros.” E a própria Varda divide calmamente a sua história num prólogo e treze capítulos, e depois arranja as coisas de forma a que corra tudo de forma tranquila para a sua heroína, assim que regressa. A generosidade atenciosa de Dorothée ao dar-lhe o chapéu que queria, um pequeno chapéu de pele preta que tinha escolhido apesar dos protestos de Angèle.

Uma abundância tal de referências à morte e aos sinais da morte seria insuportável, obviamente, se Varda acreditasse mesmo ligeiramente no simbolismo. Mas, em vez disso, ela é definitivamente uma realista absoluta. Jean-Luc Godard, depois de incorporar no seu filme O Acossado uma cena de um acidente de carro que Jean-Paul Belmondo tinha testemunhado por um momento, foi capaz de dizer sobre o seu filme, entre muitos outros comentários auto-referenciais palavrosos, que estava concentrado na obsessão com a morte; essa foi a explicação dele, supostamente resultante de um acesso de inspiração febril, para todos os fins práticos. Varda, que como acabámos de ver, também consegue lidar com o destino, permanece lúcida quando a criação artística está em discussão, e não está particularmente interessada em partilhar os seus créditos com o acaso ou quaisquer outras forças obscuras de adivinhação. Tal como L'Opéra-mouffe de Varda era o diário de uma mulher grávida, Cléo é o diário de alguém que está mesmo doente, não apenas a imaginá-lo, e que tem medo de morrer. Na revista Témoignage Chrétien (3 de Abril de 1959), Varda explicou: “A forma como compreendemos uma mulher grávida é condicionada, e portanto alterada, pelas suas circunstâncias. Ela escolhe reparar inconscientemente no que é que isto significa ao certo, como o facto de ver velhos enquanto que nós, na mesma rua, veríamos principalmente crianças, casas ou cafés... Portanto o meu cinema é expressionista, distorce o mundo, mostra-o de um ângulo particular.” E falando de Cléo, numa entrevista para revista L'Express (29 de Junho de 1961): “No princípio, queria viajar à volta de Paris, mas Paris vista por alguém que olhasse para as coisas de forma especial. Porque não o ponto de vista de alguém que vai morrer? Porque não uma mulher? … O que me interessa sempre é a forma de apreender a realidade.” “Condicionada,” “ângulo particular,” “forma especial” – poderá ser esta a versão feminina do “ponto de vista documentado” tão caro a Jean Vigo? Em todo o caso, há uma grande diferença entre não ter consciência de todos os detalhes numa coisa que foi extensivamente estudada e não ter consciência de algo por causa de uma pincelada de preguiça ou falta de preparação, e entre os impulsos que foram investigados e retransmitidos e os impulsos que andam aos círculos. 

Esta visão realista, de uma forma extrema e imediatamente concreta, que nos mostra alternadamente Cléo e o que a sua “opinião” do mundo selecciona dele, é como um longo acto de equilíbrio não só de planos e planos de ângulos inversos, porque os planos de Cléo não são menos subjectivos que os outros, mas subjectivos de uma forma muito variável em termos do seu nível de referência à própria heroína. De facto, Cléo encontra pessoas que a medem de cima a baixo tal como ela as mede a elas, e cada um dos treze capítulos inclui um nome próprio no título (Cléo cinco vezes, seguida de Angèle, Bob, Dorothée e Antoine). A criadora explicou o significado dos seus títulos num pequeno preâmbulo ao filme: “A rodagem, a realização e até as “cores” de cada capítulo têm a intenção de caracterizar a opinião ou a perspectiva de cada pessoa, e quando é Cléo que 'vê,' ela idealiza o seu carácter (por exemplo, Angèle 'vê' imagens simples, claras e realistas em planos estáticos. Cléo vê imagens enquadradas diante de planos de fundo pálidos e vagos em movimentos sinuosos).” Este “marienbadismo”[3] do filme não é tão sistemático, apressamo-lo a dizer, como essas palavras parecem indicar. Em primeiro lugar, se fosse absolutamente necessário estar ciente dos saltos de ponto de vista de uns capítulos para os outros, então os títulos seriam suficientes para nos informar imediatamente de quem assumia o controlo. Mas o realismo possante impõe uma forma de consistência e fluidez de tom ao filme que, inicialmente, torna o público inconsciente de todos esses saltos no discurso.

