quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Intervenção Divina (2002) de Elia Suleiman



por Alexandra Barros
 
Nalguns países, Intervenção Divina tem associado o subtítulo Uma Crónica de Amor e Dor. É entre estes dois pólos que E.S., a personagem principal, vive o seu dia-a-dia. E.S., interpretado pelo próprio realizador, Elia Suleiman, é um árabe que habita nos territórios de Jerusalém sob ocupação israelita. O pai vive em Nazaré[1] e é hospitalizado após sofrer um ataque cardíaco decorrente das dificuldades económicas e transtornos emocionais provocados pela ocupação. Do outro lado da fronteira, em Ramallah[2] , vive a namorada de E.S.. Impossibilitada de atravessar a fronteira, que está aberta só para quem vive no “lado certo”, é E.S. quem a atravessa. Estaciona junto do checkpoint e é aí que os dois se encontram. Entre as visitas ao pai hospitalizado e os encontros com a namorada, entrecruzam-se em Intervenção Divina pequenas histórias de palestinianos cujo quotidiano é marcado pelos efeitos da invasão política e militar.
 
O tom geral de Intervenção Divina é de humor negro. Frequentemente comparado a Jacques Tati ou Buster Keaton, Suleiman mantém-se (quase) impassível em (quase) todas as circunstâncias. De olhar melancólico e intenso, não diz uma única palavra durante todo o filme. É um filme essencialmente visual, com poucos diálogos, mas com temas musicais criteriosamente escolhidos, de forma a criar ou acentuar o carácter poético ou simbólico das cenas. O tema I put a spell on you, de Screamin’ Jay Hawkins, na versão de Natacha Atlas, é particularmente expressivo numa cena memorável em que um semáforo desencadeia uma tensa medição de forças.
 
Além da música, outro elemento marcante de Intervenção Divina é a coreografia. Os encontros entre E.S. e a namorada, por exemplo, com os seus pas de deux executados pelas respectivas mãos, configuram belíssimas cenas de expressão muda de desejo amoroso. A forte carga simbólica ou poética de algumas cenas torna-as igualmente memoráveis: um Pai Natal aterrorizado por um bando de rapazes que o perseguem por uma encosta de Nazaré acima; um balão subversivo, com a cara sorridente de Yasser Arafat estampada, a atravessar, pelo ar, fronteiras fechadas em terra; um confronto surreal, com balas paradas à la Matrix, entre uma ninja palestiniana e um grupo armado israelita; uma torre de vigilância que se desmorona à passagem de uma palestiniana que paralisa os soldados do checkpoint com o seu olhar desafiante e as suas desenvoltas e garbosas passadas, como se caminhasse na passerelle de um desfile de moda.
 
A violência latente e o absurdo estão no âmago desta(s) história(s) de um povo sob ocupação. Há quem espere todos os dias por um autocarro que nunca vem; há insultos murmurados por baixo de acenos sorridentes e aparentemente amistosos; há caroços de fruta, atirados como granadas, que rebentam tanques militares; há um ciclo interminável de lixo lançado para o quintal do vizinho e devolvido para o primeiro: “- Vizinho, porque é que atira o lixo para o meu quintal? Não tem vergonha? / - O lixo que atiro para o seu quintal é o mesmo que atirou para o meu jardim.”
 
O filme foi muito bem recebido em todo o mundo. Foi nomeado para a Palma de Ouro de Cannes e ganhou o Prémio do Júri e o Prémio FIPRESCI desse festival. Tentou candidatar-se aos Óscares, mas a Academia rejeitou a candidatura com um argumento que parece escrito para o próprio filme: os filmes têm que ser nomeados pelo país de origem e a Palestina não era então considerada oficialmente um país. Entretanto, em Setembro passado, a Palestina foi reconhecida como um Estado soberano por mais de 150 dos 193 países-membros da ONU. Um gesto simbólico já que, nos anos que decorreram desde que o filme foi feito, o conflito israelo-palestiniano se foi agravando e complexificando, evoluindo a partir de 7 de Outubro de 2023 de confrontos mais localizados para uma guerra de larga escala, com bombardeamentos, morte de civis e destruição urbana massivos. Termos como “genocídio”, “limpeza étnica”, “colonatos”, “conquista de território”, “massacre”, “crimes contra a Humanidade” passaram a ocupar lugar central no discurso global. As partes directamente envolvidas no conflito estiveram ausentes do recente “tratado de paz”, bizarramente assinado por mediadores sem legitimidade política real nos territórios afetados.
 
