segunda-feira, 2 de março de 2020

UM CINEMA DE VERDADE

Linguagem cinematográfica: o jogo das múltiplas condicionantes 

Existem diversas condicionantes práticas e muito concretas que delimitam e condicionam o uso das ferramentas e dos instrumentos do cinema. A experiência é uma delas, embora ache que nada impede alguém sem grande experiência de fazer um filme. Mas conhecer a História do Cinema, conhecer os meios técnicos com que se trabalha (quer se trate de suportes digitais ou película, material de som), ter noções de montagem, saber o que é um plano, e o que é um plano colado com outro, o que é que isso proporciona, são tudo conhecimentos que funcionam eventualmente como mais-valias. A relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme. A relação com o produtor, por exemplo, pode imediatamente fechar um bocadinho aquilo que o realizador idealizou, porque é nesta relação que se evidenciam as questões que têm a ver com meios de produção, onde se decide o nível de disponibilidade para a persistência, para ir mais fundo num determinado assunto. Mesmo o momento e o modo da difusão e exibição podem condicionar o trabalho de fazer um filme. Rapidamente o realizador se vai apercebendo que existe uma série de condicionantes que limitam aquilo que inicialmente pretendia fazer. Mas claro que também pode surgir o contrário, que é ter momentos mágicos em que aparece uma coisa inesperada e que realmente dá outra força ao filme. 

Tudo isto se convoca e altera no momento em que se filma, e está dependente daquilo que cada um escolhe como assunto a tratar (em documentário ou ficção). Se se pretende filmar um determinado acontecimento ou um episódio, ou se se quer ir filmar uma fachada de um prédio e o passar do tempo sobre essa fachada, a linguagem cinematográfica é convocada de maneira totalmente diferente. Ao mesmo tempo, se a 10 realizadores diferentes fosse dado o mesmo tema, e se eles nunca se encontrassem, provavelmente resultariam 10 filmes completamente diferentes. São coisas muito difíceis de definir. 

O jogo das condicionantes aplicado a um caso concreto: o documentário e a televisão 

No caso do documentário há um assunto que acho importante discutir a este nível: o facto de hoje em dia, para mim, ele estar demasiado formatado a modelos televisivos. Como tem pouca divulgação comercial e no cinema, os canais televisivos são a sua possibilidade de divulgação. E esses canais impõem certas regras, que podem ter a ver com a duração do filme, com formatos, até mesmo com a escolha do próprio suporte, que condicionam a realização do filme. Mesmo os próprios assuntos: os canais televisivos interessam-se talvez muito mais por coisas da actualidade, ou com contornos mais sociológicos. Lembro-me por exemplo de ter assistido a certas sessões de pitchings onde era óbvio que alguns projectos eram barrados porque não eram interessantes no contexto actual, do ponto de vista das televisões que a este nível funcionam como centros decisórios. 

Eu percebo que realmente se calhar não é possível toda a gente estar a filmar, mas acho que deste modo também se limitam em excesso algumas coisas que aparentemente podem não ser importantes num determinado momento, mas que um dia poderão vir a ser. O próprio filme considerado sem “interesse” – porque não é pertinente, ou actual – pode ser bem mais interessante em termos cinematográficos, do que aquele que se achou importante produzir, mas que nada tem de cinema. Acho que no documentário isto às vezes é um pouco confuso. Há muitas coisas tomadas como documentários que mais se parecem com reportagens ou com os antigos jornais de actualidades, que não têm um cunho daquilo que, na minha opinião, deveria ser o documentário cinematográfico. 

Mas acho que isto não se passa só ao nível do documentário, acontece também na ficção: há produtos que se percebe que são de televisão. E são feitos até com imensa qualidade, e têm méritos, mas são coisas de consumo imediato. São entretenimento, e terão o seu valor por isso mesmo, mas também não são mais do que isso. Não entram na categoria da obra de arte. 

