terça-feira, 10 de março de 2020

Sophia, na Primeira Pessoa (2019) de Manuel Mozos



por Joana Emídio Marques

A libertação de Sophia num documentário de Manuel Mozos 

Na reta final das comemorações do centenário da poeta surge o melhor e mais vivo objeto que esta maratona produziu: chama-se "Sophia, na Primeira Pessoa" e é um documentário de Manuel Mozos. 

O mar com que entramos nesta espécie de biografia poética de Sophia não é azul. É negro, largo e traz promessas sombrias. A luz será sempre filtrada por arestas de rochedos, árvores, nuvens. O Douro é negro também e de uma fonte decrépita corre apenas um fio de água. Atravessando as imagens, as eras e todo o cortejo de mortos ouve-se a voz da poeta: “em todos os jardins hei-de flor”. É promessa, mas também afirmação. Até nos lugares mais desérticos, mais inférteis ela há-de ter a sua voz, a sua palavra, ela há-de ser aquilo que nenhum discurso académico, teórico, museológico, grandiloquente poderá apreender ou determinar. Sobre si mesma, a ultima palavra será sempre a dela.

É assim, imensamente livre, viva, inteligente mas sombria e solitária que Sophia de Mello Breyner nos aparece neste documentário de Manuel Mozos todo feito com materiais de arquivo (fotos, cartas, velhas gravações de rádio e televisão, restos de outros filmes guardados no Anime) e que, neste ano de comemorações, o primeiro (talvez o único) gesto poético digno de uma poeta que nunca se cansou de falar de liberdade. Sophia, na Primeira Pessoa, teve estreia esta sexta-feira no DocLisboa, numa sessão apenas para escolas. Volta a passar um única vez no domingo, 27 de outubro, no cinema São Jorge, pelas, 16 horas. 

“Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real, um poema sempre foi um círculo traçado à roda de uma coisa. Um círculo dentro do qual o pássaro do real fica preso”, ouve-se explicar a poeta. A sua voz, as suas palavras; as recordações da criada Laura que lhe ensinou a Nau Catrineta, do avô que lhe lia sonetos de Camões e Antero, das muitas casas onde habitou, da asfixia da cidade, da sua relação com Homero, da poesia, dos segredos do mar que só os pescadores lhe ensinaram… A voz humana, a sonoridade de uma língua trabalhada para esticar para o infinito os seus limites, trabalhada para designar o que ainda não tem nome eis a grande linha de força deste filme que é também um gesto de liberdade e um exercício crítico prenhe e instigante de Manuel Mozos. 

Este documentário de escassos 56 minutos não se deixa levar pelo caudal de discursos académicos, oficiais que foram sendo proferidos ao longo deste ano e dos quais pouco ou nada ficará para a história. 
“Não queria fazer uma coisa definitiva mas dar pistas, criar no público o interesse em descobrir mais sobre a poeta, a mulher, a pessoa de causas. Por mim, o que fui lendo levou- me a perceber que esse lado solar de que tanto falam não corresponde à verdade, porque havia nela e naquilo que ela escrevia um lado de violência, de fantasmagoria, de pesadelo. Por muito cheia que fosse a sua vida há nela um lado sombrio, uma grande solidão que estão presentes nos seus poemas. Era uma pessoa muito contraditória e foram essas contradições que me interessou explorar”, diz o realizador, em conversa com o Observador. 
“Um dia mortos e gastos voltaremos a ser livres como os animais”, diz-nos o poema que ela recita com uma entoação que nos causa estranheza porque é declamatória. Mas é também um prodígio da articulação limpa das palavras, das sílabas. Como se Sophia quisesse chegar à mais ínfima tonalidade dos fonemas. Cada palavra é gerada para ser dita e é nessa musica efémera das palavras faladas e não escritas que se engendra a poesia. E aí, novamente Manuel Mozos releva uma grande sensibilidade ao deixar que seja a palavra falada a dominar o filme. Podemos esquecer-nos que um dia ela fixou tudo isto em livros e os livros parecem-nos, vistos daqui, apenas cemitérios mudos. 

Depois da morte da poeta em 2004, foram sendo produzidas dezenas de trabalhos, debitadas centenas de palavras, de opiniões, comentários, encómios. Criou-se uma outra Sophia cada vez mais distorcida e distante daquela que um dia viveu, escreveu e pensou. Torna-se e retorna-se aos lugares comuns: a Grécia, o sol, o mar, o branco e o azul. Há uma espécie de acordo tácito em fazer de Sophia uma poeta pueril e fácil. Mas, na verdade, Homero nunca designou a cor azul, porque os gregos não tinham nome para esta tonalidade. O mar de Homero é sempre negro ou cor de vinho. O mundo grego é terrível e cruel, a musa ensina-lhe o canto que, no final, lhe “corta a garganta”. 

