Para esta semana, resolvemos passear pelas casas e bares que o grande mestre Yasujiro Ozu nos mostrou com a sua graciosidade habitual em O Gosto do Saké, filme que o professor Carlos Melo Ferreira colocou bem alto no seu panteão pessoal do cineasta, ao lado de Viagem a Tóquio, e portanto a nossa próxima sessão na Casa do Professor.
Sobre esses dois filmes, escreveu Luís Miguel Oliveira serem "realizados com nove anos de intervalo - Viagem a Tóquio é de 1953 e O Gosto do Saké de 1962 -, há tanta coisa a uni-los como a separá-los. Viagem a Tóquio, realizado apenas oito anos após o final da Segunda Guerra Mundial, com fotografia a preto e branco, mostra-nos um Japão em reconstrução, “material” (quase todos os planos de “pontuação” sinalizam uma Tóquio em obras) mas também “social”, onde os filhos já não são nem sentem como os pais são e sentem. Em O Gosto do Saké, filmado nas maravilhosas cores do Agfacolor tal como interpretadas pelo genial operador Yuharu Atsuta (um dos vários “colaboradores permanentes” de Ozu, que também fotografou a Viagem), tudo indica que o “milagre” da recuperação económica já se completou, e Tóquio tem definitivamente a cara lavada, iluminada, à noite, por dezenas de néons brilhantes e coloridos. Esta transformação foi, a partir do pós-guerra, um tema dominante dos filmes de Ozu, mas nunca de uma maneira declarada, nunca de uma maneira trazida ostensivamente para o primeiro plano, antes como uma cortina perante a qual se recortam as histórias e as personagens. O que é uma das coisas que fazem a força de Ozu, e em particular do seu “período colorido”, os seis filmes finais de que O Gosto do Saké é o “clímax”, todos eles variações quase minimais sobre os mesmos temas e elementos, a tal ponto que tendem a confundir-se na memória de quem os viu, como se fossem um só longo filme. Nesse aspecto, Viagem a Tóquio talvez seja um filme mais facilmente distinguível, porque independentemente da perfeição (em Ozu, como no céu, tudo é perfeito...), em primeiro lugar dramatúrgica, que o cineasta alcançou, é um filme que isola, com a simplicidade de um risco firme feito a carvão (é a metáfora cromática ideal), uma situação essencial: a “falha geracional” entre aqueles (os pais) que viveram a juventude antes da guerra e aqueles (os filhos) que são os jovens adultos do pós-guerra. É mais isto do que a oposição campo/cidade, embora também ela seja reveladora - os pais vêm do campo, os filhos vivem na cidade, é o ambiente urbano consagrado como força motriz da modernidade e da ruptura com a tradição. E, depois, os pais sentem-se fora de água, desconfortáveis, e os filhos também com os pais em casa, não têm tempo, nem sobretudo ritmo para eles, e todo o filme se desenvolve sobre este desentendimento fundamental, sempre tratado com uma doçura inacreditável, um amor enorme por tudo e por toda a gente, que não impedem que se chegue (cheguem, as personagens) às conclusões mais cruéis, e que as verbalizem umas à outras, sem que isso alguma vez pareça exercício de crueldade, antes a descoberta de “verdades universais” que é forçoso aceitar, para mais quando (isto é o Japão) verificadas dentro dum omnipresente sentido da “forma” e do “formalismo” sociais. No fim, numa sequência de planos estarrecedora, é com o velho Chishu Ryu que a câmara de Ozu fica.
"E o velho Chishu Ryu, actor-chave de Ozu, volta em O Gosto de Saké. Um velho diferente, urbano, apreciador da bebida (bebe-se mais num só filme de Ozu do que em todo o Cassavetes), viúvo há mais tempo, com filhos em idade “casadoura”. E de maneira diferente da da Viagem, mas semelhante à de praticamente todos os filmes desses anos finais de Ozu (que, nascido em 1903, tinha mais ou menos a idade dos seus protagonistas), tudo decorre entre pais e filhos, entre as reuniões masculinas, cheias de cerveja e saké, onde se cantam canções e se evocam os velhos tempos, e as preocupações dos e com os filhos, que querem casar e não conseguem, ou não querem casar e também não conseguem. Mas o ponto de vista é, definitivamente, o dos mais velhos, e O Gosto do Saké, no que tem de mais bonito, é essa aprendizagem da “velhice” no que tem de mais amargo e simultaneamente mais doce - o “gosto do saké”, de certa maneira não apenas simbólica. O plano final - o derradeiro plano de Ozu - é outra vez uma coisa fabulosa, ficamos sem saber se abandonar a sala em lágrimas ou sair para a rua com um sorriso nos lábios. Em todo o caso, uma óptima sensação."