Se não fosse o preâmbulo, eu não teria reparado no que quer que fosse, e acreditaria sem rodeios que os títulos dos capítulos só estavam lá para estruturar a história, situar-nos no tempo e apresentar as personagens. Estaria enganado; por exemplo, a sequência com a visita do namorado não se chama “José” mas “Cléo.” Tendo pensado sobre esses assuntos, porque era necessário fazê-lo, não discutamos com Varda acerca dos seus travellings no Capítulo IV, chamado “Angèle”, e admitamos que muitos dos capítulos, estritamente da perspectiva da realização, são desenhados de forma admirável em termos de ponto de vista: O Capítulo VI, por exemplo, que é louco e cheio de gags e movimentos de câmara, e digno em todos os aspectos das fantasias desenfreadas do compositor Bob (Michel Legrand); o Capítulo V é elegante, agitado e pleno de sorrisos afectados de Cléo; O Capítulo VIII (“Outros”) está cheio de mudanças abruptas, impressões fragmentadas e unilateralidade documental. De forma mais frequente, e mais simples, as personagens têm capítulos em que são “a estrela” em termos de diálogo e presença no ecrã: Angèle no Capítulo II, porque está cheio da tagarelice carinhosa dela; Raoul (José-Luis de Villalonga) no Capítulo X porque o cenário é a sala de cinema em que ele trabalha como projeccionista, e em que diz, “Não há doença que ganhe se se conseguir parar para rir por um momento” antes de projectar uma curta cómica; Antoine no Capítulo XII porque está lá, a lidar com a guerra e com o amor; e por último, o Capítulo XIII, “Cléo e Antoine,” porque Cléo aceita falar pela primeira vez.

Sejam quais forem os níveis de subjectividade para os vários episódios, e a nossa acuidade correspondente de percepção, as diferentes “visões” sobre a observação, com duas excepções, permanecem puramente retinianas: o que vemos é algo que toda a gente consegue ver – só mudam os pontos de vista. As únicas duas vezes em que o olhar imperturbavelmente concreto do filme pestaneja são às 5:05 da tarde enquanto Cléo deixa a adivinhadeira, quando o mesmo plano é usado três vezes numa sequência de montagem rápida que mostra a cara dela a mover-se de forma estridente para a frente, uma impressão bem traduzida de descer uma escadaria a ritmo médio; e às 5:50 da tarde, quando pensa em pessoas diferentes a descer a rua, e nos são dados planos em lampejos sobrepostos da adivinhadeira, do engolidor de sapos, do namorado, de Angèle e da própria Cléo a arrancar o cabelo falso dela, etc, pontos de vista excessivamente óbvios cortados no tempo com a objectividade igualmente insistente do metrónomo ouvido mais cedo durante os créditos. Nestes dois momentos, quando o olho interior substitui o olho físico, triunfa o “marienbadismo” de que acabámos de falar. 

Mas o triunfo é de pouca duração. A vitória de Cléo está noutro lado: numa co-existência próxima entre o objectivo e o subjectivo, em que o melhor de uma pessoa pode viver em bons termos com o melhor de outra, sem que qualquer uma delas se afaste ou sinta enfraquecida pela outra, tal como nos filmes de Michelangelo Antonioni o invólucro aparente esconde artifícios (comentário, câmara subjectiva, monólogos interiores, etc.) mas cuja substância íntima reflecte um nível incomparável de subjectividade.



ONDE E QUANDO 

Para conseguir isso, Varda utiliza uma variedade de pontos de referência objectivos, de tal forma que o seu filme tem mais limitações auto-impostas do que qualquer outro que se possa imaginar. Ela decidiu seguir Cléo para todo o lado durante noventa minutos seguidos, sem nunca permitir uma elipse que remova a heroína tanto do tempo em que vive mesmo como dos lugares por que passa. Isto é um desafio único porque os filmes famosos do passado rodados em “tempo absoluto” (The Set-Up de Robert Wise, A Corda de Alfred Hitchcock e High Noon de Fred Zinnemann), comprometiam a sua continuidade temporal, e às vezes a sua continuidade espacial, por se centrarem em personagens diferentes. Mas ela vence o desafio, apenas com duas breves excepções, as famosas duas excepções que confirmam a regra: às 5:04 da tarde, a adivinhadeira fecha a porta a Cléo e diz ao marido (?), que está no quarto ao lado, “Vi-lhe cancro na mão”; e às 5:13 da tarde, quando os dois músicos nas alas montam uma farsa especial que inventaram só para Cléo. Com a excepção destes parcos segundos, estamos sempre com Cléo; esteja ou não no enquadramento, está na cena. O que está no ecrã é o que ela está a viver ou o que está a ver. Também há detalhes de todos os tipos, e parecem ser obsessivos, para os nossos olhos desabituados.

