por Carlos Melo Ferreira
MELANCOLIA
Um Leão que morre/não morre, um Leão cabo-verdiano atrás de quem vai uma Mariana, enfermeira (Inês de Medeiros), de Lisboa para as ilhas de Cabo-Verde.
Desconhecedora das estórias locais, dos enredos tecidos entre as pessoas, brancas e negras, Mariana vai progressivamente acedendo ao conhecimento do que antes apenas entrevira da vida: fogo e cinzas.
Este, penso, o primeiro grande mérito de Pedro Costa, nesta sua segunda longa-metragem: identificar-nos com a protagonista que, chegada a um local que desconhece, aos poucos vai entrando no meio, num percurso feito de descobertas, frequentemente dolorosas.
No entanto, se fosse só isso, apesar de tudo, demasiado fácil, demasiado convencional. Com grande sageza, o cineasta faz com que, a partir da recuperação de Leão, tudo se volta a baralhar de novo, tornando difuso, incerto o saber de Mariana, assim devolvida ao mistério da terra e das gentes.
Pedro Costa, que já dera muito boa conta de si no seu primeiro filme, O Sangue, de 1990, volta a surpreender-nos muito agradavelmente, de novo também ao nível da construção cinematográfica.
Voltadas para dentro, para si mesmas, como Leão, as personagens negras e brancas de Casa de Lava, vivem uma insularidade escassamente comunicante com o exterior, de que, todavia, dependem (de onde uns chegam, para onde outros partem).
Deste modo, assume visibilidade uma dupla referência: a do passado, a História a partir de estórias pessoais, desde o tempo da colonização Portuguesa (a memória do campo do Tarrafal), e a do Portugal distante, mito e miragem de um futuro melhor para os elementos da população local.
Também neste aspecto Mariana serve de articulador narrativo, porque ela é, porventura juntamente com Leão, a personagem que sabe sobre Sacavém.
O cineasta assume plenamente, em termos visuais, o fechamento e as adaptações, as mutações das personagens. Por isso transforma Casa de Lava num filme secreto e intimo sobre a memória e o tempo, a partir da ideia, sempre presente, de distância física, de terras do fim do mundo numa ilha, a do Fogo, sobre um vulcão.
Esse trabalho sobre o tempo na narrativa encontra equivalente perfeitamente á altura no espaço sobre o espaço e o tempo em termos visuais.
A geometria dos planos é, neste filme, sempre rigorosamente, definida, dos limites do quadro para as linhas horizontais, verticais e diagonais que atravessam o plano. Em profundidade as personagens movem-se como se sugadas por uma vertigem de espaço-tempo, que é também ela vulcânica e que os movimentos laterais no plano não anulam.
O tempo de cada plano, que tinha sido das coisas mais surpreendentes de O Sangue, volta a surgir como tradução de uma duração interior para as personagens, que se transfere para o espectador. Os planos mais longos duram o que precisam de durar, e a transição de um plano para o outro, por contraste ou por semelhança, é feita por uma montagem estruturante que, por isso mesmo, assume a função de articulador fílmico central.
Mas nesse espaço e nesse tempo fílmicos sente-se, para além do mais, o ser físico, carnal, como o ser interior, fantomático das personagens, o que confere ao filme uma vibração peculiar, singularmente emotiva.
Se Pedro Costa se sai bem deste filme é também porque nele lida com muito acerto com os actores. Em especial o seu trabalho com Inês de Medeiros chega, por fulgurações sucessivas, a atingir o sublime, e, à medida que o filme se aproxima do seu termo, o rosto dela, sem deixar de ser o seu, como que reflecte ou revela rostos femininos dos que mais marcaram a História do Cinema (Anna Magnani, Ingrid Bergman, entre outras, nos filmes de Rosselini, nomeadamente – por demasiado literal, a citação chega a ser excessiva…). Mérito de Inês? Sem dúvida. Mas também, seguramente, mérito de Pedro.
Com este Pedro e esta Inês, juntamente com outros e outras que andam por aí à solta, talvez seja mais que uma lufada de ar fresco que atravessa hoje o cinema Português.
in «Cinema» nº 24, Agosto-Outubro de 1995
Sem comentários:
Enviar um comentário