quarta-feira, 29 de junho de 2016

The Hustler (1961) de Robert Rossen



por José Oliveira

The Hustler é o penúltimo filme de um realizador americano que ao contrário de muitos dos seus contemporâneos não primou pela extensa filmografia nem pela multiplicidade de géneros. Se fosse preciso uma palavra impossível para resumir ou centrar a sua obra – que sempre permaneceu irresumível e descentrada – ela talvez fosse “obsessão”. Do pugilista encarnado e afundado por John Garfield em Body and Soul, até à elevação suprema de Alexander The Great, chegando-se à perfeita comunhão entre o homem e o seu dom que veremos no filme de hoje - a natureza e a consciência - a rampa da solidão e da tragédia sempre se mostrou escancarada a quem investiu na única coisa possível. Se estraçalharmos a palavra “obsessão” vai jorrar vulcânicamente o assombramento, a sombra e a treva, o buraco prometido a quem não se adapta a todas, espinhos da perfeição. E aí já estamos no demonismo de Lilith, o ápice de Rossen e um dos traçados mais tortuosos percorridos por uma alma que sugou o corpo e o meio rodeante oferecido. 

The Hustler é sobre o mundo do bilhar, mas o que realmente interessa não é a precisão plana e abstracta sobre uma mesa que pode obedecer a regras cósmicas, a gravidade que pode estar completamente incompreensível, electricidade invisível e big bangs privados, linhas de tensão curtas e infinitas em relação com as forças e leis da física tornadas visíveis nesse magnífico jogo, mas no caso esse corpo (caixões esburacados, dirão os fatalistas) que comporta tudo isso e que faz corpo com a personagem de Paul Newman - Eddie Felson, hoje mítico mais pelo que é genuíno no seu comportamento, mesmo ou talvez sobretudo nas misérias, do que pelo efeito ou estilo de estrela. Eddie Felson é alguém que pode estar dominado por um chamamento incomensurável que o puxa para si e o devora, morrendo nessa consumição; ou simplesmente o taco do jogo faz fatalmente parte de si mesmo, carregado das suas veias e do seu sangue, e assim mesmo ele está certo, sendo a obsessão o factor vital de qualquer ser animado. 

No início, ainda o jogo, ou seja, a dissimulação e o pacto com as regras. Eddie e o seu agente, enganando e rebaixando os outros mas eles mesmos em primeira instância, inseridos nos mecanismos sociais e brilhando na corda bamba. A batalha épica que dura e dura com Minnesota Fats, o seu talento extraordinário a impor-se e a sua natureza a derrubá-lo secamente, sem recurso. Com o sorriso ampliado ainda do medo. Sai do jogo, entrega-se a si próprio incondicionalmente, conhece uma mulher/menina/velha que ao contrário dele ou não tem interesse nenhum na vida ou já o teve e o que sobrou foi o que esse fogo permitiu. De tragédia em tragédia – de fidelidade plena em fidelidade plena – vivem o sonho que pode ser real ou apenas o onírico de qualquer paraíso – rodeado de flores e sorrisos ou do degredo do álcool e do caos caseiro, como aquela pintura de algodão dos anjos dos impressionistas ou de Borzage em que ambos nos fecham a janela para eles mesmos – e no instante ao mesmo tempo mais fugaz e de maior peso de todo o filme – esse piquenique à Kazan ou à Joshua Logan – a mulher das letras diz ao Eddie da acção que ele não é um perdedor nato mas sim um vencedor sem margem para dúvidas. Muitos passam uma longa vida inteira sem se interessarem por nada, falando como Eddie fala da sua paixão, basta um segundo ou a bola ao calhas. 

Entre deuses e homens. Carlos Resende, treinador de Andebol do ABC de Braga e um dos grandes génios da actualidade quer se trate de desporto ou de qualquer outra área que envolva pensamento, humanismo e pressão, campeão esta época com uma equipa de tostões alguns anos depois de ter acabado a carreira de jogador como o melhor de sempre, disse em entrevista que nunca fez um esforço na vida (ou na carreira, para o politicamente correcto); sempre se levantou cedo da cama, conciliou estudos e bola, trabalho e bola, família, amigos e bola, com o maior dos prazeres e das facilidades. Nunca ninguém lhe apontou uma pistola à cabeça para exercer a sua paixão, nunca proferiu o credo dos coitadinhos, e assim brilhou, com a mais certa das naturalidades, a beleza e o tal do génio. Eddie Felson, cravado dos demónios das pulsões indetectáveis e do mau olhado que o fumo das salas (ou necrotérios, segundo os pessimistas) e a diversão de quem faz o que gosta traz aos comentadores de bancada da vidinha que não admitem que os outros vivam os seus sonhos por eles, poderia ser um Carlos Resende, mas as arestas entre a sombra e a claridade são cortantes e sem aviso. Alguns, atraídos pela cor da noite, de lá não desejam sair, campeões sem manchetes. E assim, à personalidade que lhe era exigida pelos patrões e donos da vida adulta, essa menina e velha fez-lhe perceber que a solução era a entrega directa. Só que uns são muito fortes e morrem mil vezes e continuam a insistir nos mesmos buracos, e outros mesmo sabendo o certo só fazem o errado. Sarah Packard, esse ser acima de tudo descascado como nunca se viu em película, talvez tenha sabido demais, mirrado e morrido; ou alguma coisa inconfessável não tenha dito para lá da acusação feita ao agente de George C. Scott antes de cortar os pulsos e se entregar ao desconhecido; Outra hipótese, a mais cruel e que rasga a ontologia com ambiguidades de cálculo, é que ela não tenha aprendido a não dar as desculpas dos desistentes, como parece ter aprendido Eddie no jogo derradeiro com Fats, em assunção total rumo a um amanhecer (ou ao eclipse, mas mesmo assim assumido). Com o sorriso já sabido. Sabido e porventura fuzilado pelo mais roedor dos bichos, a culpa. Esperemos pela longa escuridão que nos trará os néons, o speed e Tom Cruise em The Color of Money, novas velocidades e nova psicologia que muito terá a esconder e a revelar nos esconsos do tempo que passou. 