Quando saltamos para um táxi na Rua de Rivoli para ir para a rua Huyghens, estamos claramente a descer a rua Vavin, que é muito perto do Studio-Parnasse. Quando chegamos ao Parque de Montsouris pela avenida Montsouris, apeamos pela avenida Reille precisamente no sítio em que encontramos, senão uma estátua de Ado Kyrou, pelo menos o seu fantasma. O autocarro 67 que nos leva do Parque de Montsouris para o Hospital de la Pitié vai até à Estação de Verlaine e, um bocado mais longe, atravessa a Praça de Itália. Tem de se dar dois bilhetes ao revisor, tal como foram pagos quatro francos novos pela viagem no primeiro táxi. Quando o rádio do táxi diz que são 5:22 da tarde, não estão a brincar; podia-se sincronizar o relógio pela coisa. E estes noventa minutos altamente ostensivos não estão algures na eternidade; foram vividos uma vez, apenas uma e de uma vez por todas. O que é que estávamos a fazer a 21 de Junho de 1961, o primeiro dia oficial do Verão, o dia mais longo do ano? Por volta das 6 da tarde, mesmo no momento em que Cléo estava às gargalhadas a ver o seu pequeno filme burlesco, eu estava a entrar no Cinema Elysée para ver outra vez O Homem do Oeste, com Gary Cooper, que, por sinal, tinha morrido de cancro no mês anterior. Marcel Achard, o Claude Chabrol da geração passada, que estava sentado na fila atrás de mim, podia-o confirmar prontamente, pelo menos se os seus papéis pessoais estiverem em tão boas condições como os meus. Mas acho que vinte e um foi uma Quarta-feira, ao passo que Cléo, como nos lembram no incidente do chapéu preto, se passou numa Terça-Feira. Então, foi no século vinte ou no vinte e um? Quem tem razão, o meu calendário ou o simpático mas tagarela Antoine, o mensageiro do Verão cuja omnisciência não o impediu de confundir Flora com Ceres? Talvez o noticiário no rádio do táxi nos possa informar.

Conseguíamos ouvir conversas sobre a próxima Tour de France, dos problemas dos camponeses na Bretanha, acidentes de trabalho, e por último, lentamente, equilibrado na voz monótona de um altifalante, da guerra decididamente interminável na Argélia. Pobre cinema francês, cinema esterilizado pobrezinho, em que a projecção de um simples noticiário no silêncio de uma sala escura constitui um evento audaz e inovador, e nós ficamos surpreendidos quando o ouvimos e tememos a presença provável de um censor na escuridão. Mais tarde, depois desta fenda ter sido bem e mesmo aberta, Antoine, o soldado de licença, dirá sem levantar a voz o quanto odeia morrer por nada, antes de se preparar para apanhar o barco de volta para lá. (Ao escrever isto, lembro-me subitamente que Cléo é como um remake novo e muito francês de Trade Winds de Tay Garnett, em que duas pessoas, uma das quais suspeita de homicídio, têm um breve interlúdio de amor.) O reino “que pertence a todos” é de novo brilhante nas sequências e planos em que Agnès se consegue entregar alegremente a si mesma ao documentário: os travellings avedonianos numa chapelaria; mais dois num estúdio de escultura; o café Dôme esboçado de forma magistral; uma psicanálise rápida de Godard a utilizar o método do Dr. Mack Sennett; e na banda-sonora, graças às discussões prolongadas de Antoine, dignas de Jean Giraudoux, com milhares de detalhes úteis e informativos sobre as árvores e os hospitais de Paris, amor do tipo que as raparigas jovens não sentem, mitologia e outros etcéteras detectáveis.

