quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu



Por Alexandra Barros
 
Que forças impelem as nossas ações? Como são determinados os nossos destinos? O Som do Nevoeiro tem como fio condutor a história de um amor condenado, mas estas questões existencialistas, a complexidade do comportamento humano e as dificuldades de compreendermos os outros e a nós mesmos tecem o subtexto do filme. Porque é que as personagens fazem o que fazem? Porque se sacrificam, porque hesitam, porque se conformam, porque agem de forma absurda, porque morrem? Agem compelidas pela paixão, pelo medo, pelo dever, pela cobardia, pela honra, por altruísmo, por egoísmo? Adivinhamos os seus conflitos interiores, a tensão entre sentimentos, mas nunca sabemos verdadeiramente o que acaba por determinar as suas escolhas. Possivelmente uma observação, umas palavras, um acaso, aparentemente inócuos, mas que se cravam com tal força na alma que a passam a dominar.
 
Neste filme, cada frase, cada expressão do rosto, cada gesto que se afigura significativo, tanto pode ser revelador como lançar dúvidas sobre o que demos, antes, por adquirido. As dissonâncias comportamentais, expressas ou lidas nas entrelinhas, ficam por explicar, enigmas abertos à interpretação pessoal. O grande cinema (ou melhor, de forma geral, a grande arte) é assim, convoca múltiplas leituras. Hiroshi Shimizu conjuga esta impossibilidade de ver uma pessoa na sua totalidade - os mistérios humanos - com belíssimas imagens de uma paisagem montanhosa, sempre em mutação. Raramente a montanha se dá a ver claramente. Ora vislumbramos apenas o pico, pairando sobre camadas densas de bruma, ora entrevemos pequenas áreas da encosta entre um manto irregular de nevoeiro, ora adivinhamos os traços montanhosos por trás de uma leve névoa.
 
Esta montanha é onde o professor de botânica Kazuhiko Onuma se refugiou do Japão tumultuoso do pós-guerra, dedicando-se ao estudo das plantas que aí vivem. Acompanha-o Tsuruko, a assistente, com quem tem uma relação extraconjugal. Na iminência de ser visitado pela mulher (Katsuyo), Onuma espera que a presença de Tsuruko instigue Katsuyo a dar o passo que o próprio evita dar. Apesar de ele assegurar a Tsuruko que o divórcio é inevitável, porque o casamento sempre foi de fachada, sem amor, e porque as divergências entre ambos são demasiado fortes, teme ser ridicularizado pela sociedade por se separar agora quando já tem uma filha. Tal como previsto, Katsuyo confronta-o com a traição, mas inesperadamente ele nega a relação, explicando que Tsuruku só ali está para fazer as compras e organizar a documentação. Tsuruko parte furtivamente, alegando (numa carta) que o faz para salvar o professor Q de um eventual destino trágico. Mas não terá sido a vacilação do professor, ou o “És uma indecente!” atirado por Katsuyo, o verdadeiro catalisador da partida? Os seres humanos procuram justificações tão mais enobrecedoras para os seus gestos quanto mais indizíveis são as suas reais motivações.
 
E que alegado destino trágico é aquele a que se refere? Será porventura o mesmo que Aiko (uma mulher num triângulo amoroso idêntico ao de Tsuruko) terá escolhido para si e para o amante, como fuga a um sufoco de idêntica irresolução? Aiko reprova a atitude passiva de Tsuruko e a sua submissão às (in)decisões do professor: “As mulheres devem construir a felicidade pelas suas próprias mãos”. Porém, também ela é incapaz de alcançar a felicidade que persegue. Aiko cruza-se com Onuma e Tsuruko, na cabana florestal onde estes habitam, porque procurou a montanha para deambular livremente com o seu amante. Imersos na tranquilidade e beleza da floresta aos pés da montanha, Onuma, Tsuruko e Aiko conseguem alhear-se, ainda que efemeramente, dos dilemas que os atormentam e desfrutar de fugidios momentos de felicidade. Tsuruko considera a floresta tão maravilhosa que julga ser o local ideal para morrer. Um paraíso. Ao escutar tais palavras, uma tristeza insólita assoma ao rosto de Aiko, mas a chegada do professor interrompe os seus pensamentos. Numa cena premonitória, o professor exibe dois peixes e explica que após pescar o primeiro, aquele que o acompanhava ficou triste e também se deixou pescar. Aiko exibe agora uma euforia, que não deixa de ser notada pelo professor, e que Tsuruko atribui ao facto de ela saber o que quer da vida. Essa invejada determinação e alegria é, no entanto, como se virá a revelar, um enganador canto do cisne.
 