Elia Suleiman declarou, numa entrevista à publicação Notebook da plataforma Mubi, que apesar de adorar activismo, não é um activista. No entanto, os seus filmes configuram inegavelmente uma forma de resistência. De acordo com o próprio, por um lado, o humor realça os absurdos, provoca a reflexão, estimula um envolvimento profundo dos espectadores com as questões sociais e políticas que atravessam os seus filmes. E por outro, e talvez ainda mais importante, o riso combate o desespero. As assimetrias de poder, a violência, o ódio e a desumanidade mostrados neste filme atingiram dimensões brutais nos últimos anos. A paz efectiva parece cada vez mais improvável. Para terminar esta tragédia infindável só parece haver uma solução: intervenção divina. 
 

[1] Cidade israelita, com um grande número de habitantes árabes.

[2] Cidade palestiniana 
 
 
 
 
 
 
 

domingo, 9 de novembro de 2025

422ª sessão: dia 11 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30



Esta terça, INTERVENÇÃO DIVINA de Elia Suleiman no Lucky Star – Cineclube de Braga

Durante o mês de novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência”, dedicado a quatro obras fundamentais do cinema palestiniano contemporâneo. De diferentes épocas e gerações, estes filmes partilham uma mesma urgência: a de pensar o território, a memória e a sobrevivência cultural de um povo que resiste através da imagem. Como é habitual, as sessões ocorrem às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.

Na próxima terça-feira, 11 de novembro, o ciclo prossegue com Intervenção Divina (2002), de Elia Suleiman, um dos filmes mais emblemáticos do cinema palestiniano. Neste filme, Suleiman constrói uma sátira política sobre o dia-à-dia em Jerusalém, Nazaré e Ramallah, sob ocupação israelita. O realizador apresenta episódios fragmentados do quotidiano: controlos militares, vizinhos desconfiados e uma relação de amor impossível entre um homem de Nazaré e uma mulher de Ramallah, separados por um posto militar. Em suma; histórias que revelam o absurdo e o peso da opressão e do conflito. 
 
Intervenção Divina conquistou o Prémio do Júri em Cannes (2002) e o Prémio da Crítica Internacional (FIPRESCI), sendo o primeiro filme palestiniano a ser distinguido com prémios principais neste festival. Reconhecido ainda em Toronto, Chicago e Valladolid, consolidou Suleiman como uma das vozes mais originais do cinema do Médio Oriente. O próprio cineasta, que interpreta uma versão ficcional de si mesmo, inscreve o filme na tradição do burlesco, lembrando Jacques Tati e Buster Keaton, para abordar a alienação e o absurdo do presente.

Nascido em Nazaré em 1960, Elia Suleiman é uma figura central do cinema palestiniano. A sua obra, que inclui: Crónica de um Desaparecimento (1996), O que Resta do Tempo (2009) e O Paraíso, Provavelmente (2019), combina humor, minimalismo formal e crítica política, explorando o exílio e a identidade nacional com uma linguagem visual própria. Com Intervenção Divina, Suleiman propõe um retrato tragicómico da Palestina contemporânea, um território onde a violência e o amor coexistem e onde o gesto poético é, por si só, um gesto político.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Fertile Memory (1981) de Michel Khleifi



por Jessica Sérgio Ferreiro
 

O ciclo de cinema “Palestina Livre: O Cinema como Resistência” propõe um olhar sobre a vida, a memória e a resistência de um povo através das suas próprias imagens. Maioritariamente através do documentário, mas também da ficção, estes filmes revelam histórias de perda e de pertença, de quotidianos sob ocupação e de gestos que afirmam o direito a existir no seu próprio território. Propomos, assim, um ciclo plural (filmes de 1980 a 2024) de um território sob jugo colonial, onde o cinema se torna espaço de memória, expressão e sobrevivência.