O ponto de partida, ou de como os filmes se vão transformando 

Também não sei até que ponto é que realizadores ou filmes que pelo menos a partir de certa altura começaram a ser considerados obras de arte foram pensados para ser isso mesmo. Talvez fossem somente uma vontade de contar uma história através do cinema sem qualquer outra pretensão para além dessa. Há muitas coisas que podem não partir do realizador, e acabarem por se tornar grandes obras, e falo de encomendas, ou filmes feitos dentro de contratos com produtoras. De repente no meio disso pode aparecer um filme genial porque o realizador trabalhou como trabalharia nos outros filmes, acabando por catapultar o trabalho para a zona, digamos, da obra de arte, deixando o lado de entretenimento. Um filme como o Zidane, por exemplo, para mim é uma coisa que realmente só tem a ver com televisão. Mas acaba por ser um produto muito fora do vulgar. Aquilo é feito um pouco como se fosse um jogo de futebol só que em vez de estar a acompanhar a bola, se está sempre em cima de um determinado jogador, e com isso apercebemo-nos de que grande parte de um jogo é passado a olhar, à espera (mesmo eu, que gosto de futebol, e jogo ainda às vezes, não me tinha apercebido disto). Trata-se de um processo televisivo, embora consiga identificar raízes cinematográficas, como os filmes da Leni Riefensthalt, com a utilização de uma panóplia de câmaras para filmar um determinado objecto. E isto traz um outro problema que é o da classificação. Realmente, qual é o espaço daquele filme? Para mim é até muito curioso, porque trabalhando no ANIM, para catalogar o material, tenho que tomar decisões. Onde é que se põem certos objectos que são, como este, mais fora do comum? Julgo que mesmo na área do documentário há uma série de coisas muito diferentes. E por uma facilidade de linguagem há tendência para catalogar as coisas: é o western, um filme de aventuras, um melodrama, um thriller; um certo documentário é cinéma-vérité... mas para mim, o que eu acho mais interessante é ver o contrário dessa classificação, ou seja, conseguir ver que todos os filmes têm um carácter documental. 

Entre a ficção e o documentário: o filme e a sua época 

Por um lado não acredito no cinema como uma coisa da verdade. É sempre uma coisa da encenação. Ao colocar a câmara num certo sítio já estou a delimitar. Não acredito no “cinema-verdade”, não acredito que as coisas acontecem e nós estamos a captar o real. Acho que nunca é bem o real. Mesmo que atirasse uma câmara ao ar, e donde ela caísse filmava, mesmo isso implica uma acção, quer dizer, não é a vida em si. Por outro lado mesmo os filmes que estão no tal campo do entretenimento, para mim documentam a sua época. Mesmo aquilo que está ultra-encenado acaba por transmitir qualquer coisa de uma época e eu acabo por encontrar a arquitectura de uma cidade, ou por ver a maneira como as pessoas se vestem, os costumes, certas tradições, o que é que comem, e portanto, mesmo que aquilo seja tudo encenado, também há um lado que não está a fugir completamente ao real. Mesmo as coisas mais mirabolantes do cinema fantástico estão contaminadas pelo real. Tal como o oposto, ou seja, no documentário, para mim a colocação da câmara num sítio já está a deturpar esse real. E a própria película está a passar por um lado químico, no mínimo, que já vai refractar a realidade (mesmo nós, a nossa visão, ou os sentidos em si não nos possibilitam captar tudo). Por enquanto as ficções que fiz são muito centradas em Lisboa, para deixar alguma coisa do tempo em que estou a filmar a própria cidade. E isso é deliberado. Mas nem sequer obedeço à geografia da cidade. Na última ficção que fiz havia um personagem que saia de Alfama, e já estava no Lumiar a apanhar o Metro para ir para Caselas onde não há Metro. Tento transformar a cidade num cenário. E não me interessa obedecer ao seu lado realista nesse aspecto, interessa-me sim que esse pedaço de Alfama, do Lumiar ou de Caselas, um dia seja reconhecido por alguém que possa assim ver como eram as casas desses bairros. Ou seja, em vez de estar sempre a filmar o mesmo bairro, prefiro mostrar coisas diferentes. Do mesmo modo, nos documentários eu assumo que tudo está a ser um bocado encenado, não quero dizer que aquilo é a verdade de qualquer coisa. 

Em termos de documentário, fiz sobretudo biografias, ou coisas em que usei materiais de arquivo. Portanto, não tenho o tipo de relação com as coisas que tem a maioria dos documentaristas portugueses. Coisas como a análise do bairro não sei quê, ou a comunidade tal que vive não sei onde... acho óptimo que se façam esses filmes, mas como eu acho que já há pessoas a trabalhar sobre isso, e que é o que lhes interessa, eu tento explorar outras coisas que a mim me interessam, mesmo que não sejam coisas tão obedientes aos cânones do documentário, mas que fiquem eventualmente como retrato de uma época. 

Nas biografias do José Cardoso Pires ou do Pinho Vargas tratei uma época da vida deles, e não fugi a isso, mas nos outros servi-me muito de material de arquivo, e neste que estou a fazer agora, e que é talvez o mais “livre”, a minha ideia é contaminá-lo com uma série de coisas que lhe trazem um lado mais artificial. Ou seja, vou tentar jogar com efeitos de encadeados e sobreposição de imagens, pôr imagens fotográficas e fílmicas de arquivo e sons, fugindo a esse lado, digamos, mais verdadeiro do documentário que realmente não é a coisa que eu acho mais interessante. 

Um percurso de experimentação e recolha. 