Esta incoerência entre aquilo que as personagens exteriorizam e a sua vida interior, ou entre o que proclamam e o que fazem, emerge recorrentemente no filme. Onuma reprova a mulher por negligenciar a filha para se dedicar à política, mas vive na montanha, isolado da família, e dedicando-se exclusivamente aos seus interesses científicos. Assegura a Tsuruko que o seu casamento sem amor foi um fracasso em todos os sentidos, mas após a morte da mulher, lastima-se da falta que esta lhe faz: “Perder uma esposa é como se nos roubassem a nossa outra metade”. Em contrapartida, ao reencontrar Tsuruko, casada com outro homem, mostra-se conformado e até satisfeito com o que a vida lhes destinou. Crê que o amor que partilham é eterno por ser impossível, e que provavelmente não resistiria às dificuldades inerentes a uma vida a dois. Tsuruko não concorda. Onuma é um homem pacificado, mas para Tsuruko, a dor da perda persiste. Comprazer-se com as memórias, revisitando anualmente a montanha, é quanto basta a Onuma. Tsuruko não poderia viver noutro lugar, mesmo que, para se sustentar nesse lugar remoto, se tenha visto obrigada a trabalhar como geisha. Não lhe faltaram pretendentes, mas “as mulheres não têm emenda; quando elas já têm alguém que amam em mente, é lhes impossível formar família com outra pessoa”. Inexplicavelmente, umas horas depois de fazer esta confidência a uma amiga, Tsuruko cede à corte que, ao longo dos últimos meses, Gen, um veterinário local, aparentemente simplório, lhe tem vindo a fazer. Porque o faz? Talvez porque nessa tarde, ao ouvir a voz de Onuma (de visita à montanha), tenha evitado o encontro, receando o seu eventual julgamento moral e consequente rejeição. Terá então concluído e aceitado que o rumo ditado pela paixão devotada a Onuma, paradoxalmente, determinou a impossibilidade de por ele ser amada.
 
Gen, pelo seu lado, é incansável nos seus esforços para lhe agradar. Ama-a com a incondicionalidade, dedicação e entrega com que Tsuruko porventura terá desejado que Onuma a amasse. Talvez Tsuruko tenha sido seduzida por um lirismo recôndito que, apesar da rusticidade de Gen, a paixão terá feito emergir. Ou nele tenha reconhecido uma alma-gêmea, alguém capaz de uma afeição amorosa só equiparável à que ela dedicou a Onuma. É precisamente com desmedidos gestos de amor, de Tsuruko e de Gen, que este filme de emoções contidas se fecha.
 
Que som faz o nevoeiro? Aparentemente nenhum. Porém, tal como os sentimentos que mantemos secretos são inexistentes para os outros, o som do nevoeiro poderá ser apenas inaudível para os nossos ouvidos.
 
 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

381ª e 382º sessão: dia 10 e 11 de Fevereiro (Segunda e Terça-Feira), às 21h30


Clássico do cinema galego e japonês esta semana nas sessões do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta segunda, 10 de fevereiro, exibe-se o clássico galego Sempre Xonxa (1989) de Chano Piñero. Sempre Xonxa é um dos primeiros filmes de ficção galegos, rodado em 35 mm. A narrativa centra-se nas vivências de uma mulher, Xonxa, e de dois homens, Pancho e Birutas, entre 1947 a 1986, as quais passam pela experiência da ditadura, da emigração e da desertificação de uma aldeia situada nas montanhas da Galiza. Sempre Xonxa cruza a realidade com o realismo mágico composto por lendas e tradições galegas.

Na terça-feira, 11 de fevereiro, é a vez de O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu. Em O Som do Nevoeiro (1956), o protagonista Kazuhiko Onuma, um professor de botânica, e a sua amante Tsuruko passam tempo juntos num refúgio nas profundezas dos Alpes japoneses. Naquela noite, a esposa de Kazuhiko confronta-o sobre o seu caso extraconjungal e Tsuruko, que inevitavelmente testemunha a discussão, abandona o professor. Nas décadas seguintes, sempre que Kazuhiko volta ao refúgio as memórias de Tsuruko reemergem.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até breve!

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Cada Um na Sua Cova (1955) de Tomu Uchida


     
Por Estela Cosme

O Japão do pós-guerra traz inúmeras dificuldades a um país extremamente fragilizado, não só pelo combate, mas também pela derrota. A sociedade da década de 1950 não sai ilesa, aliás, a sua profunda reestruturação e agitação levam ao renascimento de um país e povo bastante distantes do passado. O filme de Tomu Uchida é testemunho desta transformação, cujas personagens encarnam o rebuliço da época, submergida numa modernização que leva à construção de um novo Japão, agora subjugado às circunstâncias de uma nova ordem mundial. Uma das personagens do filme resume-o de forma muito sucinta: “o Japão atual é essencialmente uma colónia americana.” Esta frase, proferida pela personagem mais amoral do filme, exemplifica o turbilhão de um país transformado, arrastando o seu povo para tempos modernos em cidades modernas com problemas modernos. Mas entre o barulho ensurdecedor das máquinas e dos aviões, do ruído do ferro e do betão, a verdadeira desgraça no filme de Uchida é o de uma família que não se consegue ouvir. E pior ainda, que não quer.
 
O filme trata sobre uma jovem de Tóquio à procura da sua independência chamada Tamiko [interpretada pela atriz Mie Kitahara, uma cara familiar antes vista pelos espectadores deste cineclube no filme A Lua Ascendeu de Kinuyo Tanaka]. Ela mora com o seu irmão acamado Junjiro e ambos ficaram à tutela da sua madrasta, Nobuko, depois da morte do sei pai [esta última é interpretada por Yumeji Tsukioka, cujo papel em Para Sempre Mulher de Tanaka arrebatou os nossos sócios no que foi um dos melhores filmes exibidos no ano passado]. Nobuko é uma viúva na casa dos quarenta, e os seus enteados aparentam ser recém-chegados à vida adulta, pelo que a diferença de idades não deve ultrapassar as duas décadas. No entanto, a diferença entre estas gerações relativamente próximas não podia ser mais vincada, e parece existir um fosso irreparável entre os membros desta família. Tamiko resiste a todas as tentativas da madrasta que a tenta convencer a casar, e Junjiro, embora confinado à sua cama, dedica o seu tempo ao jogo da bolsa de valores, amargurado pelo fim de uma relação amorosa.
 