A estrutura da história não é menos rigorosa e precisa do que a própria realidade. Permitam-me falar aqui sobre estrutura musical. Cléo começa com uma abertura (uma abertura francesa ao estilo da Carmen, diria o purista) em que tudo é dito, reunido e resumido, com um tema principal e temas secundários. Enquanto brinca com as suas cartas de tarot, a adivinhadeira fala a Cléo sobre a sua vida, quase sem se desviar do tópico da morte. Fala-lhe sobre o amante que não casa com ela, um jovem que vai conhecer, uma partida, uma viagem, uma doença séria que ela leva demasiado a sério, e mesmo antes da última carta, a número treze, diz a Cléo às lágrimas: “Não é morte, mas uma transformação profunda de todo o seu ser.” A abertura chega aqui a um fim e aparecem os créditos. Mais tarde, no Capítulo II, reaparece um tema na forma de uma anedota contada por Angèle: Angèle fala sobre um camponês das Causses a sudeste de França, que depois de ter sido informado pelos seus médicos de que ia morrer, parte numa longa viagem – não a última viagem – pelo Mediterrâneo e regressa saudável e animado à sua pequena aldeia, onde a mulher, a infeliz Penelope, tinha morrido num acidente enquanto ele estava fora. O tema também é parafraseado, sempre com um contraponto filosófico, no pequeno filme burlesco: devido aos seus óculos escuros, Godard vê de forma tão falsa como indicaria o visionamento demasiado simplista de O Acossado. Acha que Anna, a sua mulher, é preta; ela é esmagada e desaparece num horrível carro fúnebre, etc. Depois, quando atira os seus óculos escuros para o rio e se livra da miopia sistemática das suas ideias e visões negras, volta a encontrar Anna, outra vez com o cabelo louro. “Ah, estava a ver tudo preto por causa dos meus óculos,” diz a legenda, “Raio dos óculos escuros!”



PORQUÊ 

O tema principal, de que não falei muito até agora, é que todos os padrões fixos matam, através das palavras. Aquilo que se encontra no cerne de Cléo é menos a obsessão com a morte e mais a possibilidade de quebrar esse círculo, não tanto da morte, mas da mudança. “A transformação profunda do ser,” como disse a velha, uma forma de pôr um fim aos monólogos banais, à superstição, e de arrancar persianas e óculos escuros, sair de nós próprios para ir de encontro aos outros, ou pelo menos na direcção um do outro. Podemos seguir as etapas desta passagem quase imperceptível mas contínua entre ser egocêntrico e passar a ser mais comunicativo nos diálogos, e ainda melhor à frente dos outros, dependendo do facto de sermos confrontados com uma esfinge de indiferença ou um Pítias reconfortante. Cléo tem uma constelação de rostos humanos quase ao nível de L'Opera-mouffe, em que as caras tinham uma presença assombrosa.

Depois de verem o filme A Paixão de Joana d'Arc de Carl Dreyer, os clientes esperam na loja da adivinhadeira a uma luz que é digna da manhã perfeita para as execuções; temos Cléo a procurar a sua cara, do fundo das escadas, a chorar em frente ao seu reflexo, “A morte é ser feia; estou dez vezes mais viva do que os outros,” e a chorar de novo no café, com a cara contra o espelho. Temos a atenção excessivamente profissional do dono e de um empregado (“Então, menina, o que é que se passa?”), indiferença elevada a um sistema, apoiada com rações, justificações, etc., do amante, a curiosidade fugaz dos transeuntes na rua, a multidão no café Dôme em ilhas pequenas mas bem repartidas, e temos Cléo diante de outro espelho, num restaurante chinês: “Está toda a gente a olhar para mim e eu só olho para mim mesma,” em resposta a Dorothée e depois desta lhe perguntar sobre a sua doença: “É no estômago; pelo menos não se pode ver, ninguém suspeita do que quer que seja,” e depois admitindo a Antoine: “Estou surpreendida com tudo, as caras das pessoas e a minha ao lado delas.” Retratar este bailado de rostos perpétuo, esta interacção incessante de vislumbres e olhares, dá num filme que descreve em detalhe as pessoas a olharem umas para as outras e a verem-se a olhar umas para as outras; por outro lado, há imagens-espelho, porque para Cléo outra cara é simplesmente outro espelho, mas um que distorce mais, que é mais incómodo e, com um bocado de sorte, como no retrato refrangente de Dorian Gray, existe a oportunidade de ver a própria morte a trabalhar (como disse Cocteau); noutras alturas é como uma luta de esgrima, em que a melhor opção de Cléo para contrariar a agressão do olhar da outra pessoa é recusar-se a apanhar o seu florete.

