quarta-feira, 12 de março de 2025

Anjos Caídos (1995) de Wong Kar-Wai


por Estela Cosme

O néon está em todo lado na Hong Kong de Anjos Caídos. As cores vivas da atmosfera poluem o ecrã de forma incessante. São muito poucos os sítios em que o verde, o amarelo ou o vermelho nos fogem do olhar, de tal forma que nem notamos que todas as cenas ocorrem durante a noite, como se tudo acontecesse numa madrugada contínua. Mas as cores só se destacam graças ao contraste com o preto das sombras, pois é nos lugares sombrios que as personagens de Wong Kar-Wai se cruzam.

A dualidade das cores só intensifica os dilemas das personagens que encontramos: o assassino que pensa em reformar-se, a sua parceira apaixonada, o criminoso mudo que vende gelados, a sua amante tagarela, a prostituta que se atrai pelo assassino. A câmara mostra-nos close-ups de todas estas personagens em busca de conexão humana nesta cidade noturna, à procura de uma ligação que finalmente enriqueça as suas vidas. Todas elas procuram alguém que fale a sua linguagem ("Speak my language", repete a canção a tocar na jukebox).

Há um sentimento de urgência em todas estas personagens que deambulam pela noite, à procura de uma mudança que ainda não lhes é evidente. O filme foi lançado em 1995 e Hong Kong estaria a preparar-se para a sua transferência territorial para a China em 1997. Isto evidencia personagens marcadas por um presente incerto com ânsias de uma época na qual só o contacto humano pode trazer algum alívio.

 Estamos em plenos anos 90 do último século, onde os objetos materiais são uma tentativa para trazer algum conforto no dia a dia, com tecnologia que agora nos evoca uma grande nostalgia: uma jukebox de CDS, telefones com corda fixados à parede, uma carrinha de vender gelados, uma mini TV, uma câmara de filmar, até secadores de cabelo para as permanentes de outros tempos. Mas tudo são distrações para o que as personagens procuram. Até mesmo para o criminoso que apenas pode relembrar o seu pai, através do vidro de uma televisão, o sabor dos seus cozinhados perdidos à memória.

Este filme foi criado a partir de ideias já pensadas por Kar-Wai para Chungking Express (1994). Aliás, o realizador defendeu que ambos os filmes deveriam ser vistos como um só. No entanto, a realidade de ambos os filmes é bem diferente. Enquanto em Chungking Express a personagem com o número 225 é um polícia, em Anjos Caídos é um criminoso (as personagens são ambas interpretadas pelo mesmo ator, Takeshi Kaneshiro, e são marcadas por infortúnios relacionados com ananás). No filme de 1994, as relações são marcadas pela luz do dia, mas acabam durante a noite. Em Anjos Caídos, elas fazem-se e desfazem-se sob as lâmpadas noturnas. A sensação de otimismo é bem mais forte em "Chungking" e em "Anjos" parece bem mais fatalista, embora em ambos não haja garantias que as relações funcionem. Mesmo assim, as procuras de ligações interpessoais dominam as preocupações das personagens. Infelizmente, elas acabam por ser todas temporárias.

A criação de laços no meio urbano é uma preocupação da nossa contemporaneidade e Wong Kar-Wai apresenta-o de forma visual e emocionalmente potente, sem véus que tapem as frustrações e solidões que as acompanham. Mas também mostra que há momentos em que são possíveis e que podem existir, nem que seja momentaneamente. Na última cena, finalmente, vemos um tom azulado que anuncia o raiar do dia. O zumbido do néon desaparece e apercebemo-nos que nem todas as conexões são duradouras, mas todas elas são eletrizantes.

 

 Folha de Sala

sábado, 8 de março de 2025

387ª sessão: dia 11 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Anjos Caídos de Wong Kar-Wai na próxima terça-feira
 
Encerrado o ciclo de fevereiro dedicado ao cinema japonês, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou um novo ciclo focado no cinema asiático. Para o mês de março de 2025 foi programado um conjunto de filmes do realizador chinês Wong Kar-Wai. Assim, escolheram-se quatro filmes para constituir uma pequena retrospectiva deste emblemático realizador. Como habitualmente as sessões ocorrerão às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta terça-feira, 11 de Março, o ciclo prossegue com o filme Anjos Caídos de 1995. Com uma estética visual arrojada, com a habitual cinematografia de Christopher Doyle, e uma narrativa não linear, o filme captura a essência da solidão urbana e o anseio universal pela conexão humana

Inicialmente, a estória pensada para Anjos Caídos iria ser parte integrante do filme Chungking Express (1994). Filme, o qual, foi exibido na semana passada. Contudo, o desenvolvimento e expansão do enredo de Anjos Caídos favoreceu a produção de um segundo filme que lhe seria inteiramente dedicado, tornando-se uma referência importante na filmografia de Wong Kar-Wai.

Em Anjos Caídos, um assassino profissional, atraído pela sua parceira durante o seu último serviço, questiona-se sobre um possível envolvimento amoroso com esta. Durante esta jornada introspectiva, pelas ruas de Hong Kong, encontra um jovem ladrão, He Zhiwu, que ficou mudo depois de ter ingerido ananás enlatado fora de validade. He Zhiwu é também uma referência ao filme Chungking Express, sendo também uma das personagens do filme. Com o mesmo nome e interpretada pelo mesmo actor, a personagem é igualmente obcecada pela validade das latas de ananás, as quais acabaria por ingerir depois de uma desilusão amorosa.  No entanto, em Chungking Express, He Zhiwu é um detective e em “Anjos Caídos”, é um criminoso.

Anjos Caídos, dirigido por Wong Kar-Wai, mergulha nas vidas solitárias e marginais das ruas de Hong Kong, explorando as jornadas emocionais de personagens que vagueiam pelas sombras da cidade. No meio do caos e a beleza das ruas, o filme Anjos Caídos oferece uma visão cativante e poética da condição humana e seus dilemas.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça-feira !
 


quarta-feira, 5 de março de 2025

Chungking Express (1994) de Wong Kar-Wai






 Por Rute Castro

Wong Kar-Wai, nascido em 1958, consagra-se como um dos realizadores mais originais e admirados do cinema contemporâneo, destacando-se pela sua abordagem intimista e sensorial que rompe com as convenções narrativas lineares. Em Chungking Express, o diretor transforma a realidade urbana de Hong Kong num mosaico visual onde o efémero se converte em poesia.