Rossen parece só se interessar e só se mexer nos meandros mais frágeis, imperscrutáveis e sem cor exacta da existência – andou pela escrita de The Roaring Twenties de Raoul Walsh, ainda nos anos 30 – e então não há sinopse, análise ou conclusão que valha, apenas o relato, os olhos húmidos e o andar estragado, esse vacilar como certeza incerta de constituições assim. O final, um caminhar para algures, desconhecido muito mais temível, é a maré dos obsessivos. Esses que por não sossegarem ficam sem rumo, sem crédito, sem emprego ou amanhã, sabendo o certo e praticando o incerto. The Hustler é sobre pedreiros, sobre cineastas, até sobre prostitutas, vagabundos, deformações, casualidades ou conquistadores do mundo, santos ou guerreiros que caminharam sem pedirem desculpas. No nosso ciclo de cinema americano houve Howard Roark (The Fountainhead) e há-de haver Robert Eroica Dupea (Five Easy Pieces), ambos absolutamente radicais e absolutamente principiantes. The Hustler é sublime pois a tensão das vontades e das acções e a matéria do filme estão síncronas – como uma máquina de sobrevivência médica faz parte do moribundo - concentrando o absoluto num universo de onde não saímos – dentro das paredes do jogo ou nos quartos – entalhados e drenados no traçado e no peso do enquadramento imperturbável que se entrega ao caos e o comporta; no branco e no negro mesclados, metamorfoseados, possuídos. O vórtice da paixão escutada. Tão ferrado como Nicholas Ray ou Sam Fuller; tremente e teimoso pelos subterrâneos de Phil Karlson ou Jack Garfein.

sábado, 25 de junho de 2016

20ª sessão: dia 28 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Dos vales sagrados e sangrentos de Exodus para os salões de bilhar fumarentos e corrompidos de The Hustler com Paul Newman como nosso guia. Os anos 60 carburam em força no nosso cineclube e o filme de 1961 realizado por Robert Rossen é a nossa próxima sessão.

A tensão essencial, os abismos inescapáveis e os resgates ousados ao destino, o cinemascope em batalha com o branco e o negro. O caos e o essencial...

Um dos fãs do filme e do realizador é Louis Skorecki, que em 2002 escreveu que "(...) Robert Rossen é outra coisa. É um cineasta. Numa pequena dezena de filmes, deixou a sua marca. Antigo pugilista, antigo comunista (não o podemos culpar de ter sucumbido, como outros, diante das comissões mccarthystas), antigo guionista com talento, ele escreveu, em 1947, sem ser creditado, um dos poucos bons Huston, o Tesouro da Sierra Madre. Deu sobretudo ao velho Gary Cooper, rugas de granito na testa e tudo, o seu último grande papel em They Came to Cordura (1959), filme soberbo cuja impassibilidade ultra-clássica se subvaloriza (Cooper ainda passeará dois anos a sua grande carcaça ao sol dos projectores em duas produções medíocres assinadas por Michael Anderson, antes de entregar a alma). Mas Rossen, é também Island in the Sun (1957), bonito filme tropical com o rei do calipso hollywoodiano, Harry Belafonte (cujos talentos vocais são melhores que os mambos e calipsos lamentáveis de Robert Mitchum), e sobretudo Lilith (1964), variação poética soberba em torno de uma personagem ternamente bíblica, interpretada por Jean Seberg, um dos mais belos retratos da mulher do cinema hollywoodiano, com Rachel, Rachel e Wanda.

"A Vida é um Jogo (1961), obra-prima do cinema de género, é demasiado conhecido para insultar o leitor com umas linhas supérfluas (...).

Foi o mesmo Skorecki que falou com Robert Rossen, em 1966, e lhe perguntou: "Porquê esta tendência para falar da invalidez nos seus últimos filmes?"

Rossen respondeu-lhe: "É que se eu olho para o mundo em que vivemos, se penso neste mundo de hoje, não posso deixar de ver um grande número de inválidos e não posso falar deles como se se tratassem de depravados desprezíveis, quero falar com simpatia, tentar compreendê-los. É estando com várias pessoas muito diferentes e muito próximas ao mesmo tempo, é vivendo, que eu lá chego. Quando era jovem, não prestava grande atenção, mas, hoje, apercebo-me que na "anormalidade" de algumas destas pessoas havia algo de bom. É como a rapariga de The Hustler: num certo sentido ela tira partido da sua invalidez. O drama, nesta história de dois inválidos, é que ela precisa de uma bengala e ele só lhe pode dar um taco de bilhar. Estou a exagerar, mas é isso, está a ver. Ele precisa de uma vitória à frente de tudo, é a tragédia dele. E eu não concordo com os rapazes dos Cahiers, um grande rapaz... Marcorelles acho, que me dizia que Newman não parecia ter escapado à sua tragédia. Também me disse, ao almoço, que já não havia mais hustlers na Europa. Então, eu olhei: numa mesa ao lado havia um grupo de pessoas que lá estavam para o lançamento de Jules et Jim, actrizes, homens de negócios, fotógrafos, etc., apontei para eles e disse-lhe: "E eles? Não são hustlers? Não acha que se vão tentar roubar uns outros, de se explorar, ao longo do dia?

"É tudo uma questão de experiência no nosso trabalho. Boas ou más, elas deixam sempre impressões, são elas que nos inspiram. Quanto às pessoas, eu não acho que sejam nunca de uma peça só. Nada é sempre preto ou sempre cor-de-rosa. As coisas são mais complicadas e o melhor que podemos fazer, ainda é tentar mostrá-las na sua complexidade para as tentar compreender melhor. De certa maneira, também é isso a que chamamos de humanismo. É o que guiou o jovem Marx - mesmo que os partidos comunistas o tenham às vezes esquecido. Eu acho que de uma maneira ou doutra, os grandes cineastas também pertencem a essa tradição humanista. Olhe-se para Bergman por exemplo: o homem em busca de Deus, olhe-se para Fellini, é sempre um ponto de vista, uma maneira de relatar a sua própria experiência, de guardar o que dela se recebe, aquilo com que se a viveu e uma maneira de o transmitir em termos de relações humanas. Renoir é isso. Ele pertence a isso mais do que qualquer outro. Mas é um fim que todos perseguimos, pouco importando de onde partimos."