Para complicar mais as coisas, um dos pretendentes de Tamiko, o deplorável, mas abastado Dr. Ihara, assume o seu interesse por Nobuko, embora faça questão de continuar a cortejar Tamiko, que por sua vez nutre sentimentos por Komatsu. Esta situação familiar é ainda mais agravada por um mal simultaneamente antigo e moderno: o dinheiro. Quando Tamiko vende uma das últimas propriedades da família, Junjiro assume a responsabilidade do dinheiro da venda, impedindo a Nobuko acesso à sua parte. Ela ameaça os seus enteados em deixar a casa e regressar à sua terra, mas, num ato de frieza pela mulher que os criou, eles não cedem, e a família desmorona-se. Além disso, Tamiko não casa nem com o seu amante nem com o Dr. Ihara, deixando-a à mercê do irmão, que por sua vez perde não só o dinheiro das propriedades vendidas, como também a casa hipotecada, e mais tarde a sua própria vida. A total independência de Tamiko tem um custo demasiado elevado.
 
O filme não só critica a dissolução da família tradicional, mas também os valores modernos que a provocaram. Tamiko, resiste ferozmente ao casamento, e Nobuko, que o impinge, afasta de vez a enteada, e ambas acabam por não constituir família enquanto perdem a que tinham. Junjiro, que numa cena de terror rasteja até ao quarto da ex-mulher para a atacar, perde o seu único amor, a sua saúde e tudo o que o seu pai lhe deixou. Ihara que, por sua vez, tem um caso com Tamiko enquanto declara o seu interesse por Nobuko, mais tarde critica Tamiko pela sua promiscuidade (enquanto se senta num bordel rodeado de mulheres). Komatsu, que defende a honra de Tamiko, foge antes de assumir uma relação com ela.
 
Pelos erros das suas ambições, dos seus egoísmos e dos seus próprios orgulhos, esta família japonesa desintegra-se na fragilidade de tempos de rescaldo, e para estas personagens os efeitos da guerra podem durar uma vida, mas os efeitos dos seus familiares vão durar uma eternidade. 
 
 

domingo, 2 de fevereiro de 2025

380ª sessão: dia 4 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30



Mestre Tomu Uchida na próxima sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos ”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta terça-feira, 4 de fevereiro, será exibido, às 21h30, o primeiro filme do ciclo de cinema “Mestres Japoneses Desconhecidos”, dedicado a realizadores japoneses pouco divulgados fora do Japão e que foram realizados entre os meados dos anos 50 e inícios da década de 60, abrangendo, assim, a “Era Dourada” do cinema japonês, bem como produções que imediatamente lhe seguiram.

Findada a ocupação e controlo americano no Japão, inclusive na produção cinematográfica, a partir de 1952, as obras fílmicas realizadas asseveraram o estatuto do cinema japonês no Mundo, ocupando-se de temas históricos e socioculturais de maneira crítica e, por vezes, provocadora, inclusos em formas estéticas que o distingue dos demais, mesmo reconhecendo-se técnicas cinematográficas comuns noutros cinemas.

O filme Cada um na sua Cova (1955), de Tomu Uchida, retrata a vida de Nobuko que mora com os dois filhos de seu falecido marido, Tamiko e Junjiro. Tamiko é uma jovem mulher independente, enquanto Junjiro está acamado, doente e destroçado. As tensões aumentam dentro da família quando Nobuko decide encontrar um pretendente para Tamiko. A escolha é entre Dr. Ihara, um mulherengo sem vergonha, e Komatsu, um romântico que não consegue afirmar-se. Cada Um Na Sua Cova é um retrato de uma nova sociedade japonesa em profunda transformação, ainda impactada pelos traumas da guerra.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça!

sábado, 1 de fevereiro de 2025

379ª sessão: dia 3 de Fevreiro (Segunda-Feira), às 21h30


Filmes japoneses, portugueses e galegos em fevereiro
 
Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Desconhecidos Japoneses”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta segunda-feira, 3 de fevereiro, serão exibidas 4 curtas-metragens no âmbito do Festival Convergências, três das quais produzidas pela Rua Escura e filmadas em 16mm. A primeira do grupo será Tanganhom (2023) de Vítor Covelo, seguida pela curta de Frederico Lobo Quando a Terra Foge (2024) e de Campos Belos (2023) de David Ferreira. Estes três realizadores estarão presentes para apresentar os seus filmes. Esta sessão terminará com a curta Lavadoiro (2023) dos jovens realizadores galegos Ana Amado e Lois Patino. 
 
Tanganhom (2022) de Vítor Covelo é uma curta-metragem, rodada em Melgaço, em Parada do Monte que explora: “a memória de um encontro fortuito na fronteira entre o real e o imaginado, a afoiteza e as superstições”, transmitida de geração em geração. Assim, o filme Tanganhom é, em si mesmo, um gesto que procura eternizar a história oral da aldeia de Melgaço, situada na raia minhota.
 
Quando a Terra Foge (2024) é um registo poético de uma região em perigo pela iminente exploração de lítio na região de Montalegre. Enquanto as máquinas escavam as imponentes montanhas, um pastor procura, no denso nevoeiro, uma vaca que se extraviou. O nascimento, a infância e as várias mortes surgem-nos inevitáveis numa paisagem bruta e espontânea que se redesenha, também, segundo os desígnios do homem e sua avidez.
 
Em Campos Belos (2023) é nos apresentado num plano-sequência o quotidiano de uma comunidade da região do Vale do Ave. Seguindo os passos de três personagens, da escola à fábrica, aos espaços de convívio até à morte, assistimos como o destino de um homem é predefinido pelo trabalho, neste caso específico pela indústria fabril, que rege e tipifica fatidicamente toda o modo de vida de uma localidade.