Importa sublinhar que o título original, que serve como metáfora para descrever Hong Kong como uma “selva de concreto”, enfatiza o paradoxo de uma metrópole densamente povoada, onde, apesar da proximidade física, muitos vivem isolados em mundos interiores particulares.

O estilo de Wong Kar-Wai é marcado pela fusão do rigor formal com uma liberdade expressiva singular. O seu uso inovador das cores, dos enquadramentos e da montagem cria composições que transcendem o tempo e o espaço, convidando o espectador a uma experiência quase meditativa. O realizador explora de forma brilhante a dualidade entre o caos urbano e a solidão pessoal, transformando cada cena num manifesto visual que reflete as contradições da modernidade.

Em Chungking Express, a fragmentação da narrativa é empregue como um recurso para intensificar a subjetividade das emoções, permitindo que a narrativa se construa através de momentos, gestos e olhares, mais do que através de diálogos ou enredos tradicionais. Esta abordagem desafia o espectador a interpretar e a completar a história com base nas sensações evocadas por cada imagem, o que confere ao filme um caráter profundamente pessoal e intimista.

A importância deste filme no panorama mundial deve-se, em grande parte, à capacidade de Wong Kar-Wai de reinventar a linguagem cinematográfica. A sua visão estética, aliada a uma sensibilidade única, revolucionou a forma de contar histórias no cinema, posicionando-o como referência incontornável entre os realizadores contemporâneos. A influência de Chungking Express estende-se para além dos limites do cinema asiático, tendo impactado gerações de cineastas e contribuído para a difusão de novas tendências narrativas e visuais. Este filme não só redefiniu os parâmetros do cinema urbano, mas também se inscreveu como um estudo profundo sobre a natureza efémera das relações humanas e sobre a constante busca de significado num mundo moderno e acelerado.

Wong Kar-Wai demonstra, com este trabalho, a sua maestria em transformar o ordinário em extraordinário. A sua capacidade de capturar momentos fugazes e de imbuí-los de uma beleza melancólica e reflexiva, distinguindo-o como um dos melhores realizadores do mundo contemporâneo. O seu trabalho evidencia uma constante experimentação e uma ousadia estética que o fazem sobressair, sendo Chungking Express um marco irreverente que continua a influenciar e a inspirar o cinema global.

A banda sonora de Chungking Express é tão emblemática como o próprio filme. Na primeira história, a música principal é “Things in Life”, de Dennis Brown, que cria uma atmosfera nostálgica e melancólica. A canção “Baroque”, de Michael Galasso, aparece em momentos chave, complementada por outras faixas instrumentais – “Fornication in Space”, “Heartbreak” e “Sweet Farewell” – que reforçam a sensação de efemeridade e introspeção. Na segunda história, “California Dreamin’”, dos The Mamas & the Papas, assume um papel central, sublinhando os conflitos internos da personagem Faye Wong, que ainda interpreta uma versão de “Dreams” dos The Cranberries, usada também nos créditos finais. Este conjunto musical teve um papel decisivo na introdução do dream pop no mercado de Hong Kong, influenciando não só o panorama musical local, mas também a evolução do Canto-pop.

Resposta crítica e legado: O impacto de Chungking Express na crítica e no público tem sido profundo. O conceituado crítico Roger Ebert classificou o filme com três de quatro estrelas, assinalando que a obra se revela sobretudo para os verdadeiros amantes do cinema, que se deixam envolver pelo estilo singular de Wong Kar-Wai, mesmo que a narrativa não seja convencional. Por outro lado, Janet Maslin, do The New York Times, criticou a energia quase “MTV” do filme, argumentando que o excêntrico comportamento dos personagens, por vezes, beira o exagero. Contudo, tais críticas apenas sublinham a natureza cerebral e desafiante da obra, que, através da sua estética inovadora, convida o espectador a uma reflexão profunda sobre a essência da sétima arte. A influência de Chungking Express estende-se, ainda, aos rankings internacionais – desde uma posição de destaque em sondagens realizadas pelo British Film Institute até à inclusão na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos da revista Time –, confirmando o seu legado duradouro e a sua importância crucial para o cinema mundial

 

 Folha de Sala

domingo, 2 de março de 2025

386ª sessão: dia 4 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Viagem alucinante com Chungking Express de Wong Kar-Wai na próxima terça-feira
 
Encerrado o ciclo de fevereiro dedicado ao cinema japonês, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou um novo ciclo focado no cinema asiático. Para o mês de março de 2025 foi programado um conjunto de filmes do realizador chinês Wong Kar-Wai. Assim, escolheram-se quatro filmes para constituir uma pequena retrospectiva deste emblemático realizador. Como habitualmente as sessões ocorrerão às terças-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.
 
Esta terça-feira, 4 de Março, o ciclo arranca com o filme “Chungking Express” (1994). Esta obra-prima de Wong Kar-wai, é uma imersão emocional nas intrincadas camadas da vida urbana de Hong Kong.
 
Este filme apresenta duas histórias entrelaçadas de amor, solidão e autodescoberta, ambientadas nas agitadas ruas da cidade. Com personagens complexas e uma trilha sonora evocativa, "Chungking Express" convida-nos a refletir sobre a natureza efémera da vida e as nuances emocionais que permeiam as nossas experiências quotidianas.

Wong Kar-Wai, nascido em Xangai, cresceu em Hong-Kong onde realizou a maior parte dos seus filmes, inspirando-se nas ruas movimentadas da vida urbana para criar uma estética única. “Chungking Express” foi produzido de forma bastante improvisada, o realizador escrevia as cenas no dia anterior ou na manhã das filmagens.
 
O filme originalmente pretendia representar três histórias separadas que tinham as ruas de Hong-Kong como cenário comum, mas uma delas acabou por ganhar vida própria. O realizador optou por retirar a história de “Chungking Express” para a usar na obra seguinte “Anjos Caídos” (1995). Filme, o qual, será exibido no dia 11 de março.