Mas Cléo vai mudar. Cléo a criança mimada, Cléo a rapariga arrogante, Cléo a fazer o beicinho, a Cléo tempestiva, que brinca com o seu corpo mas não oferece o coração, Cléo a quem os títulos de canções “L'Allumeuse” (“A Provocadora”), depois “ La Menteuse” (“A Mentirosa”), e depois “Moi, je joue” (“Eu jogo o jogo”) se adequam tão bem, Cléo vai mudar. O local é um jardim cheio de chilrear de pássaros, cascatas, e paisagens lunares, e outro jardim, que se parece com o parque que rodeava um castelo em tempos passados. Neste mapa do Terno [um país alegórico em que se imaginaram diversas formas de amor], onde se pode encontrar de novo o Éden, coberto de sapatilhas, de Du côté de la côte, os autocarros antigos com plataforma funcional sem perigo algum. Varda insiste em tornar instrumental Antoine, quase a primeira pessoa a aparecer, pensando talvez neste poema inspirado encantador de René Char chamado “L'Amour”:

Ser
O primeiro a aparecer.

Gostávamos que as primeiras pessoas a aparecer fossem exactamente como ele. Durante meia-hora, Antoine transforma um desses discursos de amizade afectuosa e cumplicidade crescente, na forma em que os imaginaríamos, perfeitos e eternos, apenas com os olhos fechados na escuridão, na borda de um sono que não vai chegar. O talentoso Antoine Bourseiller, um tipo simpático e contagioso, fala incansavelmente da sua forma séria e divertida, humilde e segura, sentenciosa e agradável. Durante vinte minutos temos um movimento amplo e firmemente ascendente que constitui uma das duas ou três cenas mais belas de amor de todo o cinema. Há uma cena em que o amor é discutido, mas só de forma indirecta, em que a frase “Eu amo-te” e o beijo não se mostram, sem nem sequer uma vez nos fazer lembrar dos conceitos de discrição ou sobriedade, esses apêndices críticos vulgares, porque é tudo feito com uma naturalidade maravilhosa. Cléo deixa de ser um sujeito tirânico e pode permanecer fora de si mesma; isto quer dizer que ela quer ser um objecto apenas enquanto se torna parte de um casal. Quando Antoine está prestes a sair do autocarro, ela chama-o de volta dizendo, “Mas tu estás comigo!” Ele responde calmamente, “Tu também estás comigo.” E depois temos a oferta de uma flor, um dar de mãos, uma troca de endereços, um “Obrigado Florence, obrigado Cléo,” e começam a falar sobre o futuro juntos, levando este duo exemplar a um clímax excepcionalmente modesto e particularmente comovente. Ao mesmo tempo, Cléo livra-se das últimas réstias do seu medo, uma de cada vez. Ela, que tem medo de tudo, de elevadores a pássaros, e que cultiva o melodrama (“Com ela, tens drama e companhia,” diz Angèle, e Antoine encontra o rótulo que pega, “És uma melomaníaca, adoras a sentimentalidade”) ainda vacila quando vê o letreiro do “Hospital”, e a ausência de um médico enerva-a. E quando o médico desaparece, ela vem na nossa direcção com Antoine, os dois encostados um ao outro, oferecendo-lhe o seu primeiro sorriso, ainda não muito confiante, e o seu primeiro olhar. Estão tão nus ao lado um do outro como os casais de L'Opéra-mouffe e Du côté de la côte. “Parece-me que já não tenho medo. Pareço estar feliz” – a fábula do camponês de Causses chegou ao fim. Foi virada a carta número treze, e está a começar a viagem para Cléo; O romance La fête de Roger Vailland diria que ela já não é uma mulher que se queixa, que aceita, que se lamenta, que fica no interior; é uma mulher que se vira para o exterior. Raio dos óculos escuros!