No nº 296 dos Cahiers du Cinéma (em 1979), Jean-Claude Biette começa o seu texto sobre o filme dizendo que "à maneira de cineastas (Hawks, McCarey, Rohmer, Olmi) cuja obra manifesta uma perfeita conformidade, ideológica e sentimental, em relação à sociedade em que vivem, Ozu não se nos revela por temas pessoais ou por histórias que trairiam uma visão do mundo original e distinta antes mesmo de serem investidas pelo cinema. Em vez de se diferenciar demasiado visivelmente dos comuns dos mortais que compõem essa sociedade dando-lhes a contemplar um espectáculo demasiado diferente daquilo que vivem, Ozu (ou um dos outros quatro) escolheu não confundir e fazer da vida quotidiana e comum o elemento permanente sobre o qual o seu cinema se funde. Trabalho difícil - já que a querer fugir dos excessos de uma trama ou de personagens excepcionais, ele corre o risco de cair na banalidade - que estes cineastas cumpriram ou cumprem com maior ou menor felicidade.
"Ozu conta-nos aqui a história de várias famílias cujas vidas se entrecruzam primeiro porque em cada uma delas o pai tem o hábito de encontrar os outros numa espécie de clube onde se restauram: todos evocam então os seus diversos sucessos amorosos, certas lembranças, o futuro dos filhos. O que se vê e o que não se vê, o que se diz e o que é supérfluo dizer, não obedece a exigências de argumento: o argumento, em O Gosto do Saké, não exige o que quer que seja (as relações só progridem com morosidade, e a vida, à maneira dessa pequena música que balança o filme, continua sem problemas), mas aos imperativos rítmicos, digamos, de uma certa harmonia que Ozu estabelece habilmente entre o tempo e o espaço, entre as impaciências individuais e a paciência imposta por tudo aquilo que nós, espectadores de cá, não conhecemos e que poderíamos chamar de ordem social e cultural japonesa."
No seu Dictionnaire, Lourcelles escreve que é o "último filme de Ozu (e o seu sexto a cores). A impressão do familiar no universo de Ozu, é tão forte que restabelece completamente a impressão do real. O real, aqui, é real porque é familiar. O tema de O Gosto do Saké foi ilustrado frequentemente por Ozu (especialmente na sua obra-prima Primavera Tardia e em O Fim do Outono). Os actores são regulares dos seus filmes. Em relação ao seu estilo, está definido há muito tempo para a eternidade: planos filmados ao nível do chão, ausência de movimentos de câmara, planos de objectos e de cenários vazios a pontuar ou a entoar a narrativa. Por estarem intimamente integrados na duração da cena, estes planos são exactamente o oposto de «naturezas mortas» (veja-se particularmente o plano do fumo a subir lentamente para o tecto do bar na cena em que Chishu Ryu se vai embebedar depois do casamento da filha). A familiaridade e o sentimento de eternidade que se experimentam em contacto com os filmes de Ozu vêm especialmente do facto de, nele, o presente não ter mais importância que o passado ou que o futuro. O passado existe de forma muito intensa nos pensamentos e nas lembranças - constantemente revividas - das personagens, nessas cenas antológicas de celebração e homenagem, como a do jantar organizado em honra de um velho professor caído. O futuro existe nos planos e nos projectos que as personagens fazem constantemente para assegurar a felicidade dos seus descendentes. Quanto ao presente, tão fugitivo, talvez não lhe sobre mais que o essencial: essa própria fugacidade, essa melancolia, esse sentimento de fracasso e sobretudo de vazio que Ozu transforma em plenitude para o espectador. A frustração transforma-se a pouco e pouco em serenidade. O desespero converte-se de forma imperceptível em resignação tranquila perante as leis inexoráveis da duração, do envelhecimento, da sucessão e da reposição das gerações. Neste último filme, todo o esforço de Ozu tende a dar ao seu universo pessoal, às suas personagens de predilecção, aos seus pensamentos e às suas impressões mais íntimas, o aspecto, se possível tranquilizador, da normalidade e da banalidade. Porque a melhor forma que encontrou, no termo da sua obra, para aceitar o sofrimento de viver foi voltar a considerá-lo e apresentá-lo como normal e como banal. A tristeza, a solidão e a morte só serão toleráveis assim que se nos tornarem familiares de forma mental e concreta. É mais ou menos este o sentido da sua última mensagem.
