terça-feira, 2 de julho de 2019

136ª sessão: dia 4 de Julho (Quinta-Feira), às 21h30


A carreira cinematográfica de Agnès Varda, que começou na fotografia, durou mais de sessenta anos, pelo que a homenagem que lhe faremos durante este mês de Julho em Braga, três meses depois da sua morte (dedicámos-lhe a sessão de Os Chapéus-de-Chuva de Cherburgo), é apenas uma pequena amostra do seu trabalho. A nossa próxima sessão, La Pointe Courte, é o primeiro filme de Varda, considerado por muitos como o grande precursor da Nova Vaga Francesa.

No seu livro de 1994, Varda par Agnès, a realizadora admite que "(...) não dá para enfatizar o suficiente a generosidade com que Silvia e Philippe me permitiram levar ao fim este projecto, ensaio, manifesto, declaração de fé e primeiro filme que é La Pointe Courte.

"Para além desses dois actores que são o casal do filme, foi determinante o encontro com outro casal, formado por Carlos e Jane Vilardebo, ambos pequenos, delgados e belos. O casamento deles tinha a idade do dos meus heróis, mas eles ainda tinham ar de adolescentes.

"Podia-lhes chamar o Sr. e a Sra. É Preciso. O filme fez-se graças ao seu extremo vigor face às dificuldades de produção, às suas ideias para encontrar soluções, ao seu espírito, à sua força de trabalho e à sua confiança no meu projecto."

No nº 726 da revista Arts, Jean Douchet, que já nos apresentou Marnie, escreve que “La Pointe courte, o nome de um bairro miserável adjacente à cidade de Sète, combina duas histórias e dois mundos diferentes. Por um lado, um jovem casal prestes a separar-se, que tenta recuperar o seu equilíbrio e o seu amor; por outro lado, os indígenas de La Pointe Courte, a sua vida e a sua luta com o serviço de saúde que lhes interdita a pesca de moluscos na sua lagoa poluída. Num jogo de alternativas, passamos constantemente do colectivo ao individual, do social ao psicológico, como nas Palmeiras Bravas de Faulkner. Este jogo foi procurado por Agnès Varda para permitir um recuo constante face a estes dois mundos diferentes que coexistem sem se misturar. Mas a pouco e pouco, par uma espécie de fenómeno de osmose, Silvia Monfort, a parisiense, a intelectual que procura apenas o amor ideal, humaniza-se, torna-se sensível aos seres e às coisas, materializa-se. Como diz Agnès Varda: «No meu filme, ganha o material.»

"É o que explica a pesquisa fotográfica deste filme. Não esqueçamos, o ofício de Agnès Varda é a fotografia e, como tal, está ligada oficialmente ao T.N.P. [Théâtre National Populaire]. Varda tentou realçar aquilo que chama de «inversão do mundo dos objectos». O mesmo objecto - redes de pesca, barcas, caldeirões, etc. - tanto é mostrado como utilitário e como contexto poético. Para ser mais exacto, torna-se linguagem, não por simbolismo ou alegoria (não é depositário de um significado procurado pela autora), mas porque os nossos heróis apaixonados sentem os objectos como palavras visuais que expressam os seus verdadeiros sentimentos melhor do que as palavras faladas."

No Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles fala de "dois filmes num nesta primeira longa-metragem, modesta mas ambiciosa, de Agnès Varda. Eles nunca se vão fundir, embora um formalismo constante, por vezes muito desajeitado, por vezes inspirado, os habite aos dois. A pintura dos pescadores descende em linha recta do neo-realismo formalista de A Terra Treme e em menor medida da austeridade pictórica de Farrebique: rodagem em exteriores e uso da população local que infelizmente foi preciso pós-sincronizar na maior parte dos casos. A câmara de Varda passeia-se pela aldeia e desenha longos arabescos atenciosos e indiscretos: é o melhor do filme. O outro aspecto – os problemas de casal de dois citadinos – é formalista pelo hieratismo da interpretação, a dicção teatral e o refinamento – para não dizer afectação – dos enquadramentos: daí esse plano duplo em que aparecem o perfil do actor e a actriz vista de frente, depois alguns momentos mais tarde o actor visto de frente e a actriz diante dele tomada de perfil. Este casal mal arranjado, um homem plácido e uma raciocinadora («Eles falam demais para serem felizes», diz uma mulher de pescador), segundo a lógica do argumento, devia ter encontrado a paz e o silêncio no final da estada. Mas a reconciliação final parece tão frágil e artificial que suscita o cepticismo do espectador e, em certa medida, o da própria autora. Este cepticismo é o ponto fraco e a originalidade do filme: ao contrário de Rossellini na sua Viagem em Itália, Agnès Varda não soube metamorfosear as personagens através da experiência por que as faz passar. E se esta experiência não as transforma, para que serve o filme? A ramificação dupla de La Pointe Courte, filme amado pela crítica e imediatamente reconhecido como importante, vai resultar na Nouvelle Vague. É sem dúvida lamentável que esta tenha retido sobretudo o segundo aspecto – verborreia filosófico-sentimental, diário íntimo (nada íntimo, no fundo) de um casal em crise – em detrimento do primeiro – esse belo estudo de ambiente realista, social e poético ao mesmo tempo ao qual o preto e branco assenta de forma admirável. 

"N.B. Primeiro filme de Philippe Noiret, então membro do T.N.P. e escolhido por Varda no último momento em substituição de Georges Wilson, que ficou doente. Embora este filme tenha lançado a sua carreira cinematográfica, Noiret, ainda que infinitamente superior à sua parceira Silvia Monfort, critica severamente a sua interpretação: «No final de contas eu estou ausente do filme (...) Pensei que permaneceria uma experiência única (...). Especialmente porque nas poucas críticas que foram feitas sobre o filme, eu fui «reduzido» a cinzas (...). Era uma personagem muito afastada de mim. Era certamente preciso alguém mais velho e a escolha de Wilson não tinha sido um acaso. Com vinte e seis anos, eu ainda era muito jovem e não tinha a maturidade necessária para interpretar aquilo.» (in «Philippe Noiret» por Dominique Maillet, Éditions Henri Veyrier, 1989)."

Até Quinta-Feira!

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