COMO 

Embora a análise acima isole algumas das características-chave deste filme abundante que grita por ser comentado, diz muitíssimo pouco sobre o charme, a poesia e a emoção, essas vastas áreas do inefável, em suma, com que Cléo lida. Elogiar a luva de ferro sem uma palavra sobre a mão de veludo, louvar a harmonia e a construção rigorosas esquecendo-se de comentar sobre os cenários porque se tem medo de entrar no templo, é um bocado como criticar um musical falando sobre os travellings, medir os ângulos de câmara, citar algumas letras, e deixar a coisa assim. Equivale a uma avaliação apropriada da profundidade, o que é valioso e admirável, mas com uma vista cega para com o estilo e a elegância.

As armas de sedução de Varda são muitas. Pelo diálogo, pela beleza das suas imagens, a beleza da sua heroína e a riqueza inventiva da sua realização, ela é estilo, como George-Louis Buffon foi incapaz de definir: o estilo é mulher. Estes diálogos são uma mistura de tiradas, jogos de palavras simples e deliberados, como máximas, declamações, preciosidade e provérbios de Khrushchev; em suma, ela pegou em muitas coisas que são reconhecidamente negativas, ampliou-as aqui usando um tom natural e misturando-as umas às outras, e com uma lei matemática inventou o signo inegável do talento. Ao comentar sobre a busca de Varda e do seu operador de câmara, Jean Rabier, seria um eufemismo dizer que os resultados que produziram são pelo menos tão felizes como os de Raoul Coutard, e eles nunca se esquecem de um facto essencial que as pessoas que andam com câmaras esquecem facilmente: o significado do formal.

Varda talvez seja o único cineasta no mundo capaz de fazer um filme veneziano (“La Mélangite”, Deus, François Truffaut, Carlo Ponti e mais uns quantos dispostos) tão bonito como Othello e Sait-on jamais... juntos. Os cenários de Cléo, sejam em exteriores ou desenhados por Bernard Evein, também são uma das suas forças. O apartamento da heroína é uma enorme sala de espera branca rococó em que os gatos vagueiam. Num roupão de cetim, Cléo move-se de um trapézio para um balouço e para uma cama fabulosa que só podemos imaginar que a realizadora de La Pointe courte verificou e mexeu em cada vieira, cada astragália, do dossel aos pilares torcidos da cama e mesmo a colcha. Se tivermos de demonstrar uma imparcialidade rigorosa pelo menos num aspecto e mencionar as fraquezas de um filme que não é perfeito (mas também já alguém amou uma mulher perfeita? Deve ser muito entediante), então teria de ser sobre a interpretação por vezes solta, particularmente nos papéis mais pequenos. Mas a simplicidade de Dorothée Blank, o humor de Michel Legrand e, claro, Antoine Bourseiller e Corinne Marchand depressa varrem quaisquer desejos vagos de comentar sobre as interpretações. Nunca o humor ligeiro foi debitado com tanta graciosidade como por Marchand, uma boneca esculpida em carne, uma boneca em tamanho grande. A corista de Lola transformou-se na mais bela das mulheres deprimidas. Também canta canções que o diálogo nos diz com razão terem palavras (escritas por Varda) que são bonitas, e as melodias (por Legrand) estão ao mesmo nível. Legrand também compôs a música do filme, que é terna e engraçada ao mesmo tempo, e da qual gostaria de ser capaz de separar o que se poderia chamar de primeiro movimento, um adágio, da sua Sinfonia de Montsouris (a entrada de Lola num táxi). Esperando que a minha próxima visita a Raoul Vidal me permita comprar o LP de 33 rotações em que se precisa de registar tudo isso, comento agora a última canção, em que Cléo canta sobre a sua solidão e o seu medo e desata a chorar, numa experiência catártica inesperada e pouco produtiva. Um travelling circular é seguido de um plano de grua para a frente que pára no alabastro frágil e puro do rosto de Cléo, húmido de lágrimas, enquanto ouvimos o seu lamento:

E se chegares tarde demais
Já me terão enterrado,
Sozinha, feia e pálida de morte,
Sem ti, sem ti, sem ti.

É um dos pontos altos do filme, um momento de beleza pura, e prova de que junto a algumas das outras razões que já mencionei, Varda está enganada quando diz achar que não seria boa em musicais, e no entanto o realismo tem sido um elemento dos musicais há já mais de dez anos.