 Realizado em 1980, Fertile Memory é o primeiro filme integralmente rodado na Palestina e um dos marcos inaugurais do cinema palestiniano. O filme foi restaurado e digitalizado pela CINEMATEK da Bélgica em 2023, permitindo a exibição deste, décadas depois da sua estreia. Em Fertile Memory, Michel Khleifi mostra o quotidiano feminino como lugar de resistência. Através de duas histórias paralelas, o realizador compõe um retrato político de um país dividido e de uma identidade em exílio permanente, a partir do retrato de duas mulheres palestinianas de gerações e condições sociais distintas: Farah e Sahar, entrando, ainda, em cena outras mulheres que fazem parte do espaço familiar destas personagens.

Farah, cuja família foi expropriada após a ocupação israelita, é uma viúva, já idosa, obrigada a trabalhar numa fábrica após a perda das suas terras. As suas memórias do passado e as lembranças da perda coexistem com a rotina, refortalecendo a sua obstinação em resistir às pressões israelitas para que “troque”, ou melhor, abandone a sua casa familiar. Sahar, por sua vez, é escritora e professora em Ramallah, confrontada com as limitações impostas pela ocupação e com as tensões próprias do seu tempo, onde tradição, moral e emancipação se entrecruzam em permanente conflito.

Estas duas personagens femininas (uma ancorada no passado, outra projetada no futuro), impelem-nos a reflectir sobre o tempo e o espaço, a memória e o corpo presente como territórios de resistência sob ocupação colonial, revelando, ainda, as tensões entre género, classe e identidade. Em suma, através destas duas figuras, Khleifi aborda simultaneamente a condição feminina e a experiência coletiva da ocupação. Ambas enfrentam opressões múltiplas: a violência externa do poder israelita, a rigidez patriarcal da sociedade e os conflitos interiores de quem procura resistir e existir com dignidade.

O realizador alterna entre o registo documental e a encenação, explorando o modo como o quotidiano (descascar legumes, apanhar o autocarro, cuidar da casa e dos mais novos, cantar) se transforma num acto cultural e de resistência. As imagens tornam-se, assim, um espaço de inscrição e preservação da memória. Através da imagem, o filme regista as práticas, a tradição oral e a cultura material de um povo, visíveis no quotidiano, nos espaços domésticos das personagens, nas arquitectura dos bairros, afirmando a existência da Palestina, da sua história e da sua cultura. Apesar da diversidade religiosa e social que o compõe, é na sua heterogeneidade e nas diversas práticas culturais que o povo palestiniano se reconhece e existe.

A narrativa é fragmentária, composta por planos longos, por gestos e silêncios. O filme avança entre o documental e o encenado, privilegiando a imagética. A câmara detém-se nos rostos, nas mãos, nos campos, nas casas; observa o quotidiano devagar para poder gravá-lo na memória. A ausência de narração imposta permite que as imagens falem por si, revelando um povo cuja vida continua, apesar do cerco e da violência. Cada gesto quotidiano, demarca a presença palestiniana, uma cultura. Em cada prática, a história de um povo, situado em legítimo território. Os objetos que decoram a casa, os retratos dos familiares (alguns desaparecidos, outros exilados), as hortas cultivadas, os pratos cozinhados em grupo, as relações de vizinhança, os instrumentos musicais que acompanham as canções tradicionais, a palavra escrita e declamada por Sahar, são as provas da presença palestiniana, em contraposição à “Lei dos Ausentes”, ditada e imposta pelo governo israelita, que legitima a expulsão dos palestinianos das suas casas e terras.