Chungking Express foi produzido em apenas três meses, apesar das várias improvisações e regravações de última hora durante a pós-produção do filme. Filme, o qual, foi finalizado e lançado no mesmo ano que “Cinzas do Passado”, em 1994.

Graças ao filme “Chungking Express”, Wong Kar-Wai obteve reconhecimento internacional na Europa e nos Estados Unidos. O filme obteve algumas premiações, inclusive do “Hong-Kong Film Awards”, nomeadamente o de melhor cinematografia, melhor realizador e melhor ator.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até Terça!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O Monge Apostador (1963) de Shôgorô Nishimura



 Por António Cruz Mendes

É bem conhecida a aposta de Pascal: Deus existe ou não? Não existem provas indesmentíveis da sua existência, mas temos que decidir a nossa vida em função da resposta que dermos a essa pergunta. Ora, se apostarmos na sua existência e ela se revelar verdadeira, teremos um ganho infinito – podemos alcançar uma vida de eterna felicidade. Por outro lado, se ele não existir, a nossas perdas serão finitas, de importância relativamente pequena. Então, por que não apostar na existência de Deus? 

Aquilo que está em questão, para Shundô Harumichi, não tem a mesma transcendência, mas ele confronta-se com um dilema semelhante: Se o templo de Hojûin, o negócio que sustenta a sua família, está arruinado, se a sua reputação é deplorável, se lhe é impossível angariar os donativos necessários à sua reabilitação, então por que não apostar o seu pecúlio nas corridas de bicicletas? 

O argumento de Pascal foi rejeitado por muitos teólogos porque, partindo de uma posição agnóstica, se resolvia num cálculo de perdas e ganhos excessivamente semelhante ao dos homens dos negócios. Mas, no caso de Harumichi, esse problema não se coloca. Afinal, como ele próprio diz, realizar cerimónias fúnebres pode ser um dever de um monge, “mas quando se pede dinheiro em troca, já não se trata de religião. É um negócio”. 

Aliás, um negócio que ele nunca quis assumir. Obrigou-o a isso a morte do irmão e a pressão paterna e a sua aposta não deu os resultados esperados. Pelo contrário, conduziram-no, numa vertigem suicida, a uma sucessão de perdas que o conduziram ao álcool e à miséria. As tragédias acarretadas pelo vício do jogo têm sido um tema tratado por muitos autores. Na literatura, recordo O Jogador, de Dostoievki, ou 24 Horas da Vida de uma Mulher, de Stefen Zweig. Este último foi adaptado para o cinema por Robert Land, em 1931, e muitos outros filmes debruçaram-se sobre o assunto. Como nestas obras, em O Monge Apostador podemos seguir o processo de degradação moral a que o vício de jogo conduz a sua vítima. No entanto, o tema é aqui tratado de uma forma singular, entretecido com uma história de família que lentamente se vai desvendando e com uma outra história que decorre em paralelo, a história de Sokito, uma jovem violada pelo padrasto e explorada por uma proxeneta que procura protecção junto de Harumichi, o seu antigo professor. Curiosamente, um pretendente de Sokito, é o filho da velha alcoviteira, talvez atrasado mental, que passa o seu tempo a “filmar” com um brinquedo aquilo que se vai passando à sua volta… 

Neste cruzamento de várias histórias, o filme acaba por nos oferecer uma perspectiva do Japão do pós-guerra, uma sociedade onde a pobreza ainda persiste, sendo ela, como nos diz um colega de Haramuchi, “uma aflição que atravessa o cérebro” e que faz com que “os homens fiquem psicóticos” e percam “o seu raciocínio”. 

A dada altura, parece que o filme vai decidir-se num banal happy end... Mas, Nishimura contraria essa expectativa na sua cena final, de uma divertida ironia, onde vemos Harumishi assumir um novo papel, que lhe permite finalmente conciliar muito pragmaticamente a pregação dos ensinamentos budistas e os seus conhecimentos do mundo das apostas nas corridas de ciclismo. Enfim, um “monge apostador”.


sábado, 22 de fevereiro de 2025

385ª sessão: dia 25 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30



Mestre Shôgorô Nishimura na útlima sessão de fevereiro do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais foram exibidos às segundas e terças.
 
O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos” termina hoje.
 
O segundo ciclo resultou da parceria com o XI Festival Convergências e foi reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procurou diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorreram às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta terça-feira, 25 de fevereiro, exibir-se-á o filme “O Monge Apostador”, de 1963, do mestre Shôgorô Nishimura. e será a última sessão do ciclo “Mestres Japoneses Desconhecidos”, cujos filmes foram realizados entre os meados dos anos 50 e inícios da década de 60, abrangendo, assim, a “Era Dourada” do cinema japonês, bem como a “nova vaga” que imediatamente lhe seguiu.

Findada a ocupação e controlo americano no Japão, inclusive na produção cinematográfica, a partir de 1952, as obras fílmicas realizadas asseveraram o estatuto do cinema japonês no Mundo, olhando para o seu próprio contexto de forma crítica e ocupando-se de temas histórico-políticos e socioculturais de maneira, por vezes, provocadora, enquadrados numa estrutura formal e estética que distingue o cinema japonês de outros cinemas.

Em “O Monge Apostador” (1963), Harumichi, um professor de ensino médio, regressa para substituir o sacerdote do Templo Hojûin após o seu falecimento. Contudo, deparado com dificuldades financeiras do templo que depende de doações, desmoraliza-se e acaba por se refugiar no jogo. Apesar dos seus esforços para manter uma vida equilibrada, torna-se prisioneiro do vício. O filme é um retrato satírico da sociedade japonesa de então.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas-feiras. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça-feira!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A Tragédia de Bushidō (1960) de Eitarō Morikawa





Por Catarina Bernardo

Considerado uma obra de arte por ser o único filme do realizador, A Tragédia de Bushidô (1960) transporta-nos para um Japão onde fortificava um sistema baseado no código samurai, no qual, sempre que um senhor feudal morria, um samurai era escolhido para ser executado, permitindo-lhe assim acompanhar o seu mestre na morte e preservar a honra do clã. Com uma narrativa repleta de tragédia e crítica social, Eitaro Morikawa explora o conflito entre o tradicional e o moderno, e revela a impiedade de um sistema fundamentado na lealdade absoluta, que, no final, beneficia apenas aqueles que estão no topo da hierarquia social.

