terça-feira, 30 de julho de 2019

Les glaneurs et la glaneuse (2000) de Agnès Varda



por Agnès Varda

Eu adoro essa ideia de que a emoção é um botão. O filme partiu de uma emoção muito curiosa que eu tive a ver televisão, a ouvir um agricultor apoiado na sua máquina potente, uma ceifadora-debulhadora-aglomeradora-empacotadora, e certamente vendedora, que dizia que a sua máquina estava tão aperfeiçoada que não perdia um espigão, nem sequer um grão. Acrescentou que se a máquina fosse mal regulada, fazia-o perder dinheiro. E portanto oscilei entre essa imagem da respiga e essa realidade agrícola ancestral, que eu própria pratiquei durante a guerra para encontrar qualquer coisa para comer. O meu filme não é só um olhar sobre uma realidade social terrível, também fala do prazer que se tem a encontrar coisas, nas ruas ou nos campos. E do simples bom senso que existe ao respigar. Porque para respigar, é preciso usar os sentidos, o tacto, a vista e o olfacto para determinar se o que se respiga ainda é bom para consumo. Tentei fazer um documentário rigoroso abordando as diversas razões para respigar. E tentei abordar as pessoas que vivem dos nossos restos, porque nós desperdiçamos todos imenso. As coisas perderam a sua duração de vida. Dantes, tínhamos um relógio para a vida, ou até que se partisse ou estragasse. A revolução começou quando a publicidade disse às pessoas que podiam mudar de relógio. Agora, as coisas não são fabricadas para durar, e as pessoas trocam tudo a toda a hora. 

A mão, as mãos, as minhas mãos. Respigamos e colhemos com as mãos. Estendemos a mão, pegamos na mão, damos as mãos e uma mão amiga. Há muitas mãos no filme, incluindo as minhas – uma filma, a outra não, há uma mão que vê a outra filmá-la. Sempre adorei esse desdobramento próprio ao cineasta: ver e reflectir, ser comovido e pôr em ordem, filmar de improviso e montar de forma rigorosa, captar a desordem e ordená-la. Sou muito manual, provo com as mãos, portanto tenho as mãos muito estragadas. Para mim, a representação é deliciosa. Em Les Demoiselles ont eu vingt-cinq ans, montei uma cena que tinha filmado no cenário do café do filme. Aí vemos Jacques Demy a pôr interminavelmente uma camisola que tinha acabado de comprar, a tirar a etiqueta, a passar a cabeça, a puxar as mangas, a reajustar, tudo isso durante um tempo infinito. Na vida, sempre achei Jacques demasiado lento a vestir-se e repreendia-o por causa disso. Olhando para essas imagens que tinha rodado mas nunca tinha revisto desde a altura, tive um ataque de riso e a reprovação desapareceu: a representação de Jacques torna a lentidão do acto de se vestir perfeitamente comovente porque é ele por completo. Porque a realidade atravessa a imagem representada e torna-a magnífica. O outro exemplo é a minha própria mão, que é velha como eu, e que torno monstruosa filmando-a eu própria, estreitando-a e torcendo-a. Foi essa representação da minha mão que me fez entrar no fenómeno do envelhecimento com um deleite extraordinário. Foi filmar a realidade que me permitiu aceitá-la, foi a sua representação excessiva que me permitiu compreendê-la. 

Não se vão fazer batatas com este simbolismo. Mas isso não impede que uma mão respigue e agarre uma batata em forma de coração, é todo um programa... Eu, com uma mão, filmo a outra mão que envelhece, mas também filmo aquela mão que brinca com os camiões das autoestradas, que brinca a apanhá-los. 

A respiga agrícola já não é de trigo mas de batatas, de cebolas... Já não é com cestos ou aventais, mas com baldes e sacos de plástico. O debate que engloba a economia, a agricultura e a distribuição emana destas imagens simples, mas cabe a outros sustentá-lo. A lei nos cardos. Queria ter o coração ligado à legislação da respiga. Portanto pedi ao Mestre Dessaud, apelidado de Titus, advogado em Avignon, para falar comigo. Ele aceitou vir em uniforme a um campo de cardos (e ouvimo-lo dizer que aproveitou a oportunidade para passear entre os repolhos). Trouxe o pequeno livro vermelho dele e citou os artigos de leis, e até um édito do século xvi. Perguntei ao Mestre Dessaud: "E os que respigam por prazer? – Se respigam por prazer, é porque precisam de alguma coisa para o prazer deles. Se os princípios e as horas forem respeitados, podem respigar como os pobres de antigamente." Grande Titus! Essa bela imagem azul, verde e cinzenta mostra uma pessoa que cria o seu mercado segundo o mercado (em Barbès), no meio do barulho e da velocidade urbana. Há toda uma população que apanha os restos nos mercados e nas lixeiras. Tentei filmar de longe aqueles que o fazem por miséria extrema e de fazer falar os que, como François por exemplo, o fazem por ética, revoltando-se contra a desordem. Como muitos cineastas ou pintores, tenho medo de um dia ficar cega. É por isso que trago sempre comigo um olho pequeno à volta do pescoço – um ex-voto que comprei no México, há muito tempo. Agora, amplio o formato, já não se sabe... Foi em Cannes, na feira em frente ao Palais des festivals, que encontrei esse par de olhos enorme que me protege desde essa altura. Um cineasta nunca pode deixar de olhar, não necessariamente para filmar aquilo em que repara, mas pelo prazer dos olhos, como um pianista deve fazer sempre escalas. É preciso conservar o humor do olho e a liberdade do olhar. É preciso conservar um olho primário, ver as coisas antes do contexto, ter o olhar divertido da infância diante dos grandes camiões da autoestrada. Todo o olhar é uma mudança de escala. Queria fazer um documentário. Porque quando estou menos inspirada, o que me acontece a toda a hora, saio à rua em vez de me lamentar à frente da minha página branca, e observo as pessoas. Os outros são o meu alimento. E vi muitas pessoas que recolhiam alimentos no fim das feiras, impressionou-me muito. Esta visão pessoal misturou-se com a frase desse agricultor, e tentei estabelecer a relação entre essas máquinas tão funcionais e essas pessoas que recolhem coisas nas feiras: isso fez-me começar e fez começar o filme. E depois essa pequena câmara digital impulsionou-me a fazer qualquer coisa de pessoal, tinha vontade de me infiltrar no filme, de forma carnal. Quando se está no envelhecimento, vai-se na direcção do desperdício próprio. Quando vi a minha mão a segurar o postal desse auto-retrato de Rembrandt que tinha trazido do Japão, vi aí uma ligação fulgurante e imediata com o tema do documentário. Então falei para a câmara, sem que fosse combinado, e dei-me conta até que ponto estamos sempre em processo de nos auto-retratar: rejeitamos o nosso estado de leis, conjugamo-lo, mas com discrição e sem complacência. É uma forma que acho honesta de dizer que me interesso em mim e nos outros, que o altruísmo também tem os seus limites. Mesmo se este filme defende valores em que acredito. Adoro este filme porque adoro as pessoas que lá estão, adoro o que elas dizem e o que fazem, e esgueirei-me entre eles, como uma cineasta-respigadora.

in «Les Glaneurs et la glaneuse, le ciné-brocante d'Agnès Varda»,  Les inrockuptibles, 4 de Julho de 2000.

Sem comentários:

Enviar um comentário