quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Giù la testa (1971) de Sergio Leone



por João Palhares

Porque é que John Mallory - a personagem interpretada por James Coburn neste Giù la testa – se apresenta bem baixinho como "Sean" quando Juan (Rod Steiger) lhe pergunta o nome nas estradas desertas do México? Juan não percebe sequer que é isso que Mallory lhe diz primeiro, mas a nós não nos é permitido esquecer porque o nome já tinha ecoado na maravilhosa música do genérico – depois, também – e vai continuar e continuar a ecoar e a assombrar e a seduzir. Tem qualquer coisa que ver com os fantasmas e o passado sombrio do irlandês revolucionário que troca a pátria pelo México e os ideais pela dinamite. Sempre nas sombras, sempre escondido mas a par de tudo, mesmo quando a revolução o atrai para o seu vórtice de sangue e massacres e ele anda à procura de prata montado numa mota que atravessa a paisagem mexicana. 
 
"Where there's revolution, there's confusion. And when there's confusion a man who knows what he wants stands a good chance of getting it". É com estas palavras que Mallory convence Juan Miranda a assaltar o banco nacional de Mesa Verde, um sonho já antigo deste último. Juan lembrava-se de uma cidade diferente. Tinha lá estado com o pai quando tinha oito anos e já o ouro chamava por ele. Estava em todo o lado. Mas Mesa Verde agora é uma vala comum. Mal reconhece a cidade e grita uivos de felicidade cai-lhe um cadáver fresco nos braços. Fuzilamentos e desordem… Reuniões e garantias revolucionárias. "Sean, Sean, Sean" outra vez. Assobios de promessas e sonhos lindos, ao longe. Leone traduz agora a música do genérico em acção e olhares. Zoom! Está já tudo combinado e está já John sentado à mesa no bar dos submundos revolucionários a beber tequila de tacada. É perto do meio-dia menos cinco e é hora. Comem-se pêras e maçãs e bate-se em bifes ao ritmo de Morricone com acenos e abrires de portas à mistura. Zoom! A cadeia de acenos leva-nos a Chulo, o filho mais novo de Juan, frágil e hesitante na multidão e na confusão da revolução, com um comboio de brincar armadilhado por um fio. Deixa-o à porta e arrasta o fio pela multidão em direcção ao bar e a John, que lhe afaga o cabelo e faz entrar Juan e a família no banco com mais uma explosão, voltando para a sombra. Só volta para coroar Juan como herói da revolução com um melódico "Viva Miranda!" e desaparece outra vez na multidão. O Juan é que está fodido que não havia ouro no banco nem queria nada com estas histórias… 
 
As promessas deste filme são sonhos impossíveis. O sonho de ir assaltar bancos para os Estados Unidos. "Johnny & Johnny". Nunca se pisa o solo do país vizinho mas ele vive nos olhos esfomeados de Juan e na banda-sonora. É a única fuga possível. Eles sabem disso mas só John sabe que não vão conseguir. 
 
Há filmes difíceis de ver e este filme tem pelo menos uma cena insuportável. Qualquer coisa perto dos baixares de cabeça e dos "para quê" das guerras de Ford, Walsh, Cimino, Milius e Peckinpah. E Leone encontra-os aqui. Na gruta a que John e Juan voltam depois de aniquilarem um exército inteiro naquela ponte e reduzirem tudo a pó. Antes da gruta, caem homens e cavalos no abismo de poeiras e pedras daquele vale-armadilha com os dois a assistir do alto do monte. Na gruta, à noite, Juan vê o mesmo feito aos seus filhos. Não suporta. Já se tinha explicado no monólogo das revoluções e agora sente as palavras na pele e nas entranhas. Tinha toda a razão. Vem o grande plano em que não vemos nada - só a cara do gigante Rod Steiger - mas percebemos tudo. "Johnny & Johnny" olham-se e ficamos nisto o tempo que é preciso até decidirem quebrar o silêncio e Juan sair com munições para castigar os responsáveis. Ouvem-se tiros e John vê os corpos espalhados pela gruta num movimento de câmara que re-encena o massacre com os sons da batalha de Juan, lá fora. Este longuíssimo plano-subjectivo dos cadáveres não cai nos crimes dos "travellings de Capo" deste mundo porque é James Coburn quem olha e a coisa toma outros contornos. Respira-se de alívio ao olhar para a cara dele. E ele parece assegurar-nos: não é mostrar por mostrar, não há abraços e choros, não há criancices demagógicas. Há um homem que olha, não diz nada e sai por um túnel, sonâmbulo e sem vida. Vai dizer e fazer o quê? "Jesus…" e cavalgar na madrugada como faz no Pat Garrett & Billy The Kid de Peckinpah. Não, nem isso chega. 
 
Neste filme só se pode olhar para cima. O que é que se pode escrever? Que é uma variação sobre o número "três"? Que como há três "Seans" na música há três maneiras de viver com os crimes e horrores da "revolução"? A de John, a de Juan e a do doutor Viega? Que Leone constrói o filme num balanço entre a comédia e a tragédia que é justificado e resolvido na cena do comboio e da pomba que caga na testa de Juan? Quando o ridículo chega aos limites do razoável já só se pode rir? Estão-se a rir só daquilo ou de tudo?
 
"Sean, Sean, Sean…
 
Porque é que é John diz que se chama "Sean"? 
 
Quando o Doutor Viega é avistado pelo James Coburn saído das grutas, está a vender os amigos de armas aos oficiais. Foi torturado e obrigado a falar. Está a chover imenso. Os flashbacks já quase nos explicam tudo. Foi aquilo. Nas últimas cenas, dentro do comboio, John diz a Viega (que entretanto foi libertado), que não julga ninguém. Que deixou de o fazer há uns anos, na Irlanda. Abateu, sabemos nós, um denunciante a tiro por vender irmãos de revolução. Matou um amigo, talvez chamado Sean. O melhor dos amigos. Um amigo que no fim só quer perdoar como se quer perdoar a si próprio e se calhar já não acha possível. É essa memória longínqua em corpo de assobios, ritmos e melodias que assola a consciência de John Mallory. Dias de Verão, passeios de carro, amizades eternas… 
 
Ou então John chamava-se mesmo Sean e decidiu que já não merecia ou suportava chamar-se assim. Renegou o passado esquecendo tudo e queria só renascer com a prata do México. Não sabia que o iam arrastar para outra igual… Nos últimos planos, já com o cigarro na mão, pode estar a pensar na revolução derradeira. Na revolução verdadeira. Reaver o passado e os prados da Irlanda… e poder chamar-se Sean outra vez. 
 
É por isso que sorri no meio da última cigarrada?
 
Publicado originalmente no site À Pala de Walsh a 13 de Abril de 2013.



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