por António Cruz Mendes
“Não creio que Cristo seja filho de Deus porque não sou crente. Mas creio que Cristo é divino: creio que nele a humanidade é tão alta, rigorosa e ideal que vai para além dos termos comuns da humanidade”, disse Pasolini.
Este filme, dedicado ao Papa João XXIII, “lança um olhar moderno sobre a palavra de Cristo, inscrevendo-a numa paisagem intemporal que tanto se refere ao passado como ao presente, com um Cristo reivindicativo, quase duro. Se em Accattone e Mamma Roma, Pasolini sacralizou os subproletários, no Vangelo talvez tenha feito de Cristo um porta-voz dos danados da Terra” (Cinemateca Portuguesa).
Nele, impressiona-nos, desde logo, o rigoroso realismo. Os actores não são profissionais e, em algumas cenas, e o recurso à câmara subjectiva oferece-nos a perspectiva das pessoas que nelas participam. Somos convidados e entrar num mundo onde a humanidade, a simplicidade e o despojamento contrasta de forma flagrante com a espectacularidade das superproduções “bíblicas” realizadas em Hollywood.
A imagem de Cristo não é a da figura seráfica, de barba crescida e longos cabelos loiros que nos habituamos a ver noutras representações, mas a de um jovem com quem nos poderíamos cruzar na rua. E o mesmo podemos dizer de José, de Maria, a jovem mãe ou a mulher já idosa que sobe ao Calvário, ou de qualquer um dos apóstolos. Grandes planos apresentam-nos os rostos das figuras que dão corpo a esta história. Magníficos planos panorâmicos dão-nos a conhecer as terras pobres e áridas do sul da Itália e somos levados a pensar que aquelas personagens podiam ser as pessoas que, hoje, aí vivem e trabalham. Por outro lado, a solene música de Bach vai pontuando o filme e as palavras proferidas por Cristo reproduzem exactamente as do Evangelho de Mateus. A dimensão poética do Evangelho de Pasolini resulta deste encontro da simplicidade e da pobreza com a grande arte do cinema, da música e da palavra.
Ele é, evidentemente, herdeiro do cinema neo-realista que se realizou em Itália depois da 2a Guerra Mundial. Podemos vê-lo não só nessa narrativa “rente ao chão”, quase documental, da vida de Cristo, que enjeita uma perspectiva mais abstracta, mais alicerçada em interpretações teológicas, mas também nas suas implicações políticas. Pasolini, como se sabe, sempre se afirmou comunista, embora a sua homossexualidade tivesse tido como consequência a sua expulsão, em 1949, do PCI por “conduta moralmente imprópria”. Porém, o seu comunismo, não se apoia fundamentalmente no “socialismo científico” desenvolvido por Marx e dogmaticamente fixado pelos seus seguidores, mas antes num sentimento de justiça, de fraternidade, de dádiva e de amor, cujas raízes são muito anteriores ao desenvolvimento do capitalismo moderno e que aqui podemos encontrar na mensagem de Cristo.
Obra de um ateu que se considerava cristão e de um comunista marginal, o Evangelho segundo São Mateus é o resultado poético desse encontro ou desencontro de crenças cuja origem nos remete para um passado mítico que, para Pasolini, ecoará ainda, por vezes, nas mais simples comunidades populares.
Melhor do que eu di-lo este seu poema publicado em Poesia em forma de rosa:
Eu sou uma força do Passado.
Só na tradição está o meu amor.
Venho das ruínas, das igrejas,
Dos retábulos, das aldeias
Abandonadas sobre os Apeninos e os Pré-alpes
Onde viveram os irmãos.
Percorro a Tuscolana como um doido,
Pela Ápia como um cão sem dono.
Tanto contemplo o crepúsculo, a aurora
Sobre Roma, sobre a Ciociaria, sobre o mundo
Como os primeiros actos da Pós-memória
A que assisto, por privilégio censitário
Da orla extrema de qualquer idade
Sepulta. Monstruoso quem é nascido
De vísceras de mulher morta.
E eu, feto adulto, cirando,
O mais moderno de todos os modernos,
Procurando irmãos que o não são mais.