Jacques Lourcelles também escreveu sobre o filme no seu Dicionário, dizendo: "Se se tentar fazer o balanço da obra de Rossen (dez filmes e uma quinzena de argumentos), ela parecerá certamente inacabada, decepcionante, sem dúvida azarada e por instantes apaixonante. Nisso, Rossen parece-se estranhamente com as suas personagens. No plano do êxito puro, a sua obra como argumentista (com essas obras-primas de adaptação que são The Sea Wolf e The Strange Love of Martha Ivers) parece ser mais satisfatória que a sua obra como realizador. Se a sua parábola política um bocado afanosa All The King's Men (A Corrupção do Poder, 1949) gozou sempre de um sucesso de crítica, só A Vida é um Jogo lhe permite alcançar o contacto com o grande público. Este filme (como uma grande parte da obra de Rossen) lida com um tema essencialmente americano: o êxito. Este tema assume nos Estados Unidos uma importância quase patológica. Rossen aborda-o através de um personagem complexo de « loser ». Ele define aqui o « loser » como um ser de talento a quem falta a força de carácter necessária para explorar ao máximo o seu talento e que tenta perder protegendo-se atrás de diversos álibis (alcoolismo, fadiga, etc.). O filme desenvolve a equação: êxito = talento + carácter. No enredo, a provação do sofrimento e do remorso endurece o carácter do herói. Mas A Vida é um Jogo também mergulha numa ambiguidade que não parece ser sempre voluntária. O filme desenvolve por um lado um discurso voluntarista e relativamente optimista (Newman sairá fortalecido das suas provações) no interior de um universo marcado pela influência do fatalismo desesperado do cinema hollywoodiano dos anos 40, e especialmente do film noir. Por causa disso, o balanço relativamente positivo do percurso de Newman e o desenlace estão longe de ser convincentes. Por outro lado, Rossen mantém um ponto de vista crítico sobre a noção de êxito e sugere que os « vencedores », os seres assombrados pelo êxito (e portanto a necessidade de dominar os outros) são frequentemente « uns perversos, uns retorcidos, uns doentes » e têm direito, como tal, à sua simpatia. Esse aspecto da reflexão de Rossen é transmitido pela personagem apelativa e essencial de Piper Laurie. Ela é feita da mesma água que Newman mas tem mais lucidez, desespero e vulnerabilidade do que ele. A Vida é um Jogo procura enfim distanciar-se do cinema de género dos anos 50 utilizando um estudo do meio menos pelo conteúdo realista e social que pelo seu valor de símbolo e de representação moral e filosófica do homem. Essa ambição, que levou Rossen a minimizar em certa medida a narração e a privá-la de uma boa parte do seu dinamismo interno, é também ela ambígua, semi-acabada e não inteiramente convincente, porque A Vida é um Jogo permanece um filme sobre o mundo do bilhar e deve a isso o essencial do seu impacto junto do público. Não sabemos, definitivamente, se o sucesso do filme está ligado à relativa audácia de Rossen (tentativas para se desligar do cinema de género dos anos 50) ou à sua não menos relativa prudência: A Vida é um Jogo não é, efectivamente, de forma nenhuma um filme revolucionário. A sua tendência para o simbolismo e para a abstracção felizmente é contra-balanceada pela força das suas interpretações (Newman, Jackie Gleason, George C. Scott, Murray Hamilton, Piper Laurie) que dão um grande relevo às personagens e o permite manter sempre um pé no concreto. 

Nota: Foi filmado um remake/continuação por Martin Scorsese (The Color of Money, A Cor do Dinheiro, 1986). Ela é baseada de resto remotamente num segundo romance de Walter Tevis (1984) inspirado na personagem de Felson (sobre Walter Tevis, ver o artigo de Tom Milne in « Monthly Film Bulletin », março de 1987). Newman encarna o seu personagem vinte anos mais velho. Nas mãos de Scorsese, o filme torna-se a história muito insignificante, mas cómica em alguns lugares, de um avô judicioso e nostálgico que dedica toda a sua energia a ensinar a vida a um pequeno exibicionista de terceira categoria. A segunda parte, em que Newman começa a jogar e quer saber se o potro dele prevalecerá sobre ele, é completamente inepta. O verdadeiro tema do filme já não é o embuste mas o exibicionismo, tema sem dúvida caro ao coração de Scorsese, um dos maiores « exibicionistas » entre os cineastas da sua geração (ver aqui o seu uso da grua e dos efeitos de montagem). As personagens femininas são invasivas e nulas ao mesmo tempo.

Até terça!

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Apresentação de Exodus, por Miguel Marías

Exodus (1960) de Otto Preminger



por João Palhares

Depois de baralhar as contas, como as tinha baralhado Fritz Lang em Beyond a Reasonable Doubt, dizendo-nos em Anatomy of a Murder que para ilibar todos os inocentes é preciso deixar escapar alguns culpados e que é preferível esse sistema àquele que castiga alguns inocentes para prender todos os culpados, não sem mostrar a dose de desilusões pessoais e profissionais que ser por tal sistema carrega consigo, entre noites mal dormidas e trabalhos mal pagos acompanhados pelo jazz e pelos blues de Duke Ellington; depois de ter dito bom dia à tristeza e boa noite à felicidade com Jean Seberg nos bares sujos de Bonjour Tristesse; de ter descoberto a mesma Jean Seberg e a ter feito passar pelas venturas e pelos martírios da Jean eterna e milenar no aço e no fogo de Saint Joan; de opor Gary Cooper ao mundo no pequeno e afunilado tribunal de The Court-Martial of Billy Mitchell, em que parte das tensões em jogo também se deviam à oposição da velha (Cooper) à nova Hollywood (Rod Steiger); a sinfonia sensual e desesperada de Carmen Jones, ópera selvagem em que Dorothy Dandrige cantava a Harry Belafonte que “If I love you, that's the end of you” e não se enganava; os pecados, as desilusões e os arrependimentos de Marilyn Monroe ao longo desse River of No Return, tão fundo quanto o orgulho de cada um o fizer, cristalizados nos ritmos dessa linda canção que no fim se canta e filmados em Technicolor e Cinemascope; o nocturno inferno de Where the Sidewalk Ends em que se pode ver mesmo Dana Andrews a olhar de frente e a atravessar o fio da navalha que separa as acções da consciência; as obsessivas deambulações de Andrews e Gene Tierney em Laura e Whirlpool, estandartes do fascínio do noir e dos mágicos anos 40; e depois de duas bizarrias totalmente opostas mas consecutivas e exactamente do mesmo ano (1947) - o desbragado e explosivo Forever Amber que eternizou Linda Darnell e o contido e hipnótico Daisy Kenyon, que pela certeza nos leva e na dúvida eterna nos deixa – Otto Preminger realiza Exodus