Mais do que provar a existência e legitimidade de um povo, Khleifi restitui humanidade e “normalidade” à Palestina, filmando-a de dentro, a partir dos espaços domésticos e seus quotidianos. As mulheres são personagens principais, tidas aqui como depositárias da memória e da terra. O título Fertile Memory (Memória Fértil) é tanto uma alusão à fertilidade agrícola quanto à capacidade do pensamento e da memória gerar um futuro. Como referido por Stoffel Debuysere[1], o próprio Khleifi disse que o filme foi feito “para as mulheres da Palestina, e através delas, para a Palestina”. Mais do que um retrato, é um gesto de restituição: dar corpo e voz àqueles que a História tende a marginalizar. Debuysere relembra, ainda, a dimensão ficcionada e utópica que Edward Said denotou ao analisar Fertile Memory: a imagem de Farah a pisar novamente a sua terra, com os braços abertos, é um momento de reconciliação imaginária entre o indivíduo e o território, uma ligação que a ocupação tenta apagar, mas que o cinema reinscreve. Ao centrar-se no olhar feminino e na terra como símbolos da identidade palestiniana, Khleifi inaugura uma nova fase do cinema do país: um cinema da diversidade e da experiência vivida, que rejeita a imagem homogénea e/ou convencionada da nação e expõe as suas contradições e conflitos internos.

A leitura do filme à luz da teoria da necropolítica de Achille Mbembe[2] permite compreender o modo como Khleifi traduz, em termos visuais, as políticas da vida e da morte que estruturam o quotidiano palestiniano. Mbembe define a necropolítica como o poder soberano de decidir quem pode viver e quem deve morrer, um poder que, no contexto colonial e de ocupação, se manifesta na gestão da violência, no confinamento e na precarização da vida através de biopolíticas que, algumas de forma mais subtil e outras de forma mais violenta, pretendem gerir as populações.

Em Fertile Memory, a ocupação não é mostrada através de combates ou confrontos, mas pela administração/gestão (biopolítica) da existência: perda de terra, o acesso aos terrenos para a agriculturas e recursos essenciais, ausência de mobilidade, o arame farpado que acompanha os checkpoints, a lenta erosão da liberdade. A necropolítica aparece aqui como uma força invisível que organiza, ou perturba, o quotidiano e molda o tempo das personagens. No entanto, Khleifi responde a essa política da morte com imagens de vida. O simples acto de cuidar, trabalhar ou lembrar adquire uma dimensão política. Através do cinema, Khleifi reivindica, através da imagem, o direito de existir e de ser visto fora da lógica da violência. Assim, Fertile Memory não é apenas um testemunho histórico, é uma contra-imagem à necropolítica: um filme que faz da sobrevivência um acto de resistência  da memória uma forma de vida. 

 

[1] www.avilafilm.be/en/film/fertile-memory

[2] Mbembe, Achille (2019 [2016]). Necropolitics. Duke University Press.

 

 

Folha de Sala 

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

421ª sessão: dia 4 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, “Fertile Memory” de Michel Khleifi no Lucky Star – Cineclube de Braga

Durante o mês de novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência”, dedicado a quatro obras fundamentais do cinema palestiniano contemporâneo. De diferentes épocas e gerações, estes filmes partilham uma mesma urgência: a de pensar o território, a memória e a sobrevivência cultural de um povo que resiste através da imagem. Como é habitual, as sessões ocorrem às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.

Na próxima terça-feira, 4 de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga inaugura o ciclo com a exibição de Fertile Memory (1981) ou Memória Fértil, de Michel Khleifi, o primeiro filme inteiramente rodado na Palestina. 
 
Através do registo documental e da construção ficcional, Khleifi filma o quotidiano de duas mulheres de gerações distintas (uma viúva e uma escritora) que vivem sob a ocupação israelita. Farah, viúva, luta pela posse das suas terras confiscadas e Sahar, escritora, procura afirmar-se num meio patriarcal. Assim, Khleifi revela neste filme como o político se inscreve no íntimo e no corpo.