A história passa-se no Japão feudal e acompanha Iori, um jovem samurai de 16 anos, que recebe a ordem de cometer seppuku (suicídio ritual) para seguir o seu senhor na morte, um costume tradicional para preservar a honra do clã. Criado por sua cunhada Oko, esposa de seu irmão mais velho, Iori encontra nela uma figura materna e, ao mesmo tempo, uma presença ambígua dentro do código moral da época. Diante da iminente execução do jovem, Oko faz um pedido ao marido: passar a última noite com Iori para lhe ensinar os prazeres da vida antes que ele morra. Essa decisão gera um intenso conflito emocional e moral, acentuando as contradições do samurai.

Na manhã seguinte, no entanto, um decreto inesperado chega à família: a ordem de suicídio de Iori foi revocada por proibição do seppuku. O jovem, que até então havia aceitado o seu destino como inevitável, agora vê-se perdido diante de uma vida que já havia aceitado abandonar. A narrativa desenrola-se em torno da desconstrução da obediência cega à tradição e do impacto psicológico desse sistema, mostra como a honra e a obediência absoluta podem resultar em consequências trágicas.

O filme questiona se a honra imposta pelo samurai realmente glorifica os seus seguidores ou se apenas perpetua um ciclo de sofrimento e obediência irracional. A história de Iori torna-se, assim, uma metáfora sobre a brutalidade de um sistema que valoriza o sacrifício acima da vida.

A Tragédia de Bushidô é uma obra visualmente rigorosa que revoluciona a estética tradicional do jidai-geki e abandona a grandiosidade épica a favor de uma mise-en-scène intimista e opressiva. O filme utiliza enquadramentos geométricos e uma iluminação contrastada para enfatizar a rigidez do código de honra samurai e transforma o espaço fílmico numa prisão visual para os personagens.

O uso da luz e da sombra remete ao expressionismo, criando um ambiente de clausura. Os interiores são filmados com profundidade dramática, onde portas deslizantes e biombos não apenas dividem os personagens, mas também simbolizam barreiras morais e psicológicas intransponíveis. Os cortes secos e a montagem económica reforçam a rigidez da narrativa, sem excessos melodramáticos, apenas a dureza do destino e das tradições.

O movimento de câmara é contido, refletindo o peso das decisões impostas pelo samurai. No entanto, quando há deslocamentos são milimetricamente calculados e podem sugerir a tensão interna dos personagens. As cenas do pôr-do-sol, especialmente as que envolvem Oko e Iori, são carregadas de uma sensualidade reprimida, com sombras projetadas sobre os corpos num jogo de iluminação que sugere tanto desejo quanto inevitabilidade.

No fim, A Tragédia do Bushidô é uma experiência estética que ultrapassa o seu enredo, utiliza cada enquadramento, cada sombra e cada composição para reforçar a tensão entre a tradição e o desejo, ordem e desobediência. O filme é uma pintura fílmica da repressão, onde a beleza das imagens contrasta com a brutalidade do destino de seus personagens.

 

 Folha de Sala

domingo, 16 de fevereiro de 2025

384ª sessão: dia 18 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Mestre Eitarō Morikawa na próxima sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos”. 
 
O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta terça-feira, 18 de fevereiro, será exibido A Tragédia de Bushidō (1960) de Eitarō Morikawa, às 21h30, terceiro filme do ciclo de cinema "Mestres Japoneses Desconhecidos", dedicado a realizadores japoneses pouco divulgados fora do Japão.
 
Os filmes escolhidos para este ciclo foram realizados entre os meados dos anos 50 e inícios da década de 60, abrangendo, assim, a “Era Dourada” do cinema japonês. Findada a ocupação e controlo americano no Japão, inclusive na produção cinematográfica, a partir de 1952, as obras fílmicas realizadas asseveraram o estatuto do cinema japonês no Mundo, ocupando-se de temas histórico-políticos e socioculturais de maneira crítica e, por vezes, provocadora, distinguindo-as dos demais cinemas e cuja estética é igualmente interessante.
 
Em A Tragédia de Bushidō (1960), Iori, um jovem de 16 anos, de modo a honrar o clã de samurais a que pertence, vê-se obrigado a praticar seppuku após o falecimento do seu soberano. Frente ao trágico fim do jovem samurai, a cunhada, por compaixão, oferece-se para lhe ensinar os desejos carnais, pedindo ao seu marido que lhe conceda uma noite com Iori. Contudo, após o acto consumado, um decreto é emitido no dia seguinte, apanhando de surpresa todos os concernidos.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

383ª sessão: dia 17 de Fevereiro (Segunda-Feira), às 21h30


Última sessão de filmes portugueses e galegos com presença de realizador - Festival Convergências
 
Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Desconhecidos Japoneses”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta segunda-feira, 17 de fevereiro, serão exibidos dois filmes no âmbito do Festival Convergências: O Documento (1974) de Enrique Baixeras, primeiro filme falado em galego apreendido pela polícia franquista e perdido durante décadas, seguido por Terra de Abril (1977) de Anna Glogowski e Philippe Costantini, contando-se com a presença deste último que apresentará o seu filme.

O Documento (1974) é uma das primeiras tentativas para criar um cinema galego. Rodado em 16mm, é o primeiro filme totalmente falado na língua galega. Sob este pretexto o filme foi confiscado pela polícia e proibido pelo regime ditatorial de Franco, razão pela qual esteve perdido durante décadas. A narrativa de O documento é uma adaptação do conto A lus do candil de Ánxel Fole.
 
Terra de Abril (1977) retrata os preparativos para a comemoração pascoal e a encenação teatral de um Auto da Paixão de Cristo. O filme tem carácter etnográfico e inspirou-se no trabalho do antropólogo Jorge Dias. A cinematografia oscila entre a imagem a cores, correspondente aos festejos, e à imagem a preto e branco para representar o quotidiano dos habitantes de Vilar de Perdizes em tempos de eleições, ainda, no rescaldo do fim da ditadura e marcado pela forte emigração de pessoas desta região.

