por Jessica Sérgio Ferreiro
Entre cartas nunca enviadas, “tremores interiores” e murmúrios coloniais, este ciclo propõe um encontro entre três obras singulares do cinema português: Relação Fiel e Verdadeira (1987), de Margarida Gil, O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes, e A Costa dos Murmúrios (2004), de Margarida Cardoso. Realizados por mulheres, mas centrados tanto em sujeitos femininos como masculinos, as cineastas recusam a narrativa linear convencional, preferindo elipses temporais, anacronias várias, analepses ou a metanarrativa. Assim, diluem e moldam o tempo, recriando lugares de memória, espaços e corpos sensíveis, fora do tempo cronológico, para pôr a nu os corpos e seus modelos (o ideal ou a convenção). As três obras fílmicas baseiam-se ainda em “modelos”, ou seja, em várias obras literárias de referência que são reinterpretadas e remoldadas para a imagem em movimento.
Entre o íntimo e o político, o real e o imaginário, o tempo e a espera, estas são narrativas feitas de imagens que evocam e, subsequentemente, convocam o espectador. Em Relação Fiel e Verdadeira (1987), Margarida Gil reinventa o epistolar como gesto de clausura e revolta. Em O Som da Terra a Tremer (1990), de Rita Azevedo Gomes, e protagonizado por José Mário Branco, propõe um retrato masculino, filtrado por uma sensibilidade poética e distanciada, onde as personagens femininas estão fora do controlo do protagonista, desmontando o sujeito patriarcal e expondo a sua fragilidade. Já em A Costa dos Murmúrios (2004), Margarida Cardoso convoca o corpo feminino como espaço de memória colonial e trauma silenciado. As realizadoras rejeitam o modelo clássico e abraçam uma linguagem do cinema como escrita sensível da(s) história(s), não como reconstituição factual, mas como manifestação subjectiva, crítica e poética. Rejeitam o olhar dominante que fixa a mulher como objeto ou modelo (e/ou musa) e constroem, em vez disso, um cinema onde o tempo é sensível e a narrativa emerge por fragmentos — como se a própria linguagem tivesse de ser reinventada para dar lugar a outras histórias, outros corpos, outras vozes e, sobretudo, diferentes olhares e diferentes imagens.
Nesta primeira sessão do ciclo Modelo e Corpo: Subversões no Cinema Português, apresentamos o filme Relação Fiel e Verdadeira (1987) de Margarida Gil, que se baseia na obra Fiel e verdadeira relação que dá dos sucessos de sua vida a creatura mais ingrata a seu Criador..., escrita por Antónia Margarida de Castelo Branco, que relata os acontecimentos marcantes da sua vida conjugal. Segundo a Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), Antónia Margarida uniu-se em matrimónio, em 1670, com Brás Teles de Meneses e Faro, um fidalgo boémio e arruinado pelo vício do jogo. Após oito anos de casamento marcados por sucessivos maus-tratos infligidos pelo marido, decidiu recolher-se no Mosteiro de Santos. Em março de 1679, ingressou como noviça no Convento da Madre de Deus de Xabregas, onde professou votos no dia 31 de março de 1680, adoptando o nome de soror Clara do Santíssimo Sacramento.
Margarida Gil pega nesta história do conturbado período pós-Restauração e trá-la para o, não menos agitado, pós 25 de abril, quando as elites são igualmente escrutinadas (ex. quando, no filme, é dito que o pai de Brás contrabandeava diamantes das ex-colónias). Apesar do anacronismo consumado, a estória não se apresenta como anacrónica, pois a realizadora põe à mostra o carácter trans-histórico das categorias “homem” e “mulher”, fixadas ao longo do tempo. A condição da mulher antes do 25 de abril não era muito diferente da de uma mulher do século XVII, nascida para casar e manter-se fiel, ora à casa do pai, ora ao marido. Poucos ou nenhuns direitos detinha, tida como propriedade, podia ser morta sem consequências, como é referido na cena do filme em que Brás pede à Antónia que escreva num papel o seguinte: “Dou licença ao meu marido para que me mate, se ele assim o entender, e que ninguém lhe possa pedir contas da minha vida, porque ma tira com muita razão”. Cena, esta, que alude à lei vigente durante o Estado Novo e até 1975 (artigo 372.º do Código Penal), que “autorizava” o feminicídio e “aligeirava” a pena do cônjuge, condenando apenas ao “desterro para fora da comarca por seis meses ao homem casado que, achando sua mulher em adultério, a matar a ela ou ao adúltero, ou a ambos, ou lhes fizer qualquer ofensa grave (…)” e cujas “provas” da ofensa a apresentar eram irrisórias (ver artº em Diário da Républica).