O filme Lavadoiro (2023) é uma ode aos antigos lavadouros galegos onde as mulheres se reuniam para fazer confidências e lavar roupa. Centrando-se nos espaços, suas marcas e ruínas, Lavadoiro é uma homenagem a este trabalho invisível e muitas vezes não valorizado da população feminina.
 
 As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até segunda-feira!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

A Visita e Um Jardim Secreto (2022) de Irene M. Borrego


por Alexandra Barros

“Vais ser como a tua tia Isabel.” - É este augúrio, atirado em tom reprovador à realizadora do filme, pela sua mãe, que está na origem de A Visita e Um Jardim Secreto. Da tia Isabel nada sabe, excepto que foi artista e que a família conservadora a repudiou por desaprovar a vida que escolheu: estudar Belas Artes e tornar-se pintora. O meio artístico também a esqueceu, excepto Antonio López1, o único pintor da sua geração que a recorda. Como se explica o desaparecimento de uma obra reconhecida e aclamada no seu tempo? Antonio López não sabe se a pintora terá querido desaparecer ou se terá sido consumida pela voragem deste tempo dominado por Insta(ntes): “O presente é muito invasivo, exige muita atenção, muita, muita, é uma coisa avassaladora. O presente apaga tudo o resto, extingue tudo.” Apesar de Antonio López não saber nada de Isabel há 50 anos, o retrato sensível e poético que traça a partir das suas  recordações, e ouvido em voz off, virá a revelar-se extraordinariamente apurado.
 
Com muitas reservas, Isabel abre a porta de sua casa a Irene, mas ela própria mantém-se fechada. Tal como o quarto da porta amarela. Nele guarda os seus quadros e ninguém está autorizado a aí entrar. É Antonio López quem descreve a Irene como eram as pinturas da sua tia: “Parecia que era muito verdadeiro o que ela fazia. Dava a sensação de não ter uma ansiedade que todos temos de mostrar trabalho, de estar aqui, de estar ali; como se para ela nada disso importasse. Era como se fosse alguém que estava ali de visita. [...] Tinha uns tons luminosos e secos, e umas formas muito simples. Mas também não era uma pintura geométrica. Era uma pintura um pouco áspera, muito honesta, muito autêntica e muito secreta. Era como ela, justamente como ela. Parecia uma espécie de jardim secreto. Acredito que ao entrar lá era possível encontrar coisas muito atraentes. Coisas bonitas. Apesar de parecer que ela não queria mostrá-las.”
 
Na casa de Isabel, Irene filma filas de ganchos ordenadamente colocados na parede de um corredor. Cada gancho encima um fantasma, uma patine ténue que denuncia a antiga presença de um quadro. Frustrada com essa e outras ausências, Irene pressiona Isabel a dar-lhe explicações. Sem se dar a conhecer, sem criar laços, sem esperar que Isabel se sinta pronta para lhe abrir as portas do seu universo íntimo e evocar memórias dolorosas, Irene quer obter respostas rapidamente. Em lugar de seguir o fio de pensamento de Isabel, atira-lhe perguntas que visivelmente a incomodam e irritam (porque é que os seus quadros não estão expostos em museus, porque é que está só, porque é que foi esquecida, …) e reivindica receitas para a vida e para o trabalho. Descontentes com esta pressão, os colaboradores de Irene querem parar de filmar. Torna-se penoso assistir ao filme e, neste ponto, perguntei-me como iria escrever fosse o que fosse sobre ele.
 
Ao crer que existe um fosso intransponível entre si e Irene, Isabel abandona as filmagens. Acaba por aceder ao pedido de Irene para que a ajude a fazer o filme, por respeito aos princípios pelos quais sempre se regeu: viver para a arte, tudo fazer pela arte, mesmo à custa de enormes sacrifícios e sofrimento pessoal. No interrogatório desastrado de Irene, Isabel entreviu a origem das inquietações da sobrinha e, num discurso em tudo idêntico à sua pintura - “áspera, muito honesta, muito autêntica”2 - aponta frontalmente o que tolhe Irene e as razões por que está num impasse. Irene julga entender e Isabel abre-lhe enfim o jardim secreto: “Anda! Vem cá, põe-te ao meu lado.” / “Daqui consigo ver.” / “Como te explico uma coisa desta sensibilidade a esta distância? Não sei se a esta distância consegues perceber. Tem que se estar aberta a tudo. Mas a essa distância, como é possível?”. É admirável como esta cena rima tão perfeitamente com as palavras ouvidas a Antonio López: “As montanhas grandes veem-se à distância, mas é preciso aproximarmo-nos das pequenas.”
 
As pinturas encerradas, atrás da porta amarela, deram lugar às assemblages. Talvez porque essa tenha sido a forma que Isabel encontrou para ultrapassar as limitações físicas, próprias da idade avançada, e “continuar a fazer, a seguir em frente”. As tintas foram substituídas por pedaços de madeira ou cartão, pequenas peças de plástico, tudo o que lhe chega às mãos, de tudo um pouco. Isabel seleciona, compõe, recompõe, rejeita, procura, alinha, acerta, aprova, cola: “Vejo as possibilidades que existem. [É preciso] estar aberta aos acidentes. Usá-los.” Mostra a Irene um cartão degradado que encontrou, molhou e arranhou: “Resultou nisto que é uma beleza! É bonito, não é?”. A beleza está nos olhos do observador3, e como não ouvimos a resposta, fica a dúvida: terá Irene conseguido encontrar as coisas bonitas que outrora Antonio López descobriu no jardim secreto de Isabel? O que viram afinal os olhos de Irene?
 