Eu comecei por trabalhar em ficções. E acabei por fazer documentários um pouco por ter tido um problema com um dos meus filmes. E grande parte dos filmes que fiz até hoje passam por ser propostas, quando não encomendas mesmo, que não partiram de mim. E o que para mim acabou por ser interessante é que, através de filmes cujo assunto não me interessava tanto, consegui ter a possibilidade de experimentar certas coisas. Quer seja em termos técnicos, quer, como no caso das ficções, em termos de direcção de actores. 

Portanto, muitas das coisas que aceitei fazer, fiz porque me agradava experimentar uma certa coisa. Nunca me interessou realmente ter um contrato com uma produtora, e fazer por exemplo publicidade, ou trabalhar para um canal televisivo, e se calhar posso viver pior, mas sinto-me mais à vontade com os filmes, e com as pessoas com quem trabalho. Tenho mais liberdade para experimentar. 

Por outro lado nunca fiz um filme de 2 horas, não arrisquei nesse sentido. Mas guardo aquilo que faço, fico com os materiais do que filmo e às vezes capto coisas que sei que não vão ser usadas naquele trabalho específico, só para ficar com elas. Por exemplo, no documentário em que estou agora a trabalhar era óbvio que não ia poder fazer um filme com aquele material todo. Mas isso não me impediu de filmar e de experimentar coisas que me interessavam mesmo sabendo que não ia usá-las na montagem. 

Quase todos os dias tenho a possibilidade de ver mais um filme que não conhecia, no meu trabalho no ANIM. E como os vejo muitas vezes, acabo por comparar os materiais todos, de cada filme. Às vezes é um bom pincel... mas como gosto de fazer aquilo. Mesmo quando acho os filmes bastante fraquinhos, tento ver as qualidades que podem ter. A cada visionamento do filme tento aperceber-me de mais qualquer coisa. O que, para mim, acaba por ter alguma graça: reparar nos tiques de certos actores, ou perceber porque é que um realizador decidiu cortar num certo ponto. É uma grande vantagem quando quero trabalhar numa coisa minha, e quero recorrer a material de arquivo. É muito bom já ter um conhecimento razoável e ter já clara a hipótese de utilização de certas imagens, quando estou a pensar num projecto. 

Há uma grande vantagem em ter alguma familiaridade com os filmes portugueses. Estar perto deles e poder vê-los. Para além disso, gosto de poder continuar a surpreender-me, e a encontrar coisas novas nos filmes que vou vendo ou revendo. Por exemplo, hoje vi o filme que estou a trabalhar neste momento, e que nunca tinha visto, chamado Perdeu-se o Marido. É um filme de ’57, uma comédia banalíssima. Tem alguns momentos engraçados, graças aos actores, mas o que me surpreendeu bastante ao vê-lo foi o haver uma série de imagens – que eu não fazia ideia – de exteriores de Lisboa. E surpreendeu-me porque não era muito habitual na época filmar-se em exterior (e o filme de facto é praticamente todo feito em interior). Mas pude ver por exemplo a Baixa, e que era um pouco a Baixa que eu conheci quando era miúdo, com muitas lojas e cafés. Ou o Hospital de Santa Maria que deveria ter sido inaugurado próximo daquela época, ainda sem nada à volta, uma coisa no meio do descampado. Há assim esse tipo de coisas que ainda me animam e me entusiasmam nestas coisas. Confesso que não acho o cinema português nada excepcional, mas acabo por poder encontrar, mesmo em filmes que eu não acho particularmente bem conseguidos, pequenos pontos de interesse. Seja porque têm momentos em que apanham a arquitectura da época ou certas tradições, certos costumes, certos usos, e isso eu acho muito interessante. 