(Philippe Costantini e Anna Glogowski foram alguns dos realizadores estrangeiros a filmar em Portugal após o 25 de abril. Costantini foi ainda responsável pelo som de MÁSCARAS de Noémia Delgado).
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até segunda-feira!

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu



Por Alexandra Barros
 
Que forças impelem as nossas ações? Como são determinados os nossos destinos? O Som do Nevoeiro tem como fio condutor a história de um amor condenado, mas estas questões existencialistas, a complexidade do comportamento humano e as dificuldades de compreendermos os outros e a nós mesmos tecem o subtexto do filme. Porque é que as personagens fazem o que fazem? Porque se sacrificam, porque hesitam, porque se conformam, porque agem de forma absurda, porque morrem? Agem compelidas pela paixão, pelo medo, pelo dever, pela cobardia, pela honra, por altruísmo, por egoísmo? Adivinhamos os seus conflitos interiores, a tensão entre sentimentos, mas nunca sabemos verdadeiramente o que acaba por determinar as suas escolhas. Possivelmente uma observação, umas palavras, um acaso, aparentemente inócuos, mas que se cravam com tal força na alma que a passam a dominar.
 
Neste filme, cada frase, cada expressão do rosto, cada gesto que se afigura significativo, tanto pode ser revelador como lançar dúvidas sobre o que demos, antes, por adquirido. As dissonâncias comportamentais, expressas ou lidas nas entrelinhas, ficam por explicar, enigmas abertos à interpretação pessoal. O grande cinema (ou melhor, de forma geral, a grande arte) é assim, convoca múltiplas leituras. Hiroshi Shimizu conjuga esta impossibilidade de ver uma pessoa na sua totalidade - os mistérios humanos - com belíssimas imagens de uma paisagem montanhosa, sempre em mutação. Raramente a montanha se dá a ver claramente. Ora vislumbramos apenas o pico, pairando sobre camadas densas de bruma, ora entrevemos pequenas áreas da encosta entre um manto irregular de nevoeiro, ora adivinhamos os traços montanhosos por trás de uma leve névoa.
 
Esta montanha é onde o professor de botânica Kazuhiko Onuma se refugiou do Japão tumultuoso do pós-guerra, dedicando-se ao estudo das plantas que aí vivem. Acompanha-o Tsuruko, a assistente, com quem tem uma relação extraconjugal. Na iminência de ser visitado pela mulher (Katsuyo), Onuma espera que a presença de Tsuruko instigue Katsuyo a dar o passo que o próprio evita dar. Apesar de ele assegurar a Tsuruko que o divórcio é inevitável, porque o casamento sempre foi de fachada, sem amor, e porque as divergências entre ambos são demasiado fortes, teme ser ridicularizado pela sociedade por se separar agora quando já tem uma filha. Tal como previsto, Katsuyo confronta-o com a traição, mas inesperadamente ele nega a relação, explicando que Tsuruku só ali está para fazer as compras e organizar a documentação. Tsuruko parte furtivamente, alegando (numa carta) que o faz para salvar o professor Q de um eventual destino trágico. Mas não terá sido a vacilação do professor, ou o “És uma indecente!” atirado por Katsuyo, o verdadeiro catalisador da partida? Os seres humanos procuram justificações tão mais enobrecedoras para os seus gestos quanto mais indizíveis são as suas reais motivações.
 
E que alegado destino trágico é aquele a que se refere? Será porventura o mesmo que Aiko (uma mulher num triângulo amoroso idêntico ao de Tsuruko) terá escolhido para si e para o amante, como fuga a um sufoco de idêntica irresolução? Aiko reprova a atitude passiva de Tsuruko e a sua submissão às (in)decisões do professor: “As mulheres devem construir a felicidade pelas suas próprias mãos”. Porém, também ela é incapaz de alcançar a felicidade que persegue. Aiko cruza-se com Onuma e Tsuruko, na cabana florestal onde estes habitam, porque procurou a montanha para deambular livremente com o seu amante. Imersos na tranquilidade e beleza da floresta aos pés da montanha, Onuma, Tsuruko e Aiko conseguem alhear-se, ainda que efemeramente, dos dilemas que os atormentam e desfrutar de fugidios momentos de felicidade. Tsuruko considera a floresta tão maravilhosa que julga ser o local ideal para morrer. Um paraíso. Ao escutar tais palavras, uma tristeza insólita assoma ao rosto de Aiko, mas a chegada do professor interrompe os seus pensamentos. Numa cena premonitória, o professor exibe dois peixes e explica que após pescar o primeiro, aquele que o acompanhava ficou triste e também se deixou pescar. Aiko exibe agora uma euforia, que não deixa de ser notada pelo professor, e que Tsuruko atribui ao facto de ela saber o que quer da vida. Essa invejada determinação e alegria é, no entanto, como se virá a revelar, um enganador canto do cisne.
 
Esta incoerência entre aquilo que as personagens exteriorizam e a sua vida interior, ou entre o que proclamam e o que fazem, emerge recorrentemente no filme. Onuma reprova a mulher por negligenciar a filha para se dedicar à política, mas vive na montanha, isolado da família, e dedicando-se exclusivamente aos seus interesses científicos. Assegura a Tsuruko que o seu casamento sem amor foi um fracasso em todos os sentidos, mas após a morte da mulher, lastima-se da falta que esta lhe faz: “Perder uma esposa é como se nos roubassem a nossa outra metade”. Em contrapartida, ao reencontrar Tsuruko, casada com outro homem, mostra-se conformado e até satisfeito com o que a vida lhes destinou. Crê que o amor que partilham é eterno por ser impossível, e que provavelmente não resistiria às dificuldades inerentes a uma vida a dois. Tsuruko não concorda. Onuma é um homem pacificado, mas para Tsuruko, a dor da perda persiste. Comprazer-se com as memórias, revisitando anualmente a montanha, é quanto basta a Onuma. Tsuruko não poderia viver noutro lugar, mesmo que, para se sustentar nesse lugar remoto, se tenha visto obrigada a trabalhar como geisha. Não lhe faltaram pretendentes, mas “as mulheres não têm emenda; quando elas já têm alguém que amam em mente, é lhes impossível formar família com outra pessoa”. Inexplicavelmente, umas horas depois de fazer esta confidência a uma amiga, Tsuruko cede à corte que, ao longo dos últimos meses, Gen, um veterinário local, aparentemente simplório, lhe tem vindo a fazer. Porque o faz? Talvez porque nessa tarde, ao ouvir a voz de Onuma (de visita à montanha), tenha evitado o encontro, receando o seu eventual julgamento moral e consequente rejeição. Terá então concluído e aceitado que o rumo ditado pela paixão devotada a Onuma, paradoxalmente, determinou a impossibilidade de por ele ser amada.
 
