por João Palhares
Ainda bem que vimos a cópia de trabalho de Xavier em Novembro do ano passado, com as suas cruzes brancas em fundo negro, falhas sonoras e “bips” fugazes, como em sessão de meia-noite. Iluminou-nos em relação ao trabalho épico e hercúleo que Manuel Mozos teve, mesmo que apadrinhado por Paulo Rocha, para poder estrear o seu filme na versão que hoje vamos ver, “ripada” de uma passagem discreta mas muito importante na RTP 2, ainda com o logo em pontinhos brancos (2004-2007), cópia pirata e riscada que viajou de mão em mão até chegar até nós. As rugas são a pintura da sabedoria. Voltamos às trocas de cassetes e mix-tapes entre amigos no ciclo ou no secundário, às recomendações em carne viva seladas com passagens de cópias ou de originais. Voltamos aos anos 90, velados por um filme dessa década mas que só estreou na seguinte, numa cidade em que não foi exibido até quase duas décadas depois disso. O tempo funciona assim, nunca é tarde demais, não há oportunidades perdidas. X Nunca é tarde demais para rever material de uma ponta a outra, esquecer o guião, esquecer a rodagem, e vislumbrar consequências dramáticas inauditas num corte ou numa elipse milagrosos. Nunca é tarde demais para acordar para a vida depois de meses a penar pelas ruas de Lisboa, aprendendo com os erros trágicos dos outros e descobrindo que não se vive enredado em si mesmo ou que não se tem de carregar o peso do mundo às costas. Nunca é tarde demais para ouvir um “Eh pá, não leves a vida tão a sério!” ou ver a campa do zarolho De Toth, que nos interpela ainda em desafio e com um olhar penetrante e imponente do outro lado da vida, “DON'T BE CAREFUL, HAVE FUN. I DID.” Nunca é tarde demais para aprender que “a relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme.” E nunca é tarde demais para pedir uma mão aos amigos e ver se as coisas se resolvem, que isto tarda mas vem, até as estreias tardam mas vêm, os resultados tardam mas vêm. Num ano, em seis ou em onze, mas vêm. X Nos anos 80 e 90, mesmo depois disso, os miúdos também se fechavam em quartos no sétimo céu como o Chico de Charles Farrell, que diz à Diane de Janet Gaynor que “I work in the sewer – but I live near the stars!” Alguns desses se calhar viram o Xavier. Diz Manuel Mozos: “acho que para as pessoas mais novas a vida está complicada. Não que isso seja o principal no filme... No entanto, para mim ou para os meus amigos naquela altura, a realidade é que não sabíamos a que nos agarrar. O futuro era nebuloso. "No future". A maioria avança para qualquer lado, havia uma grande indecisão. Depois trabalhávamos em coisas como tirar fotocópias, descarregar caixas de bagaço, ser paquete de escritórios de advogados. Ou tirar cursos de inglês e de computadores. Mas estávamos motivados para escrever poesia ou fazer música...” Então Xavier, Hipólito, Rosa, Luísa, a irmã Luz e a dança da vida. Podiam ser outros, podem ser de carne e osso. O trabalho, as antenas, o dinheiro, as contas, as multas, os esquemas, a polícia e a choldra. Podem descomprimir disso tudo à noite gritando “TU GOSTAS É DE LEVAR NA PEIDA” ou “BRING ME THE HEAD OF ALFREDO GARCIA” aos golpes de karaté pelos parques de Lisboa, para pôr um sorriso na cara da Luísa de Sandra Faleiro. X Nos últimos meses vimos muita, muita coisa. Vimos mesmo de tudo, filmes e ainda outras coisas, que não são filmes (“Isso não é um filme,” responde Mozos a Miguel Gomes na entrevista publicada no catálogo do Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, «Manuel Mozos – Um Ponto de Vista»), da ficção ao documentário, da colagem de arquivo como puzzle ou como poema, cinema, televisão, videoclips, definição e ruído, estática, saltos, quebras, imagens arrastadas, ondas e vulcões, mares e ruínas, montanhas e becos, cinema falado e cinema mudo, voluntária ou involuntariamente que a projecção e as colunas também falharam, fez tudo parte da experiência, como num concerto antológico a que foram cinco ou seis pessoas e falhou tudo menos o ânimo, a resiliência e a paixão (“este Mozos é fabuloso, pá!” – Carlos Fontes, 2019), vimos parte substancial da obra completa de um cineasta que não teve receio algum das páginas brancas e abraçou a imprevisibilidade da vida e do trabalho, na vida e no trabalho, como um contratado muito inspirado e muito modesto da Poverty Row, Manuel Augusto Fernandez de los Mozos: Um Passo, Outro Passo e Depois... (1989, 60'); Xavier (1991-2002, 101'); Lisboa no Cinema – Um Ponto de Vista (1994, 55'); Solitarium (1996, 4'40''); Cinema Português ? (1996, 58'); José Cardoso Pires – Diário de Bordo (1998, 57'); Os Tristes Anos: 1945-1960 (1998, 59'); ...Quando Troveja (1999, 89'); Cinema – Alguns Cortes: Censura (1999, 70'); Crescei e Multiplicai-vos (2000, 15'); Erupção (2001, 28'); António Pinho Vargas – Notas de um Compositor (2002, 52'); Sobre o Mar (2003, 27'); Olhar o Cinema Português 1896-2006 (2006, 54'); Diva: Simplesmente uma Homenagem (2007, 48'); 4 Copas (2008, 104'); Aldina Duarte – Princesa Prometida (2009, 60'); Ruínas (2009, 60'); Tóbis Portuguesa (2010, co-realizado com Pedro Efe, 45'); Angelitos Negros (2010, 15'); Imagens do Bairro de Alvalade (2013, 27'); Cinema – Alguns Cortes: Censura II (2014, 39'); Cinema – Alguns Cortes: Censura III (2014, 46'); João Bénard da Costa – Outros Amarão as Coisas que eu Amei (2014, 75'); Cinzas e Brasas (2015, 21'); A Glória de Fazer Cinema em Portugal (2015, 16'); Ramiro (2017, 99'); Sophia, na Primeira Pessoa (2019).
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