Insatisfeita com o que conseguiu captar, Irene continua a sua busca nos “baús” familiares. Inesperadamente, um vídeo, aparentemente prosaico, de uma cerimónia religiosa, traz para a luz o entendimento tão perseguido. Finalmente, está pronta para construir o seu filme. Ousadamente, Irene optou por tornar os seus desencontros com Isabel e todos os revés daí decorrente na grande força do filme, nele entranhando as errâncias necessárias para chegar a um resultado. Uma obra fractal que reflecte as questões que, segundo Isabel, estão envolvidas na criação de verdadeira arte (ou será arte verdadeira?). No final do filme, com uma mensagem dirigida a Isabel, Irene rasga um “casulo” que é simultaneamente seu e da sua obra. A metamorfose está completa.
 
São essas palavras finais que nos reconciliam com a Irene que atormentou Isabel e se mostrou incapaz de a compreender, por estar demasiado focada em si própria e nas suas dificuldades. A Irene que fabulosamente se auto-representou numa das mais reveladoras cenas dos (des)encontros com Isabel: enquanto afirma querer entendê-la, Irene filma-se, a filmar o seu próprio reflexo.
 
Quando, por fim, se vê com os olhos com que a viu Isabel, Irene tem a sua epifania. Nesse momento, percebe porque não conseguiu alcançar a mulher e a artista. Torna-se, enfim, capaz de a mostrar e, significantemente, de se mostrar. Um duplo retrato. Belo.
 
 
 1 Pintor que está no centro do filme O Sol do Marmeleiro, de Víctor Erice. 
 2 Palavras de Antonio López.  
 3 “Beauty is in the eye of the beholder.”, in Molly Bawn, de Margaret Wolfe Hungerford, 1878 

domingo, 26 de janeiro de 2025

378ª sessão: dia 28 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


O Jardim Secreto da pintora Isabel Santaló através do olhar de Irene M.Borrego

Durante o mês de janeiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga inicia o ano com um ciclo composto por seis filmes dedicados à pintura, intitulado: "Enquadramentos e Molduras - Pintores em perspectiva" Como habitualmente  as sessões ocorrem às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Este ciclo pretende refletir a estreita relação entre as diferentes artes visuais, especificamente entre a pintura e o cinema.

Esta terca-feira, 28 de janeiro, encerra-se o ciclo sobre cinema e pintura com o filme La Visita y Un Jardín Secreto (2022), de Irene M. Borrego que aduz à pintora espanhola Isabel Santaló, nascida em 1923 e com reconhecimento internacional nas décadas de 50 e 60. A pintura de Isabel Santaló é tida como semi-abstracta e não figurativa, considerando-se que os seus trabalhos se tornaram mais abstractos ao longo do seu percurso artístico.

Em La Visita y Un Jardín Secreto desvela-se a figura da esquecida pintora Isabel Santaló, revelando-se o íntimo do seu lar, à medida que se aborda o seu passado e obra, de par com os obstáculos com que se deparou enquanto mulher e artista. Através do olhar e testemunho do pintor, seu contemporâneo, Antonio López, o qual foi protagonista no filme O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro (1993) de Víctor Erice, o esquecimento torna-se objecto principal do filme e esbate-se pelo acto de rememorar, cujo registo, pela objectiva da câmara de Irene M. Borrego, eterniza, deliberadamente ou não, a história de Isabel Santaló e de tantos outros artistas olvidados.

Neste longa-metragem não somente são abordadas as razões pessoais, sociais e políticas que fadaram a pintora ao oblívio, mas problematiza, também, a memória e o esquecimento em relação à condição de “mulher” e “mulher-pintora”.
 
La Visita y Un Jardín Secreto resultou de uma coprodução portuguesa e espanhola e foi exibido em vários festivais internacionais. Foi galardoado duas vezes na 20ª edição do Doclisboa, em 2022, conquistando o Prémio HBO Max e o Prémio Escolas – Prémio ETIC, ambos na categoria de “Melhor Filme da Competição Portuguesa”. Ainda venceu o “Prémio de Excelência”, em outubro de 2023, no Festival Internacional de Cinema Documental de Yamagata, que ocorre no Japão.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 
 
Até Terça!

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Nikias Skapinakis - O Teatro dos Outros (2007) de Jorge Silva Melo


