por Alexandra Barros
O último filme de Glauber Rocha, e aquele em que procurou levar mais longe uma forma revolucionária de fazer cinema, fortuitamente é exibido no dia da Revolução dos Cravos. A militância cultural de Glauber Rocha e a sua militância política foram inseparáveis e, por isso, durante a ditadura militar, esteve vários anos exilado em diversos países e continentes. Encontrava-se na Europa em abril de 1974 e aterrou em Portugal no dia 26. Nos dias que se seguiram à revolução filmou e participou nas emoções vividas nas ruas portuguesas. Esses testemunhos deram origem ao filme As Armas e o Povo, o mais célebre filme da revolução, de acordo com a Cinemateca Portuguesa.
A ideia de Revolução – política e cultural - é fundamental no pensamento e na obra de Glauber Rocha, que considerava que para exprimir a essência ou a alma da cultura dos países do Terceiro Mundo e para abordar a realidade, lutas e aspirações dos seus povos eram necessárias formas revolucionárias de representação, novos processos criativos, novas formas de fazer cinema. É n’ A Idade da Terra que Glauber Rocha mais profundamente mergulha em “águas” inexploradas. Dessa experiência emerge uma obra insólita e classificada, por muitos, como impenetrável. Glauber Rocha acreditava, no entanto, que no futuro lhe seria feita justiça, tal como sucedera com Terra em Transe (de 1967), em que críticos de primeira hora vieram, mais tarde, a converter-se em admiradores.
O slogan “Primeiro estranha-se e depois entranha-se” - criado originalmente por Fernando Pessoa para uma campanha publicitária da Coca-Cola - poderia ter sido concebido para este excêntrico filme. A Idade da Terra foi mal recebido, pela crítica e pelo público em geral, quando estreou no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 1980, mas - ao longo dos anos - críticos, estudiosos e cinéfilos têm vindo a reconhecer o seu valor artístico e impacto no meio cultural brasileiro. É um filme que provoca reacções extremadas, com as opiniões a expressarem ora máxima admiração (classificando-o como: obra-prima, ousado, provocador, arte) ora máxima aversão (por parte de quem o vê como: pretensioso, inacessível, entediante). Apesar desta falta de unanimidade é actualmente considerado um dos mais importantes filmes na história do cinema brasileiro.
Sem fio narrativo, caótico no conteúdo e na forma, “compreender” este filme parece-me tarefa impossível, por muitos visionamentos que eu possa vir a fazer. Porém, compreensão não foi o que o realizador pretendeu, da parte dos espectadores. Nas suas próprias palavras: “É um filme que o espectador deverá assistir como se estivesse numa cama, numa festa, numa greve ou numa revolução. É um novo cinema, anti-literário e metateatral, que será gozado, e não visto e ouvido como o cinema que circula por aí. [...] Não é para ser contado, só dá para ser visto.”[1] A Idade da Terra parece um vulcão, jorrando continuamente novas imagens, símbolos e referências culturais, uma lava de misticismo, religião, poesia, sexualidade e política, com foco particular em temas como: o imperialismo, o colonialismo, a liberdade, a miséria, a pobreza. As cores são saturadas; os diálogos/discursos são gritados e histéricos; a música e os sons são densos e intensos; os tempos e os lugares são múltiplos e coexistentes. Num momento as personagens estão imersas na selva tropical, à beira de um imenso charco; no seguinte, a profundidade de campo alarga-se e, ao fundo, na outra margem do “charco”, avistamos o Rio de Janeiro. A cidade cosmopolita e a selva tropical são afinal planos distintos de um mesmo “palco”. Filme e rodagem do filme são indistinguíveis. A música brasileira, principalmente a ritualizada, mística, religiosa, tem uma forte presença no filme. De rituais lascivos no primitivo Jardim do Éden somos transportados para as coreografias ensaiadas dos actuais desfiles do Carnaval carioca, sempre mergulhados em ritmos hipnóticos, através dos quais o Homem tem procurado, desde os primeiros tempos, o transe, o êxtase, a transcendência. Porém, mais que filmar o transe, Glauber Rocha quer induzi-lo nos espectadores, comunicar com eles através do inconsciente, diluir as barreiras entre o que está na tela e o que está fora dela. Este cinema não pretende contar histórias. Quer actuar e ser História. A descolonização começa por ser cultural. “A Idade da Terra [...] materializa os signos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas em revolucionárias. Tudo isso está no filme [...] O filme oferece uma sinfonia de sons e imagens ou uma anti-sinfonia que coloca os problemas fundamentais de fundo. A colocação do filme é uma só: é o meu retrato junto ao retrato do Brasil.” “Meu estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira. Os que são considerados símbolos e alegorias não são abstrações, senão expressões diretas de elementos da cultura popular. É um cinema feito sobre o povo e com a colaboração popular de sua cultura. [...] O cinema latino-americano tem dois caminhos: um, que é o cinema-documentário, informado de denúncia e agitação política e social [...]. No meu caso, por uma deficiência profissional, já que não tenho capacidade para fazer documentários, faço filmes de ficção ligados à realidade latino-americana, com uma linguagem que expressa os mitos.” “Não há vantagem alguma em fazer filmes de conteúdo revolucionário se, na forma, você imita a Nouvelle Vague francesa, o expressionismo alemão ou o comercialismo norte-americano. O problema dos cineastas do Terceiro Mundo é encontrar um estilo próprio.”[2] “O que interessa é a criação. A linguagem estabelecida, em qualquer arte, cansa.”[3]
Originalmente sem créditos iniciais ou finais, e sem uma ordem estabelecida de montagem das várias cenas, a sequência pela qual eram projectadas as bobinas do filme era deixada deliberadamente ao critério do projeccionista. Conceptualmente, o filme prenuncia a era da navegação digital e virtual. A ambição de fazer emergir múltiplos percursos e sentidos através de um conjunto desordenado de numerosas referências e justaposições, remete para uma outra revolução que estava a ser preparada. De forma intuitiva, sem formulação “técnica” ou filosófica, os conceitos de hiperlink, de leitura não-sequencial, de uma rede de conteúdos infinitamente “navegável” presidem à criação da Idade da Terra. Uma década mais tarde, esses mesmos conceitos estiveram na base de um acontecimento que viria a mudar o mundo: o nascimento da World Wide Web.