A fluidez da câmara de Preminger nesta etapa da sua obra – a passagem dos anos 50 para os anos 60 e daí quase até ao final dos anos 70 – atinge o seu zénite. Além de Exodus e Anatomy of a Murder, filmes como Advise & Consent, The Cardinal, In Harm's Way e Bunny Lake is Missing parecem a ilustração perfeita das palavras de Jacques Rivette a propósito de Angel Face e The Moon is Blue em 1954: “Preminger acredita acima de tudo na mise en scène, na criação dum composto preciso de cenários e personagens, uma rede de relações, uma arquitectura de ligações, um complexo animado que parece suspenso no espaço. O que é que o tenta, senão o talhar duma  peça de cristal para transparência com reflexos ambíguos e linhas claras e nítidas ou o tornar audível certos acordes desconhecidos e raros, em que a beleza inexplicável da modulação justifica subitamente o conjunto da frase?” Como estes filmes se assentam e partem de linhas narrativas precisas e personagens muitíssimo bem definidas, Preminger pode não só dar-se ao luxo de os encher com percursos e ideias aparentemente irreconciliáveis numa propagação inesgotável do contraditório e numa capacidade dialéctica que só pode resultar numa sensação de causalidade perfeita; como também de dar azo ao impressionista que há em si e ilustrar essa causalidade com sequências absurdas e loucas como a do assalto à prisão em Exodus ou a fuga pela noite do senador interpretado por Don Murray em Advise & Consent ou os vinte minutos finais de Bunny Lake is Missing. Muito como um romancista que sabendo perfeitamente o rumo dos acontecimentos se deixa perder em devaneios belíssimos e poéticos que só atestam a realidade e a verosimilhança do que quer contar, Preminger é capaz de se perder durante largos minutos no que confessa uma personagem sem que achemos por um momento que é despropositado. 

Os acontecimentos de Exodus têm lugar dois anos depois do fim da segunda guerra mundial e da barbárie dos campos de concentração e tudo isso assombra as personagens: Kitty é viúva e perdeu o filho, Ari perdeu a noiva e mal se recompôs, Karen ouve uma explosão ao longe e todas essas terríveis lembranças parecem surgir num fluxo só que a faz cair numa crise nervosa. Dov tem uma recaída na longa e insuportável cena do interrogatório a que é sujeito para entrar no grupo terrorista do Irgun quando tem que contar a Akiva (o tio de Ari e líder do Irgun) tudo aquilo por que passou em Auschwitz para sobreviver; o próprio pai de Karen deixa transparecer estas lembranças e o pesadelo constante numa mudez e num fitar de olhos doentio e já arrebatado pelo mundo dos mortos. Preminger não é um optimista e podemos-lhe associar a tempestade final de In Harm’s Way, que expressa as convulsões desta gente que luta para não morrer mas que já morreu por dentro de tantas formas, sequência surrealista que só pode significar e ilustrar essa batalha interior e essa barreira intransponível que é a consciência, com que todos os personagens da obra de Preminger se batem ferozmente e quase que compulsivamente. Em Exodus não haverá alternativa a isto, o realizador não quis confortar ninguém, a luta parece constante e os tempos parecem ter-lhe dado razão. Também lhe podemos associar os ecos de No return, no return... que saem da profunda melancolia de Marilyn Monroe ou o olhar vazio do cardeal de The Cardinal que usou a religião como protecção e para negar os verdadeiros sentimentos... 

O Cinemascope foi inventado para filmar personagens que se confrontam não com os outros, nem sequer com o que os rodeia mas consigo próprias, como se ao abrir as lentes e as margens que nos passam a mostrar planícies e montanhas a perder de vista se abrisse também a caixa de Pandora e a porta para o inconsciente. A figura perdida na imensidão da paisagem, o homem perdido no turbilhão da história, a alma reflectida no céu e nos vales da Palestina...

sábado, 18 de junho de 2016

19ª sessão: dia 21 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão será Exodus, filme de Otto Preminger com Paul Newman, Eva Marie Saint, Lee J. Cobb, David Opatoshu, Sal Mineo e Jill Haworth e que marca a entrada nos convulsos anos 60. Conhecido talvez mais por ostentar corajosamente o nome de Dalton Trumbo nos créditos do filme e "acabar" com a Lista dos Dez de Hollywood do que por ser o portentoso filme que é.

A anteceder o filme teremos uma apresentação em vídeo pelo grande Miguel Marías, economista, historiador, crítico de cinema, ex-director da Filmoteca Española em Madrid e autor de livros sobre Leo McCarey e Manuel Mur Oti. E também presença habitual nos programas sobre cinema Qué Grande es el Cine, Cine en Blanco e Negro e Querer de Cine.

Debruçando-se sobre a obra do realizador, Marías escreveu em 2010 que "(...) os melhores filmes de Preminger não tentam chamar a atenção, não têm efeitos estridentes - embora os seus inimigos vejam sempre nele tendências "sensacionalistas" -, nem proclamam a sua própria importância, de modo que, à primeira vista, se não se lhes presta a atenção devida, podem parecer banais e até "de montão". São construídos quase sempre à base de planos extraordinariamente longos, de uma riqueza assombrosa, pensados e filmados com simplicidade e elegância tais que não se nota a sua duração nem a sua complexidade de movimentos; em vez disso acontece o contrário: parecem simples, normais, naturais, lógicos. Às vezes, passados vários minutos, começamo-nos a perguntar se houve alguma mudança de plano ou continua sem haver nenhum corte; pode-se verificar que quase nunca há, que se trata de um plano-sequência longuíssimo ou que se, por acaso, Preminger o interrompeu para introduzir, de maneira quase imperceptível, uma mudança de ponto de vista que era inevitável e necessária, que tinha sido forçado e difícil substituir por um movimento de câmara lento e arbitrário comparativamente. Várias das obras de maturação de Preminger, mais ou menos a partir de Exodus, são obviamente super-produções de mais de duas horas; em cada caso, tanto o custo como a metragem - que nunca é penosa ou desmedida - eram perfeitamente justificados pela autenticidade dos cenários e a amplitude e a complexidade do enredo, que interliga ou relaciona quase sempre um número assombroso de personagens, incidentes e acontecimentos históricos. Uma das peculiaridades que caracterizam Preminger como cineasta é a sua capacidade insuperável para contar uma história de forma clara, que na etapa culminante da sua carreira se estende a uma grande variedade de personagens que trazem consigo as suas próprias trajectórias e relações pessoais, justamente entrelaçadas de tal maneira que as que pareciam de importância secundária ou passageira carregam repentinamente um inesperado peso moral ou dramático e passam a ocupar o centro da acção antes de desaparecer ou voltar para o fundo da cena, enquanto que aqueles que pareciam agentes ou que durante algum tempo nos tinham servido de guias na cadeia de acontecimentos que Preminger nos mostra perdem poder ou presença activa e são temporariamente eclipsados (vejam-se as interpretadas por Henry Fonda, Don Murray, Charles Laughton, Walter Pidgeon, Franchot Tone e Lew Ayres em Advise & Consent)."