 
Por Eduardo Calheiros Figueiredo

"E Nikias começa uma nova série, talvez", ao pronunciar estas palavras, em vez de pôr termo ao filme, Jorge Silva Melo propõe, embora como mera potencialidade, aquilo que não seria menos do que uma certeza: a de que tudo recomeçaria uma vez mais. Enquanto isso, deixando-nos de fora, ou pelo menos assim aparentando, vemos o artista a pôr em cena o fechar da porta do atelier de Vila Martel, resguardando-se das suas obras mais recentes. Ainda assim, ou justamente por isso, dou por mim a pensar naquele talvez que pontua a última frase, naquele talvez seguramente delicado: marca da firme amizade que se veio a pautar entre ambos. A dificuldade que nos ensinam será, em suma, a de saber criar com uma devida distância, essa meia encosta de que Lucrécio falava, e que o Jorge tantas vezes citava, distância que poderá também ser escutada, neste filme, na maneira, também ela leve e preclara, de Dinu Lipatti tocar Johan Sebatian Bach, Scarlatti ou Mozart, interprete que não por acaso integra a banda sonora que acompanha as pinturas de Nikias, ou as fotografias de Sena da Silva, Victor Palla e Costa Martins, entre outros. Ora, não a colocar tal distância, também em exercício, na própria montagem, seria revelador de falta de coerência, ou de que não se tinha visto, afinal, o essencial. Neste mesmo sentido, dar um fim diferente ao filme, procurar conferir-lhe, ao invés da agilidade do pensamento que o percorre com insuspeita naturalidade, uma tessitura pesada e grave, querê-lo definitivo e devidamente sedimentado, sim, seria, de certo modo, subverter a estrutura que lhe subjaz e que constitui a sua maior singularidade. E, se bem a entendo, não obstante o recurso à vasta bibliografia disponível sobre o artista, à qual acede com o auxílio de António Rodrigues e da qual faz, disse-o, uma manta de retalhos, a narrativa ensaiada não tem como verdadeiro desígnio instituir ou fixar, da forma mais sustentada possível, um paradigma de compreensão, antes demonstra o anseio, como se acaso fosse possível, de recomeçar simplesmente, sim, tentar, de forma incessante, uma constante reaproximação à obra em causa: apetecia-me imenso fazer de novo e de outra maneira, disse-o também o Jorge, por mais do que uma vez, a respeito deste filme, e tenho para mim que essa vontade - não por verdadeira insatisfação, mas, como disse, pelo prazer de recomeçar – como que se divisa neste último, ainda assim.
 
Ao mesmo tempo, não será menos verdade que as pinturas que constituem a exposição “Quartos Imaginários” e que instituem esse Teatro dos Outros, não deixam de possuir, também elas, no contexto da obra retratada quer o interesse, quer o fulgor centrípeto que normalmente se atribui às chamadas obras de maturidade, servindo, por isso, enquanto obras maiores que são, o mais profundo questionamento, motivando, com justeza, esse “voltar atrás” empreendido pelo filme, qual anseio de lhes procurar os antecedentes e, ao mesmo tempo, procurar um sentido para os enigmas que há muito compõem o seu estilo: «Um ensaio como este é sempre aproximativo… Por isso, também gostei desta estrutura que aparentemente chumbaria em qualquer Escola de Cinema. De voltar atrás e contar a mesma história outra vez, como faço com a exposição… Assim como a minha intervenção lá dentro – em princípio, o realizador não pode entrar no filme a dizer: “Olhe, não consegui que o pintor dissesse mais coisas sobre a pintura: ele é assim…” Mas era um problema, com que eu estava, na construção do filme… E acho que era uma coisa que fazia luz, em relação à pintura. A tal distância de paisagista, era dizer “Atenção, o que o pintor diz destes quadros é só isto: Esta é uma cama de não sei quem. E ali está um baú. Não diz mais nada”. [É] por isso [que] eu ouso entrar na imagem – mas fiz um truque, mascarei-me de José Augusto França, vesti-me de preto, gravata preta, camisa encarnada, que fui comprar de propósito para ser igual ao quadro da Brasileira. Quis ser crítico!» – disse o Jorge, com graça, de uma das vezes que apresentou este Nikias Skapinakis - O Teatro dos Outros (2007), explicando assim, quer as razões que motivam quer o desdobramento observado na parte final do filme, quer a razão pela qual se colocou, a si mesmo, em cena: havia, pois, que conceder uma função diversa à sua própria voz e intervenção no filme, permitir-lhe uma outra mobilidade, refractária, aliás, daquela que engendra o fio condutor da narrativa, como se tivesse sentido que se demonstrava determinante, por forma a cumprir com o que se propunha, acabar com o enleio ou o encantamento das palavras até então pronunciadas, colocá-las em causa, enfrentar, pelo contrário, o insatisfatório, fazer girar as contradições, pôr a a nu as pontas soltas, as insuficiências, o silêncio, sim, as provocações do artista, a dada altura o Jorge terá sentido que era preciso abandonar o início, a forma como tinha começado e encaminhado o filme, para demonstrar que o pensamento que sustentava era vivo, incessante, aliás, como acima disse, e que o filme era seu, e como mostrá-lo, senão assim? E, porventura, tão feliz foi o resultado, que outro filme-complemento se lhe seguiu, Nikias Skapinakis: Continuando (2012), mas segundo me contou o próprio Jorge, por vontade do Nikias, teriam continuado a trabalhar. Mas se não voltaram a filmar, nunca mais deixaram de se contactar, e sei, aliás, que foi uma enorme satisfação, para o Jorge, nessa continuidade, ter o Nikias exposto, por duas vezes, na Sala das Janelas do Teatro da Politécnica, quando tinha começado justamente por expor nessa mesma sala, em 1954, refiro-me às exposições "Paisagens ocultas (2014/16)" e a, francamente extraordinária, esse adeus à vida que intitulou "Descontinuando – Pintura e Desenho – 2018/19". E quando penso nestas exposições, que com espanto visitei e revisitei, é como se, de alguma forma, este filme não tivesse cessado quando cessou, mas muitos anos depois.
 
A 17 de janeiro de 2021, o Jorge escreveria na sua página: "Quando fiz o filme sobre o Nikias disse-lho: mais que o homem de costas junto ao cais, mais do que a mulher com flores na cabeça, o único auto-retrato que ele fez foi o desta palmeira na Rua das Taipas como sempre o avistou do seu atelier na Vila Martel [com a qual, o filme abre] e que ele havia de pintar em 1955 (colecção Manuel de Brito): esguia, solitária, altaneira, sobranceira, apolínea, independente, uma copa lá muito em cima que a brisa agita…" Anteontem, a CML cortou esta palmeira, cinco (tristes) meses depois da morte de Nikias (que há meia dúzia de anos deixara aquele mítico atelier). Sim, foi há quatro anos, mas este filme fixou-a para sempre, como que constituindo, além do seu início, o verdadeiro eixo deste filme, de onde diria que se desprende todo o pensamento a que dá curso, e de alguma forma é como se tudo o resto pudesse ser reformulado, recomeçado, repensado, perspectivado de outra forma, menos a planificação, as palavras, a montagem que Jorge Silva Melo dedica à obra Os quintais de Lisboa, a esta palmeira recortada contra o céu. 
 