Sobre esses dois filmes, escreveu Luís Miguel Oliveira serem "realizados com nove anos de intervalo - Viagem a Tóquio é de 1953 e O Gosto do Saké de 1962 -, há tanta coisa a uni-los como a separá-los. Viagem a Tóquio, realizado apenas oito anos após o final da Segunda Guerra Mundial, com fotografia a preto e branco, mostra-nos um Japão em reconstrução, “material” (quase todos os planos de “pontuação” sinalizam uma Tóquio em obras) mas também “social”, onde os filhos já não são nem sentem como os pais são e sentem. Em O Gosto do Saké, filmado nas maravilhosas cores do Agfacolor tal como interpretadas pelo genial operador Yuharu Atsuta (um dos vários “colaboradores permanentes” de Ozu, que também fotografou a Viagem), tudo indica que o “milagre” da recuperação económica já se completou, e Tóquio tem definitivamente a cara lavada, iluminada, à noite, por dezenas de néons brilhantes e coloridos. Esta transformação foi, a partir do pós-guerra, um tema dominante dos filmes de Ozu, mas nunca de uma maneira declarada, nunca de uma maneira trazida ostensivamente para o primeiro plano, antes como uma cortina perante a qual se recortam as histórias e as personagens. O que é uma das coisas que fazem a força de Ozu, e em particular do seu “período colorido”, os seis filmes finais de que O Gosto do Saké é o “clímax”, todos eles variações quase minimais sobre os mesmos temas e elementos, a tal ponto que tendem a confundir-se na memória de quem os viu, como se fossem um só longo filme. Nesse aspecto, Viagem a Tóquio talvez seja um filme mais facilmente distinguível, porque independentemente da perfeição (em Ozu, como no céu, tudo é perfeito...), em primeiro lugar dramatúrgica, que o cineasta alcançou, é um filme que isola, com a simplicidade de um risco firme feito a carvão (é a metáfora cromática ideal), uma situação essencial: a “falha geracional” entre aqueles (os pais) que viveram a juventude antes da guerra e aqueles (os filhos) que são os jovens adultos do pós-guerra. É mais isto do que a oposição campo/cidade, embora também ela seja reveladora - os pais vêm do campo, os filhos vivem na cidade, é o ambiente urbano consagrado como força motriz da modernidade e da ruptura com a tradição. E, depois, os pais sentem-se fora de água, desconfortáveis, e os filhos também com os pais em casa, não têm tempo, nem sobretudo ritmo para eles, e todo o filme se desenvolve sobre este desentendimento fundamental, sempre tratado com uma doçura inacreditável, um amor enorme por tudo e por toda a gente, que não impedem que se chegue (cheguem, as personagens) às conclusões mais cruéis, e que as verbalizem umas à outras, sem que isso alguma vez pareça exercício de crueldade, antes a descoberta de “verdades universais” que é forçoso aceitar, para mais quando (isto é o Japão) verificadas dentro dum omnipresente sentido da “forma” e do “formalismo” sociais. No fim, numa sequência de planos estarrecedora, é com o velho Chishu Ryu que a câmara de Ozu fica.
"E o velho Chishu Ryu, actor-chave de Ozu, volta em O Gosto de Saké. Um velho diferente, urbano, apreciador da bebida (bebe-se mais num só filme de Ozu do que em todo o Cassavetes), viúvo há mais tempo, com filhos em idade “casadoura”. E de maneira diferente da da Viagem, mas semelhante à de praticamente todos os filmes desses anos finais de Ozu (que, nascido em 1903, tinha mais ou menos a idade dos seus protagonistas), tudo decorre entre pais e filhos, entre as reuniões masculinas, cheias de cerveja e saké, onde se cantam canções e se evocam os velhos tempos, e as preocupações dos e com os filhos, que querem casar e não conseguem, ou não querem casar e também não conseguem. Mas o ponto de vista é, definitivamente, o dos mais velhos, e O Gosto do Saké, no que tem de mais bonito, é essa aprendizagem da “velhice” no que tem de mais amargo e simultaneamente mais doce - o “gosto do saké”, de certa maneira não apenas simbólica. O plano final - o derradeiro plano de Ozu - é outra vez uma coisa fabulosa, ficamos sem saber se abandonar a sala em lágrimas ou sair para a rua com um sorriso nos lábios. Em todo o caso, uma óptima sensação."