Já Chris Fujiwara, no seu livro sobre o cineasta, The World and its Double: The Life and Work of Otto Preminger, escreve que "Mesmo lidando com um tema tão carregado emocionalmente como o de Exodus, Preminger é acima de tudo um pragmático, e vê sempre as escolhas morais das personagens em termos das suas consequências práticas. As acções terroristas do Irgun são condenadas não por motivos éticos, mas porque, como diz Ari, "estes atentados ferem-nos junto da ONU" (frase ecoada pela queixa de Barak de que Akiva "apresenta-nos ao mundo como um bando de assassinos"). A razão porque a interpretação de Paul Newman como Ari é tão bem sucedida - apesar das próprias apreensões de Newman - é que está precisamente dentro do espírito do filme: nada sentimental, económico, e apaixonado pelo prático. Preminger, como Ari, leva as coisas para a frente. Quando o Haganah e o Irgun tomam um balneário turco como a primeira fase do ataque à prisão de Acre, a entrada dos assaltantes e o alinhamento dos banhistas na parede com os braços levantados parecem menos uma causa e o seu efeito do que as duas partes dum único movimento em massa. Em Gan Dafna, Kitty não tem tempo para reagir à decisão de Karen em não ir para a América: um altifalante chama Kitty à enfermaria logo depois de Karen declarar a sua escolha. É dado tão pouco tempo à reflexão neste filme que quando alguém faz mesmo uma pausa para reagir a alguma coisa, o momento tem grande peso: Dov a encontrar o corpo de Karen; Ari a descobrir o corpo de Taha - num plano que se detém na reacção profunda dele antes de revelar, continuando a acompanhá-lo com uma panorâmica, o objecto da sua tristeza."

Finalmente, no seu Dicionário capital, Jacques Lourcelles escreveu que "Exodus dá o exemplo, definitivamente muito raro, de um filme que relata de maneira autêntica, realista e objectiva um acontecimento histórico contemporâneo de grande envergadura fazendo-o reviver na multiplicidade dos seus aspectos. São necessários pelo menos três valências para chegar a esse resultado: uma dramaturgia perfeita que concentra em poucas horas de projecção uma rede forçosamente complexa de circunstâncias, de linhas de força, de conflitos; uma gama de personagens suficientemente bem concebidas no relevo individual para interessar o espectador mesmo para além da situação histórica em que se situam; e por fim um trabalho de câmara que, de momento a momento, seja vivo o suficiente para recriar no presente a textura de um drama que, apesar de recente, corre sempre o risco de se imobilizar numa penumbra documental insignificante ou então numa estampa de Épinal falsa e detestável. Grande dramaturgo, Preminger soube, com a ajuda de Dalton Trumbo, harmonizar com clareza e simplicidade os elementos de uma situação complexa e cuja exposição não pode parar um segundo de progredir de maneira directa. Nenhum dos aspectos históricos, heróicos, verdadeiramente publicitários, desta situação (uma vez que a odisseia do Exodus tinha como objectivo alertar a opinião mundial sobre o destino de judeus desejosos de se instalar na Palestina) foi negligenciado. À dramaturgia do filme, só podemos censurar a elipse da própria travessia e dos acontecimentos dramáticos que a acompanharam e o lugar talvez grande demais concedido à preparação e à realização do ataque da prisão de Acre, sequência planeada como um ballet através da qual o autor quis sublinhar o carácter inevitável da violência numa revolução ou na criação de um Estado. (É preciso notar igualmente que este episódio, o primeiro em que a vitória foi atingida pela acção conjunta de duas organizações antagonistas lutando pela criação de Israel, prenuncia a vitória final e, por isso, toma uma importância capital.) Grande romancista, Preminger conseguiu animar personagens humanas, variadas e credíveis que reflectem os diferentes pontos de vista dos participantes no drama: dois oficiais ingleses (um general humanista e um fantoche antissemita) que exprimem as várias posições da Inglaterra em relação aos judeus; uma família judia dividida (um «sabra» e dois irmãos inimigos); testemunhas (a enfermeira americana) que se tornam parte integrante do drama depois de o terem observado de longe; um jovem árabe vítima do seu liberalismo; dois jovens judeus profundamente imersos na tragédia vivida pelo seu povo: o terrorista Dov Landau e a adolescente Karen (interpretada por Jil Haworth que Preminger tinha encontrado, como Jean Seberg para Saint Joan, entre uma série de candidatas). É talvez na pintura destas duas personagens, as mais distantes dele pela idade e pela experiência vivida, que Preminger revela melhor os seus dons de romancista e a sua capacidade para compreender e fazer compreender todos os tipos de humanidade. E, nele, o romancista e o dramaturgo vão conjugar os seus talentos quando se trata por exemplo de concentrar numa só cena (o interrogatório de Sal Mineo por David Opatoshu) todo o horror dos campos da morte evocado através da memória de um sobrevivente. Filmado nos lugares da acção, com uma rapidez louca e tranquila ao mesmo tempo (catorze semanas de rodagem depois de seis meses de preparação intensa), é o filme mais vigoroso e o mais sereno do autor. Utilizando pela sexta vez (aqui através da Panavision 70) o formato do cinemascope que adora e que emprega tão bem nas cenas íntimas como nas cenas de elevada figuração, Preminger alcança uma por uma, com uma espécie de júbilo tranquilo, as metas que definiu na segunda parte da sua carreira (aquela em que ele se tornou definitivamente livre e independente de todas as pressões exteriores). Essas metas são principalmente: procura e exaltação do positivo, respeito pelas posições antagonistas, culto da autenticidade e da objectividade, definitivamente expressão de uma confiança no homem adquirida mais tarde na vida e com a maturidade. O tema da odisseia do Exodus e do nascimento de Israel convém-lhe portanto perfeitamente, porque permite mostrar, numa narrativa relativamente optimista, a metamorfose da tragédia em epopeia, do martírio e da dispersão em solidariedade nacional. Filme de autor por excelência, embora não se atormente nada para o parecer, Exodus por outro lado revela claramente um grande número de facetas do Preminger homem: liberal por vocação e por convicção, indiferente à religião, irónico mesmo sobre os temas sérios, sensível mas odiando o sentimentalismo, secreta e pudicamente generoso.