Gen, pelo seu lado, é incansável nos seus esforços para lhe agradar. Ama-a com a incondicionalidade, dedicação e entrega com que Tsuruko porventura terá desejado que Onuma a amasse. Talvez Tsuruko tenha sido seduzida por um lirismo recôndito que, apesar da rusticidade de Gen, a paixão terá feito emergir. Ou nele tenha reconhecido uma alma-gêmea, alguém capaz de uma afeição amorosa só equiparável à que ela dedicou a Onuma. É precisamente com desmedidos gestos de amor, de Tsuruko e de Gen, que este filme de emoções contidas se fecha.
 
Que som faz o nevoeiro? Aparentemente nenhum. Porém, tal como os sentimentos que mantemos secretos são inexistentes para os outros, o som do nevoeiro poderá ser apenas inaudível para os nossos ouvidos.
 
 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

381ª e 382º sessão: dia 10 e 11 de Fevereiro (Segunda e Terça-Feira), às 21h30


Clássico do cinema galego e japonês esta semana nas sessões do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta segunda, 10 de fevereiro, exibe-se o clássico galego Sempre Xonxa (1989) de Chano Piñero. Sempre Xonxa é um dos primeiros filmes de ficção galegos, rodado em 35 mm. A narrativa centra-se nas vivências de uma mulher, Xonxa, e de dois homens, Pancho e Birutas, entre 1947 a 1986, as quais passam pela experiência da ditadura, da emigração e da desertificação de uma aldeia situada nas montanhas da Galiza. Sempre Xonxa cruza a realidade com o realismo mágico composto por lendas e tradições galegas.

Na terça-feira, 11 de fevereiro, é a vez de O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu. Em O Som do Nevoeiro (1956), o protagonista Kazuhiko Onuma, um professor de botânica, e a sua amante Tsuruko passam tempo juntos num refúgio nas profundezas dos Alpes japoneses. Naquela noite, a esposa de Kazuhiko confronta-o sobre o seu caso extraconjungal e Tsuruko, que inevitavelmente testemunha a discussão, abandona o professor. Nas décadas seguintes, sempre que Kazuhiko volta ao refúgio as memórias de Tsuruko reemergem.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até breve!

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Cada Um na Sua Cova (1955) de Tomu Uchida


     
Por Estela Cosme

O Japão do pós-guerra traz inúmeras dificuldades a um país extremamente fragilizado, não só pelo combate, mas também pela derrota. A sociedade da década de 1950 não sai ilesa, aliás, a sua profunda reestruturação e agitação levam ao renascimento de um país e povo bastante distantes do passado. O filme de Tomu Uchida é testemunho desta transformação, cujas personagens encarnam o rebuliço da época, submergida numa modernização que leva à construção de um novo Japão, agora subjugado às circunstâncias de uma nova ordem mundial. Uma das personagens do filme resume-o de forma muito sucinta: “o Japão atual é essencialmente uma colónia americana.” Esta frase, proferida pela personagem mais amoral do filme, exemplifica o turbilhão de um país transformado, arrastando o seu povo para tempos modernos em cidades modernas com problemas modernos. Mas entre o barulho ensurdecedor das máquinas e dos aviões, do ruído do ferro e do betão, a verdadeira desgraça no filme de Uchida é o de uma família que não se consegue ouvir. E pior ainda, que não quer.
 
O filme trata sobre uma jovem de Tóquio à procura da sua independência chamada Tamiko [interpretada pela atriz Mie Kitahara, uma cara familiar antes vista pelos espectadores deste cineclube no filme A Lua Ascendeu de Kinuyo Tanaka]. Ela mora com o seu irmão acamado Junjiro e ambos ficaram à tutela da sua madrasta, Nobuko, depois da morte do sei pai [esta última é interpretada por Yumeji Tsukioka, cujo papel em Para Sempre Mulher de Tanaka arrebatou os nossos sócios no que foi um dos melhores filmes exibidos no ano passado]. Nobuko é uma viúva na casa dos quarenta, e os seus enteados aparentam ser recém-chegados à vida adulta, pelo que a diferença de idades não deve ultrapassar as duas décadas. No entanto, a diferença entre estas gerações relativamente próximas não podia ser mais vincada, e parece existir um fosso irreparável entre os membros desta família. Tamiko resiste a todas as tentativas da madrasta que a tenta convencer a casar, e Junjiro, embora confinado à sua cama, dedica o seu tempo ao jogo da bolsa de valores, amargurado pelo fim de uma relação amorosa.
 
Para complicar mais as coisas, um dos pretendentes de Tamiko, o deplorável, mas abastado Dr. Ihara, assume o seu interesse por Nobuko, embora faça questão de continuar a cortejar Tamiko, que por sua vez nutre sentimentos por Komatsu. Esta situação familiar é ainda mais agravada por um mal simultaneamente antigo e moderno: o dinheiro. Quando Tamiko vende uma das últimas propriedades da família, Junjiro assume a responsabilidade do dinheiro da venda, impedindo a Nobuko acesso à sua parte. Ela ameaça os seus enteados em deixar a casa e regressar à sua terra, mas, num ato de frieza pela mulher que os criou, eles não cedem, e a família desmorona-se. Além disso, Tamiko não casa nem com o seu amante nem com o Dr. Ihara, deixando-a à mercê do irmão, que por sua vez perde não só o dinheiro das propriedades vendidas, como também a casa hipotecada, e mais tarde a sua própria vida. A total independência de Tamiko tem um custo demasiado elevado.
 