Em suma, a violência de género arquissecular é transporta para a narrativa fílmica por Margarida Gil, como sumarizado pela realizadora à Cinemateca: “O casal é um microcosmo que permite interrogar-nos sobre os limites do amor e da dádiva, do horror e da abjeção, da tortura e do martírio a que alguém pode chegar. Como exprimem as relações de afecto a realidade das relações de poder?”
Relação Fiel e Verdadeira é um filme que se aproxima da História como se ela fosse um sonho mal resolvido, em que nunca se sabe o que é verdadeiro, o que foi escrito e o que ficou por dizer. Inspirando-se livremente num testemunho autobiográfico do século XVII, remete-nos também, por aproximação e oposição, para outro relato literário – Cartas Portuguesas (1669) – atribuídas a Soror Mariana Alcoforado e, por sua vez, às Novas Cartas Portuguesas (1972) de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, livro proibido pela censura e cujas autoras foram levadas a tribunal por “atentado ao pudor” e não como mulheres com agência política. Estas obras aventuram-se pelos mistérios do íntimo feminino sem nunca realmente os desvelar, pois remetem-nos sempre para a performance, ou seja, para a escrita, o epistolar e/ou a narrativa criativa. De forma análoga, Margarida Gil rasga o véu da reconstituição factual, o que interessa não é o passado como documento, mas como fantasma ou como sombra. A câmara não se ocupa de confirmar datas ou rever figurinos, mas procura ecoar os passos de Antónia Margarida, figura trágica e difusa, mas atemporal, mais presença do que personagem.
O filme é uma contradição viva: inscreve-se no cinema de época, mas com uma recusa declarada do naturalismo. Carros circulam por entre torres setecentistas e jogos de cartas ocorrem sob luz fluorescente (cena em que é possível ver João César Monteiro e João Bénard da Costa enquanto jogadores de póquer). Há uma liberdade plástica — quase iconoclasta — que rompe com qualquer vontade de “verosimilhança”. Estamos num tempo outro, simultaneamente barroco e contemporâneo, onde a “verdade” não é reconstituída, mas intuída.
Margarida Gil explora o silêncio não como ausência, mas como forma de espera. A montagem, descontinuada e por vezes abrupta, lembra-nos que não estamos num fluxo narrativo, mas numa arqueologia subjectiva. Antónia — interpretada por Catarina Alves Costa (também realizadora) — não é apenas uma mulher. É um espaço, uma ruína. Um testemunho gravado a lume lento no corpo de uma atriz que nunca parece representar, apenas habitar.
Tal como no diário pessoal, o tempo não é cronológico. Há repetições, avanços bruscos, zonas de sombra. Brás, o marido, mais figura de um “masculino” do que homem, torna-se espelho de uma violência insidiosa, regular e quotidiana. Brás acusa Antónia de ser mentirosa, de não ser verdadeira (apesar de fiel), perplexo frente aos mistérios do feminino e por Antónia nunca revelar o seu íntimo, nunca expressar o que sente ou se realmente o ama ou despreza. O silêncio e o insondável expressam, aqui, a resignação ou a resistência? A “relação” do título é dupla: o relato e o vínculo, e talvez ambos sejam, paradoxalmente, infiéis. Por fim, Margarida Gil mantém-se fiel ao cinema como arte e àquilo que não se pode dizer, deixando para o espectador significar e ressignificar.