E cá estamos, dos grandes planos aos travellings, a falar de realização. A realização de Cléo, e espero que isto se tenha destacado de forma clara em tudo o que disse, está cheia de pequenas e grandes ideias, para não falar de ideias breves, longas, sérias, rebuscadas, ambiciosas e leves, produzindo às vezes imagens sublimes, imagens que podem transfigurar um trabalho, quando – aqui não é o caso – se sente a necessidade urgente. Podia-se vir com uma lista de inovações longa, sem nos repetirmos uma única vez, inovações de que todos os outros andam à procura e que aqui estão claramente em exibição. E que grandes inovações são: essas barras de ferro nos Jardins de Luxemburgo, por exemplo, quando a rádio proclama “Libertem os bretões!”; os fósforos que a provocadora tira um a um ao ritmo de “Ele ama-me... um bocado... muito”; o pastiche de Brahms que sauda a entrada de Villalonga; o fabuloso plano de grua desde o carro do médico, até ao fim, deixando o casal literalmente onde está, como um deus ex machina, e depois subindo a uma velocidade alarmante até às arcadas, com a missão cumprida; a distração-indiscrição de Cléo num café quando ouve uma palavra na história de Angèle e salta quando ouve a mesma palavra na conversa de um casal próximo, deixando-nos a escolher entre a história sobre o camponês e a discussão do casal, ambas das quais se podem ouvir com o mesmo volume; a “palavra” poética, que é digna do Orfeu de Cocteau, e que aparece de forma soberba no ecrã. Angèle fica preocupada com as lágrimas de Cléo depois da última canção. “Em que estado ela se põe!” enquanto Cléo desaparece por essa altura por uma cortina negra. Corta para outro plano, um fade-out – mas afinal não é um fade-out – e a cortina que enche agora o enquadramento do ecrã é violentamente puxada por Cléo, que vem para a frente completamente vestida em trajes de luto: “Estou vestida de preto.”

Os dois planos sublimes, que guardei para o fim, são os seguintes: o primeiro é indescritível porque nada na execução técnica o denuncia (é um plano estático, de Cléo e Antoine virados um para o outro na plataforma do autocarro, e um travelling ao mesmo tempo, porque o autocarro está a descer a estrada) e particularmente porque, isolado da continuidade dramática, emocional e amorosa não quer dizer grande coisa. De forma muito simples, temos Cléo e Antoine cara a cara sem dizer uma palavra. No plano anterior, ele deu-lhe uma flor; imóvel, olha para Cléo, que olha de volta para ele de forma quase furtiva, várias vezes, puxando o cabelo levado pelo vento para trás, com a mão que segura a flor. Varda filmou a primeira centelha do amor, uma conflagração série e silenciosa. O segundo plano é o do jardim do hospital, quando Cléo, que acabou de fazer o seu discurso a Antoine, está subitamente cheia de planos: “O que é que vamos fazer? Ficamos? Vamos ao restaurante? Queres comer numa esplanada?” e depois se acalma: “Temos todo o tipo de tempo,” enquanto que a câmara, num plano extremamente afastado, isola o casal, imóvel no banco a meio do jardim, num momento de silêncio sereno, fora do tempo.

É essencial um sentido de propriedade e até de avareza, como no amor; os melhores filmes dão-nos o desejo, obviamente condenado, de preparar um inventário exaustivo. Condenado porque só os vários filmes medíocres devem evocar uma obsessão pelo inventário: um círculo vicioso, mas delicioso. Pelo menos “contei as minhas riquezas,” como diz Marker. Estou a pensar outra vez nesse momento único, o resultado final de uma centena de minutos de medo. Até esse momento, tínhamos Cléo Victoire, cantora, das 5 às 7 da tarde no vigésimo ou vigésimo primeiro século de Junho de 1961. Agora é Florence e Cleópatra, daqui até à eternidade.

[1] Rosiguer: marcher dans la m... (cf. Express, 29 de Junho de 1961). (nota de Tailleur)
[2] Em francês, a constelação de Capricórnio chama-se “Cancer”, que também quer dizer “cancro” - daí a reacção de Cléo ao ouvir Antoine dizer isto no filme (nota do tradutor).
[3] Referência a L'année dernière à Marienbad, de Alain Resnais (n.t).

in «Positif» 44, Março de 1962.
Tradução: João Palhares

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