O filme não só critica a dissolução da família tradicional, mas também os valores modernos que a provocaram. Tamiko, resiste ferozmente ao casamento, e Nobuko, que o impinge, afasta de vez a enteada, e ambas acabam por não constituir família enquanto perdem a que tinham. Junjiro, que numa cena de terror rasteja até ao quarto da ex-mulher para a atacar, perde o seu único amor, a sua saúde e tudo o que o seu pai lhe deixou. Ihara que, por sua vez, tem um caso com Tamiko enquanto declara o seu interesse por Nobuko, mais tarde critica Tamiko pela sua promiscuidade (enquanto se senta num bordel rodeado de mulheres). Komatsu, que defende a honra de Tamiko, foge antes de assumir uma relação com ela.
 
Pelos erros das suas ambições, dos seus egoísmos e dos seus próprios orgulhos, esta família japonesa desintegra-se na fragilidade de tempos de rescaldo, e para estas personagens os efeitos da guerra podem durar uma vida, mas os efeitos dos seus familiares vão durar uma eternidade. 
 
 

domingo, 2 de fevereiro de 2025

380ª sessão: dia 4 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30



Mestre Tomu Uchida na próxima sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos ”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta terça-feira, 4 de fevereiro, será exibido, às 21h30, o primeiro filme do ciclo de cinema “Mestres Japoneses Desconhecidos”, dedicado a realizadores japoneses pouco divulgados fora do Japão e que foram realizados entre os meados dos anos 50 e inícios da década de 60, abrangendo, assim, a “Era Dourada” do cinema japonês, bem como produções que imediatamente lhe seguiram.

Findada a ocupação e controlo americano no Japão, inclusive na produção cinematográfica, a partir de 1952, as obras fílmicas realizadas asseveraram o estatuto do cinema japonês no Mundo, ocupando-se de temas históricos e socioculturais de maneira crítica e, por vezes, provocadora, inclusos em formas estéticas que o distingue dos demais, mesmo reconhecendo-se técnicas cinematográficas comuns noutros cinemas.

O filme Cada um na sua Cova (1955), de Tomu Uchida, retrata a vida de Nobuko que mora com os dois filhos de seu falecido marido, Tamiko e Junjiro. Tamiko é uma jovem mulher independente, enquanto Junjiro está acamado, doente e destroçado. As tensões aumentam dentro da família quando Nobuko decide encontrar um pretendente para Tamiko. A escolha é entre Dr. Ihara, um mulherengo sem vergonha, e Komatsu, um romântico que não consegue afirmar-se. Cada Um Na Sua Cova é um retrato de uma nova sociedade japonesa em profunda transformação, ainda impactada pelos traumas da guerra.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça!

sábado, 1 de fevereiro de 2025

379ª sessão: dia 3 de Fevreiro (Segunda-Feira), às 21h30


Filmes japoneses, portugueses e galegos em fevereiro
 
Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Desconhecidos Japoneses”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta segunda-feira, 3 de fevereiro, serão exibidas 4 curtas-metragens no âmbito do Festival Convergências, três das quais produzidas pela Rua Escura e filmadas em 16mm. A primeira do grupo será Tanganhom (2023) de Vítor Covelo, seguida pela curta de Frederico Lobo Quando a Terra Foge (2024) e de Campos Belos (2023) de David Ferreira. Estes três realizadores estarão presentes para apresentar os seus filmes. Esta sessão terminará com a curta Lavadoiro (2023) dos jovens realizadores galegos Ana Amado e Lois Patino. 
 
Tanganhom (2022) de Vítor Covelo é uma curta-metragem, rodada em Melgaço, em Parada do Monte que explora: “a memória de um encontro fortuito na fronteira entre o real e o imaginado, a afoiteza e as superstições”, transmitida de geração em geração. Assim, o filme Tanganhom é, em si mesmo, um gesto que procura eternizar a história oral da aldeia de Melgaço, situada na raia minhota.
 
Quando a Terra Foge (2024) é um registo poético de uma região em perigo pela iminente exploração de lítio na região de Montalegre. Enquanto as máquinas escavam as imponentes montanhas, um pastor procura, no denso nevoeiro, uma vaca que se extraviou. O nascimento, a infância e as várias mortes surgem-nos inevitáveis numa paisagem bruta e espontânea que se redesenha, também, segundo os desígnios do homem e sua avidez.
 
Em Campos Belos (2023) é nos apresentado num plano-sequência o quotidiano de uma comunidade da região do Vale do Ave. Seguindo os passos de três personagens, da escola à fábrica, aos espaços de convívio até à morte, assistimos como o destino de um homem é predefinido pelo trabalho, neste caso específico pela indústria fabril, que rege e tipifica fatidicamente toda o modo de vida de uma localidade.

O filme Lavadoiro (2023) é uma ode aos antigos lavadouros galegos onde as mulheres se reuniam para fazer confidências e lavar roupa. Centrando-se nos espaços, suas marcas e ruínas, Lavadoiro é uma homenagem a este trabalho invisível e muitas vezes não valorizado da população feminina.
 
 As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até segunda-feira!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

A Visita e Um Jardim Secreto (2022) de Irene M. Borrego


por Alexandra Barros

“Vais ser como a tua tia Isabel.” - É este augúrio, atirado em tom reprovador à realizadora do filme, pela sua mãe, que está na origem de A Visita e Um Jardim Secreto. Da tia Isabel nada sabe, excepto que foi artista e que a família conservadora a repudiou por desaprovar a vida que escolheu: estudar Belas Artes e tornar-se pintora. O meio artístico também a esqueceu, excepto Antonio López1, o único pintor da sua geração que a recorda. Como se explica o desaparecimento de uma obra reconhecida e aclamada no seu tempo? Antonio López não sabe se a pintora terá querido desaparecer ou se terá sido consumida pela voragem deste tempo dominado por Insta(ntes): “O presente é muito invasivo, exige muita atenção, muita, muita, é uma coisa avassaladora. O presente apaga tudo o resto, extingue tudo.” Apesar de Antonio López não saber nada de Isabel há 50 anos, o retrato sensível e poético que traça a partir das suas  recordações, e ouvido em voz off, virá a revelar-se extraordinariamente apurado.
 