No nº 296 dos Cahiers du Cinéma (em 1979), Jean-Claude Biette começa o seu texto sobre o filme dizendo que "à maneira de cineastas (Hawks, McCarey, Rohmer, Olmi) cuja obra manifesta uma perfeita conformidade, ideológica e sentimental, em relação à sociedade em que vivem, Ozu não se nos revela por temas pessoais ou por histórias que trairiam uma visão do mundo original e distinta antes mesmo de serem investidas pelo cinema. Em vez de se diferenciar demasiado visivelmente dos comuns dos mortais que compõem essa sociedade dando-lhes a contemplar um espectáculo demasiado diferente daquilo que vivem, Ozu (ou um dos outros quatro) escolheu não confundir e fazer da vida quotidiana e comum o elemento permanente sobre o qual o seu cinema se funde. Trabalho difícil - já que a querer fugir dos excessos de uma trama ou de personagens excepcionais, ele corre o risco de cair na banalidade - que estes cineastas cumpriram ou cumprem com maior ou menor felicidade.
"Ozu conta-nos aqui a história de várias famílias cujas vidas se entrecruzam primeiro porque em cada uma delas o pai tem o hábito de encontrar os outros numa espécie de clube onde se restauram: todos evocam então os seus diversos sucessos amorosos, certas lembranças, o futuro dos filhos. O que se vê e o que não se vê, o que se diz e o que é supérfluo dizer, não obedece a exigências de argumento: o argumento, em O Gosto do Saké, não exige o que quer que seja (as relações só progridem com morosidade, e a vida, à maneira dessa pequena música que balança o filme, continua sem problemas), mas aos imperativos rítmicos, digamos, de uma certa harmonia que Ozu estabelece habilmente entre o tempo e o espaço, entre as impaciências individuais e a paciência imposta por tudo aquilo que nós, espectadores de cá, não conhecemos e que poderíamos chamar de ordem social e cultural japonesa."
No seu Dictionnaire, Lourcelles escreve que é o "último filme de Ozu (e o seu sexto a cores). A impressão do familiar no universo de Ozu, é tão forte que restabelece completamente a impressão do real. O real, aqui, é real porque é familiar. O tema de O Gosto do Saké foi ilustrado frequentemente por Ozu (especialmente na sua obra-prima Primavera Tardia e em O Fim do Outono). Os actores são regulares dos seus filmes. Em relação ao seu estilo, está definido há muito tempo para a eternidade: planos filmados ao nível do chão, ausência de movimentos de câmara, planos de objectos e de cenários vazios a pontuar ou a entoar a narrativa. Por estarem intimamente integrados na duração da cena, estes planos são exactamente o oposto de «naturezas mortas» (veja-se particularmente o plano do fumo a subir lentamente para o tecto do bar na cena em que Chishu Ryu se vai embebedar depois do casamento da filha). A familiaridade e o sentimento de eternidade que se experimentam em contacto com os filmes de Ozu vêm especialmente do facto de, nele, o presente não ter mais importância que o passado ou que o futuro. O passado existe de forma muito intensa nos pensamentos e nas lembranças - constantemente revividas - das personagens, nessas cenas antológicas de celebração e homenagem, como a do jantar organizado em honra de um velho professor caído. O futuro existe nos planos e nos projectos que as personagens fazem constantemente para assegurar a felicidade dos seus descendentes. Quanto ao presente, tão fugitivo, talvez não lhe sobre mais que o essencial: essa própria fugacidade, essa melancolia, esse sentimento de fracasso e sobretudo de vazio que Ozu transforma em plenitude para o espectador. A frustração transforma-se a pouco e pouco em serenidade. O desespero converte-se de forma imperceptível em resignação tranquila perante as leis inexoráveis da duração, do envelhecimento, da sucessão e da reposição das gerações. Neste último filme, todo o esforço de Ozu tende a dar ao seu universo pessoal, às suas personagens de predilecção, aos seus pensamentos e às suas impressões mais íntimas, o aspecto, se possível tranquilizador, da normalidade e da banalidade. Porque a melhor forma que encontrou, no termo da sua obra, para aceitar o sofrimento de viver foi voltar a considerá-lo e apresentá-lo como normal e como banal. A tristeza, a solidão e a morte só serão toleráveis assim que se nos tornarem familiares de forma mental e concreta. É mais ou menos este o sentido da sua última mensagem.
"BIBLIO: argumento e diálogos publicados em volume pelas Publications orientalistes de France, 1986."
Até Quinta-Feira!
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