Nota: Foi Dore Schary, alto-responsável da MGM, que despertou em Leon Uris o desejo de escrever Exodus e que patrocinou o seu trabalho, destinado a tornar-se um best-seller. Depois a MGM começou a achar a adaptação do livro para filme arriscada (ameaça de boicote, etc.). Por intermédio do seu irmão Ingo, agente literário, Preminger adquiriu os direitos do livro. Pediu primeiro ao próprio Uris para escrever o guião e depois, insatisfeito com o trabalho dele (e especialmente os diálogos), virou-se para Dalton Trumbo, cliente do seu irmão. Foi graças a Preminger que pela primeira vez um argumentista incluído na Lista Negra de McCarthy pôde voltar a aparecer num genérico com o seu verdadeiro nome. Dois filmes mais antigos, de 1949, tinham evocado os acontecimentos na Palestina: Il grido della terra (Exodus, Itália) de Dulio Coletti, história sentimental e bastante aborrecida, e Sword in the Desert (A Legião do Deserto, USA) de George Sherman, excelente filme de acção em que Dana Andrews encarna um capitão de navio que transporta emigrantes judeus clandestinos por dinheiro, tomando parte na luta deles pouco a pouco."

Até Terça!

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Apresentação de O Homem que Luta Só, por Andy Rector



Ride Lonesome (1959) de Budd Boetticher



por João Palhares

JOHN MILIUS: (…) As I said, my ambitions stopped at B Westerns. 

 KEN PLUME: Yeah, but sometimes people's favorite films, that have the most impact on them, are those B Western types... 

 MILIUS: Yeah, but I mean, I stopped at B Westerns. I thought that was a good life. I never wanted to be Alfred Hitchcock or some big mogul, I didn't want to be Louis B. Mayer. I wanted to be, I don't know what, Budd Boetticher or something. 

 in An Interview with John Milius 

Budd Boetticher nasceu em Chicago no ano de 1916, tendo-lhe sido dado o nome de Oscar Boetticher Jr. por Oscar e Georgia Boetticher de Evansville, no estado do Indiana, que o adoptaram depois dos pais biológicos morrerem quase imediatamente a seguir ao nascimento de Oscar. Fez sucesso como jogador de futebol americano, pugilista e atleta nas várias escolas que frequentou mas teve uma lesão que o fez parar durante um ano e meio - tempo que aproveitou para fazer uma viagem com um dos seus amigos pela América do Sul. Mas quando viu Don Lorenzo Garza na arena de touros da Cidade do México cancelou o resto da viagem e ficou por lá para aprender com ele a arte do toureio. A história é contada parcialmente em The Bullfighter and the Lady, filme fabuloso com Robert Stack (o Roger Shumann de The Tarnished Angels, visto aqui em Maio) como John 'Chuck' Regan (e um alter-ego de Oscar 'Budd' Boetticher) e Gilbert Roland como Manolo Estrada, personagem baseada em Don Lorenzo Garza. A história circulou pelos jornais de Evansville, Georgia Boetticher não lhe achou piada nenhuma e face às constantes viagens do filho ao México pediu-lhe com jeitinho que escolhesse outra profissão. O filho disse-lhe que não e escreveu depois na sua auto-biografia, When in Disgrace: “Mas Georgia B. não era de ser derrotada. Descobriu que a Twentieth Century-Fox ia fazer uma versão do Blood and Sand com Rudolph Valentino, o épico espanhol de touradas, e apressou-se a telefonar a Hal Roach. Hal Roach Junior tinha sido o meu melhor amigo na Academia Militar de Culver e tinha continuado o meu melhor amigo nos anos que se seguiram. Nessa altura em Hollywood era mais importante conhecer um produtor, ou um realizador, ou uma estrela - se se quisesse um favor. Bem, a mãe saiu-se com a sorte grande. Hal Roach Senior era dono dum estúdio inteiro, e ficou encantado por telefonar ao seu comparsa, Darryl. Havia uma posição no projecto que ainda não tinha sido preenchida, a de "director técnico," alguém que compreendesse totalmente a arte da tourada, e que falasse bom inglês. Pelo menos falava muito bom inglês, e foi o fim do assunto.”

E assim começou a carreira de Boetticher em Hollywood. Sempre entre viagens e estadias no México, a que ele voltou sempre porque “primeiro tem-se uma grande vida” e só depois se pensa nos filmes, como confessou a Philippe Garnier e Claude Ventura quando estes o visitaram na América para gravar Boetticher Rides Again. Depois de filmes muito baratos para a Columbia, para a Eagle-Lion e para a Monogram, também escolas para Richard Fleischer, Phil Karlson, Anthony Mann ou Joseph H. Lewis e onde fez Escape in the Fog (bizarria fascinante e inventiva regada a pesadelos e nevoeiros), Boetticher consegue que John Wayne produza The Bullfighter and the Lady, filme pessoal e apaixonado em que as estátuas de toureiros que encantam imenso o realizador e aparecem também muito no filme pontuam as manobras dos toureiros que ao atrair os touros e ao os fazer seguir a capa vermelha, não arredam pé, não se desviam (é a primeira lição da personagem de Gilbert Roland à de Robert Stack). Tudo já muito perto da obstinação e da frieza de Randolph Scott, homem que tem sempre uma missão para cumprir. Tudo não muito longe da insolência hirta e silenciosa de Rock Hudson em Seminole, mostrada nas continências protocolares ao seu superior, ou dos cálculos gélidos do assassino de The Killer is Loose. E tudo isto porque o único ídolo que Boetticher teve na vida foi “um ás de guerra alemão, o Barão Manfred Von Richtofen. E sabem porque é que o admirava e desejava ter sido o Barão Vermelho? Porque era um indivíduo, fazia as coisas da maneira dele. É por isso que Randolph Scott é um indivíduo, é por isso que 'Legs' Diamond é um indivíduo, é por isso que eu gostava mais da corrida de cem jardas do que jogar futebol americano. No futebol, tinha mais dez gajos para suportar, se eles falhassem o bloqueio, estava feito, não fazia o touchdown. Nunca consegui perceber isso. Nas cem jardas, se chegar em segundo, a culpa é minha.”