O grande espanto que nos causa este documentário é vermos como de entre congressos e panteões, tudo o que fazia falta a Sophia era que alguém a libertasse, lhe devolvesse a voz. O documentário de Mozos não recorre a nenhuma outra voz que não a da artista. Não há comentadores, especialistas, filhos, amigos. Não há ninguém a não ser ela: “Quem procura uma relação justa com o homem (…) é necessariamente levado a buscar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo”, ouvimo-la dizer, enquanto as praias do Algarve, onde ela tanto nadou, não são um bilhete postal, mas um lugar de faina, onde homens de rosto duro e curtido pelo sol se lançam ao trabalho. 

O filme que resultou de uma encomenda da RTP e da Comissão das Comemorações do Centenário de Sophia teve um orçamento limitado, como nos explica o realizador, mas esses limites foram usados para potenciar o trabalho. Assim, conta-nos Mozos: 
“Não fui filmar à Grécia, nem sequer ao Algarve, recorri a imagens que havia em arquivo, imagens não usadas de outros filmes que os realizadores gentilmente me cederam e dei-lhes uma nova vida”. 
O arquivismo é uma das fontes recorrentes de Mozos que, além de cineasta é arquivista no ANIM (Arquivo Nacional de Imagens em Movimento). ” No arquivo há coisas que têm uma vida obscura, coisas que não foram conhecidas ou foram esquecidas, apagadas, e eu gosto de trazê-las à luz”, afirma. Uma das preciosidades que encontrou no ANIM foi uma longa entrevista a Sophia feita pelo também poeta Fernando Assis Pacheco. Essa conversa nunca antes divulgada acaba por servir como fio condutor do filme. A escritora fala da sua infância e de sentir que “foi a poesia” que a criou. Vemos desfilar rostos antigos, quase todos de mortos, postais, cartas, bilhetes tudo grafado manualmente. O arquivo faz retornar esse passado que é tudo o que temos, fá-lo encontrar-se com o nosso presente para reclamar uma vida própria. Sem ele, sem aquilo que sobra da experiência dos dias, nada seria possível de criar. 

“Nada me consolará que Jorge de Sena tenha passado estes últimos anos longe de Portugal…” confessa Sophia, com uma voz já endurecida pelo tempo. Com esta frase, Manuel Mozos faz duas coisas: uma homenagem simples e subtil a Jorge de Sena, cujo centenário também se assinala este ano, e o facto de que esta data tem passado ao lado e ao longe dos discursos oficiais. 

“Hesitei em colocar este excerto” diz o realizador, “mas entre outras coisas houve uma grande amizade entre eles e eu queria também prestar uma pequena homenagem a Sena”. De facto, Sena continua a não habitar em Portugal, não obstante a sua obra poética, ficcional e estatística e poucos parecem reconhecê-lo como Sophia o reconheceu. De resto, o país é sempre uma fonte de desapontamento para a poeta. O documentário que nos dá a ver as várias idades da mulher e da poeta também nos deixa ver a sua progressiva desilusão com aquilo que ela chama de “manipulação, oportunismo e demagogia” dos partidos políticos que tomaram conta de Portugal depois do 25 de Abril. Quem não se cansa de repetir o poema sobre o “dia inicial e limpo” deveria ouvir o que ela dirá anos mais tarde. 

Há uma melancolia, uma perda irreversível que atravessam os filmes de Manuel Mozos e este não é exceção. Digamos que são duas melancolias que se encontram sob a luz velada das tílias (de que a poeta tanto gostava) e do tempo dentro e fora das casas. A casa é uma imagem e um tema recorrente para os dois artistas. A dada altura ouvimos a poeta dizer que um exterior das casas “é tão importante como o interior” porque ela precisa de ir à janela. E muitas vezes esta obra se debruça sobre janelas invisíveis para ver a cidade ensolarada, mas na qual Sophia sofria por não ver o mar, nem “o mudar das luas”. Aqui não há a luz do meio-dia mas sempre a do alvorecer ou do sol posto, Manuel Mozos rasgou nestes dias uma janela para Sophia respirar de novo, ela que um dia escreveu: “Ressurgiremos onde as palavras são o nome das coisas”. 

in jornal Observador, 26 de Outubro de 2019

Sem comentários:

Enviar um comentário