Com muitas reservas, Isabel abre a porta de sua casa a Irene, mas ela própria mantém-se fechada. Tal como o quarto da porta amarela. Nele guarda os seus quadros e ninguém está autorizado a aí entrar. É Antonio López quem descreve a Irene como eram as pinturas da sua tia: “Parecia que era muito verdadeiro o que ela fazia. Dava a sensação de não ter uma ansiedade que todos temos de mostrar trabalho, de estar aqui, de estar ali; como se para ela nada disso importasse. Era como se fosse alguém que estava ali de visita. [...] Tinha uns tons luminosos e secos, e umas formas muito simples. Mas também não era uma pintura geométrica. Era uma pintura um pouco áspera, muito honesta, muito autêntica e muito secreta. Era como ela, justamente como ela. Parecia uma espécie de jardim secreto. Acredito que ao entrar lá era possível encontrar coisas muito atraentes. Coisas bonitas. Apesar de parecer que ela não queria mostrá-las.”
 
Na casa de Isabel, Irene filma filas de ganchos ordenadamente colocados na parede de um corredor. Cada gancho encima um fantasma, uma patine ténue que denuncia a antiga presença de um quadro. Frustrada com essa e outras ausências, Irene pressiona Isabel a dar-lhe explicações. Sem se dar a conhecer, sem criar laços, sem esperar que Isabel se sinta pronta para lhe abrir as portas do seu universo íntimo e evocar memórias dolorosas, Irene quer obter respostas rapidamente. Em lugar de seguir o fio de pensamento de Isabel, atira-lhe perguntas que visivelmente a incomodam e irritam (porque é que os seus quadros não estão expostos em museus, porque é que está só, porque é que foi esquecida, …) e reivindica receitas para a vida e para o trabalho. Descontentes com esta pressão, os colaboradores de Irene querem parar de filmar. Torna-se penoso assistir ao filme e, neste ponto, perguntei-me como iria escrever fosse o que fosse sobre ele.
 
Ao crer que existe um fosso intransponível entre si e Irene, Isabel abandona as filmagens. Acaba por aceder ao pedido de Irene para que a ajude a fazer o filme, por respeito aos princípios pelos quais sempre se regeu: viver para a arte, tudo fazer pela arte, mesmo à custa de enormes sacrifícios e sofrimento pessoal. No interrogatório desastrado de Irene, Isabel entreviu a origem das inquietações da sobrinha e, num discurso em tudo idêntico à sua pintura - “áspera, muito honesta, muito autêntica”2 - aponta frontalmente o que tolhe Irene e as razões por que está num impasse. Irene julga entender e Isabel abre-lhe enfim o jardim secreto: “Anda! Vem cá, põe-te ao meu lado.” / “Daqui consigo ver.” / “Como te explico uma coisa desta sensibilidade a esta distância? Não sei se a esta distância consegues perceber. Tem que se estar aberta a tudo. Mas a essa distância, como é possível?”. É admirável como esta cena rima tão perfeitamente com as palavras ouvidas a Antonio López: “As montanhas grandes veem-se à distância, mas é preciso aproximarmo-nos das pequenas.”
 
As pinturas encerradas, atrás da porta amarela, deram lugar às assemblages. Talvez porque essa tenha sido a forma que Isabel encontrou para ultrapassar as limitações físicas, próprias da idade avançada, e “continuar a fazer, a seguir em frente”. As tintas foram substituídas por pedaços de madeira ou cartão, pequenas peças de plástico, tudo o que lhe chega às mãos, de tudo um pouco. Isabel seleciona, compõe, recompõe, rejeita, procura, alinha, acerta, aprova, cola: “Vejo as possibilidades que existem. [É preciso] estar aberta aos acidentes. Usá-los.” Mostra a Irene um cartão degradado que encontrou, molhou e arranhou: “Resultou nisto que é uma beleza! É bonito, não é?”. A beleza está nos olhos do observador3, e como não ouvimos a resposta, fica a dúvida: terá Irene conseguido encontrar as coisas bonitas que outrora Antonio López descobriu no jardim secreto de Isabel? O que viram afinal os olhos de Irene?
 
Insatisfeita com o que conseguiu captar, Irene continua a sua busca nos “baús” familiares. Inesperadamente, um vídeo, aparentemente prosaico, de uma cerimónia religiosa, traz para a luz o entendimento tão perseguido. Finalmente, está pronta para construir o seu filme. Ousadamente, Irene optou por tornar os seus desencontros com Isabel e todos os revés daí decorrente na grande força do filme, nele entranhando as errâncias necessárias para chegar a um resultado. Uma obra fractal que reflecte as questões que, segundo Isabel, estão envolvidas na criação de verdadeira arte (ou será arte verdadeira?). No final do filme, com uma mensagem dirigida a Isabel, Irene rasga um “casulo” que é simultaneamente seu e da sua obra. A metamorfose está completa.
 
São essas palavras finais que nos reconciliam com a Irene que atormentou Isabel e se mostrou incapaz de a compreender, por estar demasiado focada em si própria e nas suas dificuldades. A Irene que fabulosamente se auto-representou numa das mais reveladoras cenas dos (des)encontros com Isabel: enquanto afirma querer entendê-la, Irene filma-se, a filmar o seu próprio reflexo.
 
Quando, por fim, se vê com os olhos com que a viu Isabel, Irene tem a sua epifania. Nesse momento, percebe porque não conseguiu alcançar a mulher e a artista. Torna-se, enfim, capaz de a mostrar e, significantemente, de se mostrar. Um duplo retrato. Belo.
 
 
 1 Pintor que está no centro do filme O Sol do Marmeleiro, de Víctor Erice. 
 2 Palavras de Antonio López.  
 3 “Beauty is in the eye of the beholder.”, in Molly Bawn, de Margaret Wolfe Hungerford, 1878