Em Ride Lonesome, Randolph Scott percorre o deserto com uma ideia fixa e com gestos precisos, as personagens dizem só o necessário e fazem o que têm a fazer. Em Ride Lonesome Pernell Roberts engana James Best com um discurso de retórica fabuloso, enquanto saca da pistola a tempo para melhor se fazer ouvir. Em Ride Lonesome há interlúdios extraordinários com cinco pessoas a cavalgar ao sol, à sombra, pelo deserto ou à beira-rio, que dilatam o tempo e parecem fazer diluir percursos e missões, como o plano em The Tall T com a silhueta dum dos bandidos a aparecer e a desaparecer sem que a banda-sonora o denuncie e que é de uma poesia devastadora. Em Ride Lonesome o destino e o que está em jogo inscrevem-se nos gestos das personagens, como quando Gilbert Roland vai para a arena de The Bulfighter and the Lady e só pode usar um dos braços. Também essa cena é de uma poesia devastadora, opondo a graça e a beleza dos movimentos à tragédia iminente - a elegância à brutalidade. Karen Steele, que apareceu em quatro filmes de Boetticher, penteia-se ao nascer do sol em Ride Lonesome, enquanto Roberts e James Coburn conversam sobre mulheres e sobre que tipo de mulher ela será e enquanto os primeiros raios de sol lhe douram ainda mais o cabelo. Pois é, Ride Lonesome tem James Coburn. É um miúdo de que Boetticher gostou tanto que não matou no fim. Pernell Roberts, igual. Vão-se embora a cavalo com o bandido e com a viúva enquanto Scott enterra as suas memórias. Para eles, o futuro. Para Ben Brigade, nada, um mar de remorsos.

Tem uma missão a cumprir, na clareira com a árvore da forca que volta a aparecer em Comanche Station (a música do genérico desse filme é a mesma que a de Ride Lonesome). A personagem de Lee Van Cleef aproxima-se muito cautelosamente enquanto os homens dele olham desconfiados e receosos para Scott. Scott mata Cleef e incendeia a árvore. Ninguém sabe o que vai fazer a seguir. Provavelmente é o próximo a ir...

sábado, 11 de junho de 2016

18ª sessão: dia 14 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Ride Lonesome, última escala da caravana dos anos 50 em Hollywood e um dos pontos mais altos e tremendos da colaboração entre Budd Boetticher e a estátua de Randolph Scott, é a próxima sessão do nosso Cineclube.

É o quinto filme da série de sete com o mesmo realizador e actor, iniciada com Seven Men From Now e que terminará em Comanche Station. Mas é já o trigésimo filme de Boetticher, que foi empurrado para o cinema muito contrariado e começou a realizar no início dos anos 40, deixando-nos um belíssimo The Bullfighter and the Lady, três grandes westerns com Rock Hudson (Seminole), Glenn Ford (The Man from the Alamo) e Van Heflin (Wings of the Hawk) e um fabuloso film noir chamado The Killer is Loose.

O filme será antecedido por um vídeo inspirado nas personagens e nos ambientes de Ride Lonesome, feito especialmente para esta sessão pelo americano Andy Rector.

Philippe Garnier, que visitou Boetticher no seu rancho com Claude Ventura nos anos 90 para filmar Boetticher Rides Again (episódio de Cinéma, de notre temps, série produzida por André S. Labarthe e Janine Bazin), escreveu em Boetticher, Don Quichotte du western que "é o seu encontro com Burt Kennedy e Randolph Scott que vai ser determinante. A partir de Seven Men From Now de 1956, até Comanche Station de 1960, eles farão uma série de pequenos westerns tão económicos como originais que, pela felicidade de expressão, só têm igual nos westerns de Anthony Mann com James Stewart. «É sempre a mesma história: Scott tem uma missão para cumprir, geralmente uma morte para vingar, e leva o tempo dele para a realizar», explicou o cineasta. Ele e Kennedy vão refinar o método com The Tall T e Ride Lonesome, criando ao mesmo tempo a mais bela galeria de hereges alguma vez vista na tela. Porque estava lá a descoberta, que tornava filmes como Ride Lonesome ou Comanche Station tão únicos: os vilões eram quase dignos de Scott, ou eram truculentos demais para que ele tivesse o desejo de os matar (como o fim de Ride Lonesome, que Boetticher filmou contra as instruções do estúdio, numa época em que os criminosos tinham obrigatoriamente que sofrer o castigo.)"

Chris Fujiwara, que em Março nos apresentou Canyon Passage, debruçou-se sobre os filmes de Budd Boetticher num artigo para o Boston Phoenix, aquando duma retrospectiva do realizador, notanto que "o Oeste de Boetticher é autónomo, abstracto. O mundo equivale a um homem, mais outros homens, uma mulher, rochedos, alguns edifícios, e um sem-fim implícito de paisagem neutra por todo o lado. Boetticher deleita-se na uniformidade basilar dos seus filmes. Comanche Station (...) acaba com o herói na mesma posição que no início. A natureza está ausente, ou morta, como a árvore da forca em Ride Lonesome (...) que é o símbolo fundamental no ciclo Boetticher-Scott. A renovação é moral e individual, e não natural e universal.

No entanto a paisagem permanece importante. A abstracção que é uma das qualidades principais do trabalho de Boetticher não se inscreveria como abstracção sem o fundo do meio concreto que ele retrata. Um argumento disto pelo contrário pode ser encontrado na irrealidade árida do Stopover confinado-ao-estúdio, o episódio de Boetticher de 1961 para a série de televisão The Rifleman, uma pequena curiosidade que Harvard está a programar numa sessão com a primeira entrada lendária, há muito indisponível no ciclo Boetticher-Scott, Seven Men from Now (...)."

Por fim, Martin Scorsese alongou-se um pouco mais, dizendo que "a ideia em Ride Lonesome, este solitário - e Scott interpreta-o de maneira tão perfeita. Eu acho que usei este filme em particular como referência para muitos actores mais jovens em certos filmes que fiz, particularmente The Departed e depois um certo número doutros filmes em que as pessoas se encontram sozinhas num certo mundo e universo e toda a gente está contra eles, por assim dizer. O solitário - quero dizer, num certo sentido - é mesmo essencial para a história do western. Ele está lá na região selvagem, a traçar o caminho dele sozinho e portanto temos que nos perguntar a nós próprios quão central é, na verdade, como americanos, para a história deste país - a ideia do solitátio. É porque é uma grande parte da nossa mitologia, a nossa ideia de nós mesmos como americanos e obviamente está lá em Melville - sendo Moby Dick o primeiro e mais famoso exemplo a vir à mente. É fundamental para os westerns e tão fundamental para histórias urbanas, como—do pé para a mão—On Dangerous Ground, o filme de Nick Ray, por exemplo. Taxi Driver, que Schrader escreveu. E, claro, a maior parte das histórias de solitários são também sobre a sua luta para se adaptarem na comunidade ou para chegar a um acordo com a comunidade, ultrapassar algum tipo de dor ou perda e que é um dos elementos que é tão poderoso em Ride Lonesome. Scott é um caçador de prémios que se quer vingar do homem que enforcou a mulher dele e está bem próximo de The Naked Spur, de Anthony Mann, com Jimmy Stewart, em que Jimmy Stewart persegue o homem que matou o irmão dele. Mas, claro, em ambos os filmes, os heróis acabam por perceber—é isto a chave!—acabam por perceber o preço, o peso, da vingança—o peso que lhes cai em cima.

