sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Bronenosets Potemkin (1925) de Serguei Eisenstein



por Serguei Eisenstein

«Sem Orson Welles não se pode compreender o primeiro século do cinema nem o cinema enquanto arte maior, de que ele foi, com Sergei Eisenstein, o maior génio, a que apenas Fritz Lang, Friedrich Murnau, Alfred Hitchcock e Jean Renoir podem ser comparados. Influenciados por ele, Stanley Kubrick e Alain Resnais, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese foram os seus principais continuadores.» 

Carlos Melo Ferreira

“O COURAÇADO POTEMKINE”. Do ecrã para a vida. 

Todos os fenómenos têm uma manifestação casual, superficial. E subjacente a isso está um sentimento profundo que ditou a razão. Também foi assim com Potemkine. Eu e Agadzahanova-Shutko[1] concebemos um grande épico, "1905", na preparação para o vigésimo aniversário de 1905; o episódio do motim do couraçado “Potemkine” era para ter sido apenas um dos muitos episódios desse ano de luta revolucionária.

Os “eventos casuais” começaram. O trabalho preparatório da Comissão do Aniversário arrastou-se. Por fim, houveram complicações com as rodagens do filme como um todo. Chegou Agosto, e o aniversário era em Dezembro. Só havia uma coisa a fazer: escolher um episódio do épico inteiro que encapsulasse o sentido integral, o sentimento desse ano notável.

Outro acaso fugaz. Em Setembro, só se podem filmar exteriores em Odessa e Sevastopol. O motim do “Potemkine” passou-se em Odessa e Sevastopol. Mas depois veio algo predeterminado: o episódio do motim no “Potemkine”, um episódio a que Vladimir Ilyich tinha destacado atenção especial anteriormente, também era um dos episódios mais representativos do ano inteiro. É curioso lembrar agora que este episódio histórico tinha sido mais ou menos esquecido: onde e sempre que conversávamos sobre o motim na Frota do Mar Negro, ouvíamos imediatamente falar do Tenente Schmidt, e do “Ochakov”[2]. O motim do “Potemkine” tinha sido apagado da memória, de alguma forma. Era menos memorável. Menos falado. Portanto era ainda mais importante ressuscitá-lo outra vez, focar a atenção sobre ele, lembrar as pessoas deste episódio que encarnava tantos elementos instrutivos da técnica de insurreição revolucionária, típica do período de um “ensaio geral para Outubro”. 

Mas o episódio tinha mesmo a ressonância de quase todos os motivos característicos desse grande ano. O triunfo na escadaria de Odessa e a retaliação bestial encontram o seu eco a 9 de Janeiro. A recusa em disparar sobre os seus "irmãos"; o esquadrão a deixar passar o couraçado amotinado; o estado de espírito de solidariedade geral que se apoderou de toda a gente – tudo isto foi repetido em inúmeros episódios por todo o Império Russo durante esse ano, comunicando o tremor das suas fundações.

Falta um episódio ao filme – a última viagem do “Potemkine”, para Constança[3]. Este foi o episódio que chamou a atenção do mundo inteiro para o “Potemkine” em particular. Mas esse episódio decorreu para além dos limites do filme; decorreu no destino do próprio filme, nessa viagem através dos países capitalistas que nós achamos tão pouco amigáveis e que o filme viveu para ver.

Os criadores do filme desfrutaram da maior das satisfações que o trabalho numa tela revolucionária histórica pode conferir, quando os eventos no ecrã são transferidos para a vida. O motim heróico no couraçado holandês “Zeven Provinziën”, onde os marinheiros que participaram no motim mostraram que tinham todos visto Potemkine, o filme – é isso que eu quero lembrar agora[4].

Os couraçados a ferver com o mesmo ardor revolucionário, o mesmo ódio pelo poder explorador, a mesma malícia mortal para com aqueles que, ao armar-se a si próprios, não clamam pela paz, mas por mais chacina, por uma nova guerra. O maior mal, cujo nome é Fascismo. E eu quero mesmo acreditar que, dada a ordem do Fascismo para invadir a terra-mãe socialista dos trabalhadores do mundo, os seus couraçados e super-couraçados de ferro responderão com uma recusa idêntica em disparar; a resposta deles não será o fogo das armas mas o fogo do motim, como reagiram os grandes heróis da luta revolucionária – nomeadamente o “Príncipe Potemkine de Táurida”, há trinta anos, e a gloriosa embarcação holandesa “Zeven Provinziën”, mesmo à frente dos nossos olhos.

[1] Nina F. Agadzhanova-Shutko (1889-1974) escreveu o guião para O Couraçado Potemkine. Foi originalmente concebido como um dos episódios de um ciclo de filmes que lidava com toda uma gama de acontecimentos do “Ano de 1905”, um dos filmes encomendados a Goskino pela Comissão do Aniversário estabelecida para supervisionar a celebração do vigésimo aniversário do chamado “ano revolucionário” de 1905. No final, Potemkine foi a única parte que se completou e lançou deste ciclo. (nota de Richard Taylor)
[2] O tenente Peter P. Schmidr (1867-1906) foi um dos líderes do motim de Sevastopol em 1905. Tinha ajudado anteriormente a formar a Sociedade de Ajuda Mútua dos Marinheiros Mercantes de Odessa, uma das primeiras organizações laborais na frota russa. A 20 de Outubro de 1905 foi preso pelas autoridades por falar num encontro político em Sevastopol, no qual foi imediatamente eleito membro vitalício dos representantes do Soviete dos Trabalhadores de Sevastopol. Foi libertado a 3 de Novembro e, quatro dias mais tarde, permitido a reformar-se com o grau de Capitão de Segunda Classe. A 14 de Novembro embarcou no cruzador "Ochakov" e levantou a bandeira vermelha; no dia seguinte voltou a ser preso. Foi condenado à morte no seu julgamento de Fevereiro de 1906 e executado a 6 de Março com outros líderes do motim. (R.T)
[3] Incapaz de se reabastecer de combustível e mantimentos, a tripulação do “Príncipe Potemkine de Táurida” navegou para o porto de Constança, na Roménia, para onde foram a terra a 25 de Junho de 1905. (R.T.)
[4] O motim no navio de guerra holandês “De Zeven Provinciën” aconteceu em 1933; ver J. C. H. Blom, De muiterij op De Zeven Provinciën [O Motim no “Zeven Provinciën”] (2ª edição, Ultrecht, 1983); e G. J. A. Raven e N. A. M. Rodger (editores), Navies and Armies. The Anglo-Dutch Relationship in War and Peace, 1688-1988 (Edinburgo, 1990), pp. 98, 101, 109. (R.T.)

in «Sergei Eisenstein - Selected Works. Volume III - Writings, 1934-1947» (editado por Richard Taylor)
publicado originalmente in «Komsomolskaya gazeta», 27 de Junho de 1935
Tradução: João Palhares

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