 
 
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

377ª sessão: dia 21 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


Nikias Skapinakis segundo Jorge Silva Melo na próxima sessão

Durante o mês de janeiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga inicia o ano com um ciclo composto por seis filmes dedicados à pintura, intitulado: "Enquadramentos e Molduras - Pintores em perspectiva" Como habitualmente as sessões ocorrem às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Este ciclo pretende refletir a estreita relação entre as diferentes artes visuais, especificamente entre a pintura e o cinema.

Esta Terça-feira, 21 de Janeiro, será exibido o filme de Jorge de silva Melo Nikias Skapinakis - O Teatro Dos Outros (2007). Conhecido pelos seus retratos de figuras portuguesas e paisagens de Lisboa, Nikias Skapinakis foi um pintor português de ascendência grega, o filme centra-se no percurso artístico e pessoal do artista.

Silva Melo revisita a colectânea que integrou a exposição “Quartos Imaginários”, inaugurada em 2006 no Museu Arpad Scenes -Vieira da Silva, composta pelas pinturas dos vários quartos e ateliers de célebres pintores e escritores que Nikias admirava, tais como de El Greco, Paul Klee, Matisse e Vieira da Silva, ou, ainda, Mário Cesariny, Fernando Pessoa, Teixeira Pascoaes, entre outros. A vida imaginada dos vários artistas pelo pintor, encenadas nas suas pinturas, são transpostas para a imagem em movimento, diluindo-se representação, ficção e real, remetendo-nos não somente para o teatro dos outros, mas para o da própria vida.

Jorge de Silva Melo foi um dramaturgo, encenador e realizador. Co-fundou o teatro da Cornucópia e foi director da sociedade artística Artistas Unidos, a qual concebeu diversos tipos de trabalhos, espectáculos e exposições, bem como produziu filmes, inclusive este, dedicado ao pintor Nikias Skapinakis, em coprodução com a RTP.
 
A maioria dos filmes realizados por Silva Melo são retratos de terceiros – artistas, escritores –, com excepção de Ainda Não Acabámos - como se fosse uma carta (2016), tido como um autorretrato, mas constituído, também, desses encontros com o outro que marcam uma vida. Foi terminado, em 2022, um filme dedicado ao Jorge Silva Melo, iniciado ainda pelo próprio, intitulado: Viver Amanhã Como Hoje.

A sessão contará com a presença de Eduardo Calheiros Figueiredo, membro da direcção da Zoom – Associação Cultural, cineclube de Barcelos, que fará a apresentação do filme.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até Terça-feira!



 

sábado, 11 de janeiro de 2025

376ª sessão: dia 14 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30



Cézanne sob o olhar da dupla Danièle Huillet e Jean-Marie Straub
 
Durante o mês de Janeiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga inicia o ano com um ciclo composto por seis filmes dedicados à pintura, intitulado: "Enquadramentos e Molduras - Pintores em perspectiva". Como habitualmente as sessões ocorrerão às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Este ciclo pretende refletir a estreita relação entre as diferentes artes visuais, especificamente entre a pintura e o cinema. 

Na próxima terça-feira, 14 de Janeiro, serão exibidos dois filmes de média-metragem da dupla de realizadores Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, sendo o primeiro Cézanne - Dialogue avec Joachim Gasquet, de 1990, e o segundo filme Une Visite au Louvre, de 2004.
 
Para ambos os filmes, os realizadores inspiram-se no livro de 1921, intitulado: “Cézanne”, de Joachim Gasquet, autor, o qual, terá privado com o pintor pós-impressionista Paul Cézanne. Recorrendo a planos fixos de imagem e à leitura de excertos da segunda parte do livro de Gasquet, conhecida como “Ce qu’il m’a dit” ou “O que Ele me Disse…”, Huillet e Straub complexificam, de forma crítica, o olhar sobre a pintura e o próprio cinema.  

Em Cézanne – Diálogo com Joachim Gasquet (1990), as palavras do pintor, usadas em voz-off, sobrepõem-se às imagens das suas pinturas e das fotografias tiradas dele, para discutir o processo criativo e o lugar do artista no Mundo. A narração percorre, também, excertos do filme “Madame Bovary” de 1934, de Jean Renoir, que por sua vez foi inspirado no romance literário, com o mesmo nome e de 1856, de Gustave Flaubert, passando, ainda, por cenas do filme “A Morte de Empédocles” (1987), da dupla Huillet-Straub, inspirado na obra escrita de Friedrich Hölderlin (1770-1843), detendo-se, ainda, nos planos da Montanha Sainte-Victoire, lugar que inspirou a obra artística de Paul Cézanne.

Em Une visite au Louvre, a arte, bem como a disposição e preservação desta nos museus, são objecto de análise através dos pensares de Cézanne. Neste filme, as memórias de Joachim Gasquet das suas conversas com o pintor são utilizadas para nos apresentar um olhar crítico sobre a pintura e as várias obras de diversos artistas expostos no Museu do Louvre, tal como as de Tintoretto, Delacroix, Courbet, entre outros. Durante o filme, graças aos planos longos é possível admirar as várias pinturas que o próprio Paul Cézanne contemplou.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até Terça!

