por Miguel Gomes
Adaptado de um conto homónimo de Urbano Tavares Rodrigues, Crescei e Multiplicai-vos é a única curta-metragem ficcional de Manuel Mozos à data. A matriz neo-realista do texto original, uma abordagem mais complexa de um caso de incesto entre dois irmãos adolescentes num ambiente socio-económico degradado, é transposta para o filme com uma visível resistência do cineasta. De algum modo, essa é simultaneamente a força e a fraqueza do filme. Mozos não acredita nesta ficção e manifesta-o de uma forma tão ostensiva que a validade do projecto fica remetida à resposta de uma questão que só o espectador pode dar: será consequente tentar respeitar as linhas gerais do conto num argumento cinematográfico e, depois, filmar contra o próprio argumento?
A uma primeira visão, estamos apenas perante uma péssima ilustração de uma narrativa extremamente simples. Planos gerais do bairro da Musgueira introduzem-nos o espaço (físico e social), depois é apresentado o casal (nesta versão não tão jovem como no conto) que se desloca à igreja, seguido do encontro com o padre que enuncia o conflito dramático – pretendem-se casar mas o padre compreende que se tratam de irmãos e, chocado, não o consente. O final é deixado em suspenso, com o percurso do padre pelo interior do bairro até se aproximar da casa dos irmãos e levantar os olhos para o céu. Ora, esta é uma péssima ilustração porque segundo os parâmetros convencionais de qualquer teledramático que se preze, falta a espessura psicológica às personagens, sente-se uma rigidez extrema na interpretação dos actores e na planificação do filme e ainda, para culminar, regista-se um emprego absurdo da música que oferece um complemento extra de ridículo à ficção. E, se nos ficássemos por aqui, não restariam dúvidas que Crescei e Multiplicai-vos se tratava de um indesmentível “turkey”, momento de absoluta inépcia cinematográfica.
Se fosse o primeiro filme realizado por Manuel Mozos, certamente o ia colocar em apuros. Como não é, e já não pode existir inocência possível para quem conhecer a obra anterior, passamos directamente para um segundo nível de leitura, mais crível embora não menos tortuoso. E se Crescei e Multiplicai-vos fosse um pequeno apontamento paródico de releitura das convenções dos telefilmes e seriados televisivos de âmbito social? Então, teriam que se inverter as premissas de análise, revertendo o que julgávamos simplesmente ridículo numa (masoquista, é certo) experimentação de humor “trash”. Por exemplo, a apresentação da menina atirando a flor em direcção ao céu surgiria como paródia aos mais descabelados genéricos de telenovelas mexicanas. E a rigidez dos corpos dos actores imitada pelo próprio dispositivo formal, alternando primariamente planos do casal e do padre à medida que cada um fala, desmonta-se através da exposição da sua auto-consciência, algures entre Manoel de Oliveira (não estaremos muito longe de algumas cenas de Party) e Takeshi Kitano. Trata-se de uma rigidez de filme burlesco, essa mesmo que sempre explorou a desadequação entre os corpos e o mundo, entre as personagens e a ficção. No fundo, estas personagens paralisadas não estão distantes das várias estátuas que pontuam em fundo na igreja ou da gravura do Cristo na casa dos irmãos. A rigidez das leis – humanas ou divinas – fica assim paradoxalmente bem mais posta em causa do que se tivesse havido um tratamento tradicional e conforme da narrativa.
Trata-se, contudo, de um jogo perigoso, este com que Manuel Mozos se diverte e pune simultaneamente. Por um lado porque está no limite da auto-complacência, é um exercício de estilo malandreco a brincar às escondidas consigo próprio. Por outro, porque estará sempre a meio caminho entre a primeira e a segunda leitura – mesmo que o autor mantenha que esta é uma versão provisória, destinada a passagem televisiva –, é um filme que habita um desconfortável limbo entre o embaraço e a provocação, o respeito e a irrisão, os arremedos de (má) consciência e o desejo de frivolidade.
in «Manuel Mozos - Um Ponto de Vista», Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2001
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