Processo de trabalho: a preparação e o improviso

Em Portugal estamos muito condicionados ao subsídio do Instituto, temos que apresentar as coisas de uma determinada maneira. E há logo bastantes diferenças com o que temos de apresentar para os concursos de documentário e de ficção. Nos concursos de ficção é necessário apresentar um argumento, temos que ter uma história contada ali no papel e depois o filme será mais ou menos aquilo que ficou escrito. No documentário isso é sempre um pouco mais aleatório porque às vezes há coisas que dependem de imprevistos. Portanto, eu não vou escrever o que é que um fulano que eventualmente quero entrevistar vai dizer. Sei que quero que ele me responda a certas coisas, mas não sei o que é que ele me vai responder (como nos diálogos de uma ficção). E o facto de termos que entregar estas coisas já é um bocadinho limitativo. Posso ter uma ideia para uma ficção, ter tudo na cabeça e não querer ter nada no papel. Essa era uma experiência que eu gostava de um dia poder fazer: escolher actores, e com a própria equipa, o filme ir-se fazendo. Ter uma ideia mas nada em concreto. Ora, isto é muito complicado, porque ou seria por muita carolice dessas pessoas todas (e depois logo se veria o resultado) ou então logo à partida o produtor – mesmo que fosse eu próprio – considerava tudo aquilo um bocado disparatado, diria que nunca mais íamos sair dali. Era preciso um domínio muito grande das coisas para que elas realmente funcionassem desse modo. Julgo que há realizadores que conseguiram trabalhar sem ter guiões, tinham uma grande confiança nas equipas, e vice-versa, as pessoas com quem trabalhavam tinham também confiança neles. Conseguiram partir assim, um bocado para o vazio. Mas gosto de ter as coisas bem preparadas. Gosto de ter muito tempo para preparar uma coisa e depois poder então improvisar sobre isso. E ser possível eu próprio ficar surpreendido com o que me está a ser dado. De repente ficar arrebatado por uma coisa de que não estou à espera vinda do actor, ou de repente haver uma luz magnífica, ou surgir alguém no écran que eu não contava. Agora, pelo menos nas ficções, temos o video assist, e estamos ali um bocado a controlar as coisas. Mas eu muitas vezes não o ligo. Gosto muito mais de estar a ver. Até porque, como muitas vezes acabo por trabalhar na montagem, acho divertido reparar em coisas que não tinha notado. 

No filme sobre o António Pinho Vargas as coisas estavam bastante marcadas porque ia fazer uma homenagem à obra dele. E então tinha que acompanhar os concertos, e não podia fugir às peças, tinha que respeitar as datas dos concertos. No caso do filme sobre o Cardoso Pires passou-se um bocado o oposto. Primeiro porque ele já estava bastante doente e portanto havia dias em que a equipa estava toda preparada, encontrávamo-nos com ele, e a ele depois não lhe apetecia filmar. A nível de produção foi complicado porque uma coisa que estava para ser feita em 3 semanas acabou por se arrastar por mais de 3 meses de filmagens. Isso levou a que, por exemplo, a fotografia do filme fosse feita entre 5 pessoas. Mas ganhava-se sempre qualquer coisa com isto. Ganhámos tempo para pensar as coisas, e pude ter luzes diferentes do dia (embora não quisesse enfatizar demasiado isso). Se fosse naquelas tais 3 semanas em que estava previsto, era Outono e a luz até não estava má, mas assim ganhei nuances. E o próprio Cardoso Pires estava diferente, ao longo deste tempo. De qualquer forma houve essa liberdade, de não termos que filmar só porque estava previsto, fizemos as coisas sem muita pressão, e as coisas não ficaram excessivamente esquematizadas, e programadas. 

A força de um primeiro impulso 

Quando comecei a trabalhar tinha coisas que fui perdendo, umas para o bem, outras para o mal, acho que é um bocado o que acontece com toda a gente. Perdi um lado mais impulsivo, mais ingénuo, mas ao mesmo tempo de maior risco e empenho. E com o tempo ganha-se outra coisa, mais experiência, mais saber técnico, mas também, eventualmente, mais desilusões, mais amargura e desconfiança. Mas em todos os momentos para mim sempre foi importante haver verdade naquilo que estava a fazer. Partir de uma premissa de verdade para com o que queria fazer. E acho que isso realmente é talvez o mais importante, acreditar-se no que se está a fazer e ser-se verdadeiro. Tentar aprender e conhecer, sem fechar as coisas. Há uma enorme tendência para julgarmos que somos os únicos e que só nós é que fazemos bem, o que é muito falso. Eu acho que é muito importante a força de querer fazer uma coisa. E acreditar que se pode fazer. Portanto, eu acho que o mais importante é a verdade que cada um tem para fazer cinema. 

Na minha trajectória, trabalhei muito sobretudo na área de montagem, e trabalhei com realizadores mais velhos, mais experientes com quem aprendi muita coisa. Mas a partir de certa altura o que eu achei mais interessante foi poder aprender com os novos. Acabei por fazer praticamente só primeiras obras ou projectos não tão poderosos em termos de produção. Acho que foi para poder voltar a sentir essa força e essa vontade que se tem muito no início, e que eu acho fantástica e que infelizmente depois – embora não seja para toda a gente – se acaba por perder um pouco. E apesar da falta de experiência, senti ali um certo não saber que achei e acho interessante. Porque às vezes é por aí que se podem abrir novos caminhos, formas de ver coisas que de outro modo já estão excessivamente estilizadas e marcadas, demasiado rígidas. Eu acho que o que importa é esse lado de força e de verdade para fazer cinema.

retirado do catálogo do Panorama - Mostra do Documentário Português de 2008

Manuel Mozos

Sem comentários:

Enviar um comentário