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Van Gogh (1948) de Alain Resnais + Lust for Life (1956) de Vincente Minnelli

 
Por António Cruz Mendes

A figura romântica do artista que, apesar da incompreensão do público, sacrifica a vida à realização da sua obra tem protagonizado muitos filmes. Van Gogh é um caso exemplar. Nas últimas décadas, a sua vida e a sua obra motivaram a realização de vários filmes: em 1990,uma das curtas-metragens que fazem parte de Yume (Sonhos), de Akiro Kurosawa, foi-lhe consagrada; em 1991, Maurice Pialat, realizou Van Gogh; em 2014, Dorota Kobiela e Hugo Welchman, realizaram Loving Vincent (A Paixão de Van Gogh), um filme de animação totalmente pintado à mão no estilo do pintor; e, em 2018, Julian Schnabel (também ele um pintor), realizou At Eternity’s Gate (No Portal da Eternidade). Na sessão de hoje apresentamos dois filmes mais antigos: a curta-metragem Van Gogh, de 1948, de Alain Resnais, e o filme de Vincente Minelli, Lust for Life (Sede de Viver), de 1956.
 
Provavelmente, o nascimento e a difusão da fotografia e do cinema (que nos permite reproduzir com grande precisão as imagens que a realidade nos oferece) terá dado um contributo muito importante para a desvalorização da mimesis como elemento definidor da qualidade artística da pintura. E, nesse processo de invenção de formas desobrigadas de uma função mimética que vai caracterizar a arte moderna, as correntes expressionistas que não entendem a pintura como uma representação realista da realidade perceptível, mas como a sua transfiguração através da projecção imagética do mundo interior do artista, dos seus sentimentos e emoções, vão ter em Van Gogh um importante precursor.
 
O filme de Alain Resnais assume esta ideia de uma fusão entre a vida e a obra do artista oferecendo-nos um ensaio sobre Van Gogh que dispensa a encenação de episódios da sua vida e a própria representação física do pintor para se fundar exclusivamente na filmagem das suas pinturas, como se as suas paisagens e os seus retratos bastassem para nos revelar a sua personalidade, os seus propósitos, as suas obsessões e angústias.
 
O filme conduz-nos das obras do seu “período holandês”, onde, em tons sombrios, procura expressar a miséria dos operários e camponeses, para aquelas que realiza em Paris, onde descobre o impressionismo, e para as realizadas em Arles e, depois, em St. Remy e Auvers, onde pelo uso expressivo da cor e, depois, pela figuração retorcida da natureza, dos objectos e das pessoas, se afasta progressivamente da representação “impressionista” de puras sensações visuais. No entanto, Resnais decidiu desvalorizar esse processo evolutivo da pintura de Van Gogh para ressaltar a sua unidade fundamental e a sua dimensão humanista. Para isso, resolveu filmar a preto e branco, valorizando a importância da materialidade da pintura sobre a valia da cor. A câmara passeia-se pelas suas telas privilegiando planos de pormenor, para melhor evidenciar o fazer da obra, as texturas e as marcas deixadas pelos traços do pincel. Oferece-nos, assim, uma visão mais abstractizante da obra de Van Gogh para nos mostrar que essa coisa que a pintura é pode significar essa outra coisa que é a vida do artista.
 
Se o filme de Resnais procura compreender o homem a partindo de uma leitura da sua obra, o de Minnelli segue o caminho inverso e tenta perceber a obra de Van Gogh a partir da sua biografia. No entanto, um tanto paradoxalmente, dada a importância da cor na pintura de Van Gogh, no primeiro a realização optou pelo preto-e-branco, enquanto no segundo a vibração cromática das suas telas parece ecoar nas cores saturadas do filme.
 
Em Sede e Viver, seguimos também o trajecto, da Flandres a Paris e, daí, a Arles e ao hospício de Saint-Rémy e a Auvers que, com o auxílio do narrador, podemos observar em Van Gogh, mas, desta vez, pelos passos do próprio pintor. Ganham mais relevo os seus dramas amorosos e familiares e o papel de Theo como confidente e apoio, e vamos sabendo das suas intenções artísticas através das suas confissões e debates. No filme de Minnelli, as imagens dos quadros de Van Gogh continuam presentes, mas servem sobretudo para ilustrar uma narrativa biográfica.
 
Em Arles, Van Gogh julga ter alcançado o ápice da sua arte. Contudo, o estado de tensão emocional em que continua a viver agrava-se com a chegada de Gauguin e as frequentes e violentas discussões entre os dois acerca do sentido da vida e da arte. A suposta loucura de Van Gogh encontra em Sede de Viver um relevo particular. Na verdade, ela nunca foi diagnosticada e supõe-se que o famoso episódio do corte na orelha possa ter ocorrido no contexto de uma crise de epilepsia. Note-se, no entanto, que a epilepsia era considerada à época uma doença psiquiátrica. A repetição desses ataques terá feito Van Gogh duvidar da sua própria sanidade mental e, embora no intervalo das crises tenha retomado o seu trabalho de pintor, o carácter atormentado das obras que pinta em Saint-Rémy e Auvers denotam a angústia que o consome e anunciam o desfecho final.
 
O dilema existencial de Van Gogh é o tema central de Sede de Viver (“desejo de viver” numa tradução mais literal de “lust for life”): para ele, a vida não tem sentido à margem da criação artística, mas as energias que ela consome tornam-lhe a vida insuportável.