Realizado com poucos recursos, o filme destacou-se pela sua força poética e pelo olhar humanista que rompe com a visão estereotipada da Palestina como mero cenário de conflito. Ao filmar o gesto quotidiano sob uma perspectiva feminina, Khleifi inaugura uma estética que alia resistência e sensibilidade, tornando a memória um verdadeiro território de afirmação.

Michel Khleifi, nascido em Nazaré em 1950, é um dos nomes fundadores do cinema palestiniano moderno. Estudou cinema na Bélgica, onde se radicou, e foi a partir dessa distância que encontrou o espaço para revisitar a sua terra natal com um olhar de quem observa e recorda. O seu trabalho influenciou toda uma geração de cineastas palestinianos e árabes, entre eles Elia Suleiman e Annemarie Jacir.

Apresentado em vários festivais internacionais, tal como Cannes e de Gent, entre outros, Fertile Memory foi amplamente reconhecido pela crítica e hoje é considerado um marco histórico do cinema político e feminista do Médio Oriente. Em 2023, o filme foi restaurado e digitalizado pela Cinematek da Bélgica, permitindo o regresso às salas desta obra seminal, cuja actualidade permanece urgente.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 30 de outubro de 2025

As Fado Bicha (2024) de Justine Lemahieu


por Estela Cosme
 
À primeira vista, nada sobre o fado é revolucionário. Intrinsecamente apelidado de tradição centenária, é difícil de imaginá-lo fora das casas de fados habituais, sem as convenções predefinidas que o acompanham, sem as amarras que o atam ao passado. Até que um dia o fado seguiu-se com a palavra “bicha”, e as nossas suposições foram postas em causa. Tudo graças ao poder e ao talento do duo Fado Bicha (ou As Fado Bicha), composto por Lila Fadista e João Caçador, cujo projeto demonstra que o revolucionário tem sempre origem no tradicional, pois só depois de olhar ao que já existe é que podemos criar algo novo. E por muito que possa incomodar aos mais conservadores, o que brilha tem sempre o seu lugar na ribalta (e no "zeitgeist" cultural português).
 
Mas o que este grupo tem de revolucionário não é só consequência dos elementos visuais arrojados, embora estes dissolvam a tradicional binariedade de género. Para além de cantarem sobre histórias e experiências da comunidade LGBTQIA+, o revolucionário existe também devido à vulnerabilidade que tanto João como Lila incutem àquilo que tocam e cantam. Porque não existe algo mais vulnerável que a verdade, coisa que o duo transmite com clareza e com compromisso sempre que pisam os palcos. O documentário As Fado Bicha vai ainda mais longe e mostra-nos que essa veracidade existe porque é o espelho da honestidade a que assistimos nos camarins. Quer se estejam a maquilhar a si próprios, ou a maquilhar-se um ao outro, Lila e João demonstram uma franqueza que só se poderia capturar num novo tipo de fado. E por isso o tiveram que reinventar.
 
Este novo fado pode não agradar aos saudosistas e aos tradicionalistas. A mudança é inimiga da preservação, mas só com ela é que pode haver uma evolução do género musical e da nossa cultura. “Não há mudança sem desconforto” afirma João Caçador no documentário, defendendo que o trabalho da banda é necessário para que o fado evolua para novas formas de se expressar, e para ter novas coisas que expressar também.
 
A música não existe num vácuo e deve moldar-se aos ventos de mudança que existem na sociedade portuguesa. Abrir as portas do fado a questões emergentes de identidade, de sexualidade e de expressão não só enriquece o género como traz um novo público que o quer ouvir e aplaudir. Num mundo em que nos encostam à parede para sermos quem querem que nós sejamos e não quem realmente somos, o fado não é só destino e passado. O fado é ação e mudança também. E se algo está mal, muda-se.