Por muito que falemos sobre a rarefação do enquadramento, e do minimalismo, eu devo dizer, que os enquadramentos de Boetticher, o modo como o trabalhou com a concepção do filme, pensar-se-ia a que um formato 1:33, um 1:85 seria mais confinado e torná-lo-ia mais minimalista. Mas, para mim, ele abriu com o ecrã-largo e tornou-o ainda mais preciso. E foi usado muito espaço negativo para que o minimalismo fosse enfatizado ainda mais com o ecrã-largo. E Boetticher adorava trabalhar com scope. Talvez o enquadramento em scope adicione neste filme, ou como em Comanche Station - além do espaço negativo - um sentido épico, sabem, um bocado menos comprimido e mais aberto. Mas eu acho que esse espaço extra no ecrã-largo, o modo como o usou tornou as personagens ainda mais solitárias, por assim dizer. E minimalistas, sabem.

Mas o fim de Ride Lonesome é excepcionalmente forte porque representa na verdade o final de dois movimentos muito fortes ao mesmo tempo. Também há algo que é preciso dizer sobre a determinação da vingança - e eu acredito... ouvi dizer que Revenger's Tragedy de Turner, a peça elizabethiana, teve algo que ver com estes filmes. E portanto este é um tema que é universal e um tema que tem estado próximo do coração de toda a gente ao longo dos séculos e eu acho que isso é a natureza fundamental da imagem da árvore em chamas. O facto de Ben Brigade, que é Randolph Scott, conseguir fazer o que tinha a fazer, permite-o queimar a sua cruz representada pela árvore, de certa maneira, e é uma imagem notável. E muito bonita e poderosa e gratificante porque Brigade, que é o personagem de Scott, não está só a destruir a árvore onde a mulher dele foi enforcada mas está também a destruir a vingança, a pôr em repouso a sua vingança - fica em paz consigo mesmo. E quando uma personagem destrói algo que tem sido uma espécie de sonho ilusório é sempre muito forte. Como por exemplo em Days of Heaven de Terrence Malick, quando Sam Shepard deixa a quinta dele arder porque pensa que a mulher não o ama mais. Em Spencer's Mountain de Delmer Daves, quando Henry Fonda queima os alicerces da sua casa de sonho para poder vender o terreno e mandar o filho dele para a universidade. Ou o western de Monte Hellman, China 9, Liberty 37, em que Warren Oates e Jenny Agutter recomeçam o casamento deles e deixam a sua casa reduzir-se a cinzas...

Muitos filmes têm grandes aberturas e depois como que se perdem e pode-se ver que o realizador e o argumentista tiveram uma ideia para uma sequência, havia um ponto em que se saltava, mas tudo o resto não se somava para o que seria essa cena, não podiam lá regressar. E talvez por terem ficado... quem sabe, talvez por terem ficado presos a essa cena. Mas o que é tão bom nos filmes de Boetticher e Scott é que eles progridem lenta, casual, calma e intimamente e quase sem se notar é-se apanhado numa teia de relações muito complexas entre estas personagens."

Até terça!

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Apresentação de Deus Sabe Quanto Amei, por Jorge Silva Melo

Some Came Running (1958) de Vincente Minnelli



por José Oliveira

Some Came Running, o filme de 1958, é baseado num romance de James Jones com o mesmo nome lançado apenas no ano anterior, fascinante escritor da hoje chamada segunda linha da literatura norte americana do pós segunda guerra mundial – bendita segunda linha tantas vezes melhor do que a titular – e muito mal recebido depois do sucesso estrondoso de From Here to Eternity. A crítica acusou-o de apressado, mal escrito, cheio de divagações, inutilidades e falta de nexo. Vincente Minnelli, humanista incurável, percebeu logo que não se tratavam de erros mas sim da busca do calor essencial a cada qual, desse irracional da paixão em estilhaços, da volta ao lar condenada, de alguns no acaso, coralidade onde os seus seres vão constantemente da tensão ao rodopio, resultado dos instantes graves e da bifurcação sem apelo nem agravo. Movimentos estonteantes e pacificações vislumbradas que divergindo nas palavras e no celulóide conservam o essencial. Jones expande-se no tempo, na geografia, no dia-a-dia detalhado – a inenarrável central de táxis aberta por Dave Hirsh, o papel da vida de Frank Sinatra, por exemplo – e no amor em lento trabalho, enquanto Minnelli tudo concentra, os amores furiosos em primeiro lugar, num diminuto cenário e em poucos dias para tudo fazer explodir na cena da feira popular, onde as cores garridas do technicolor e os ângulos vacilantes do cinemascope se consomem num fim ou numa libertação que é o auge do livro ou do filme. 

Dando a palavra a Jones, é lá perto do final das mil páginas originais deste contundente e contraditório altar terreno que se lê: «a essência, o sumo do que queria dizer, era que o homem constituía por si mesmo um universo sagrado e ao mesmo tempo um balde de porcaria, que infectava o ar do jardim e do qual era preciso desembaraçar-se o mais rapidamente possível. Estas duas coisas não só se misturavam indestrinçavelmente, sim formavam uma entidade só e única, não existindo portanto mais do que uma evolução». Isto é o que Hirsh ousou dizer num momento de aflição ou de clareza, e é o coração de Some Came Running. O alto e o baixo, o sublime e a degradação, a expressão bela e os impulsos selvagens e irreprimiveis. Contradições que são o sangue e a normalidade de quem como Minnelli, Jones ou Hirsh – ou a personagem de Dean Martin e absolutamente a de Shirley MacLaine – se entregam ao turbilhão da vida – que podem ser os copos emborcados sem regra, o jogo das cartas como modo de vida ou a inocência sem freios – e assim tanto estão ao lado dos modos aceites e ditos bonitos como no momento seguinte bailam com a selvajaria e a sujidade. 

Voltando ao filme, tudo isto está logo na primeira cena. Hirsh a aterrar na sua minúscula cidade natal, muitos e muitos anos depois de a ter mandado às favas, ressacado de morte da noite de ontem, acordado pelo motorista e com a cabeça ainda em chamas, tudo acentuado pela fabulosa partitura pica-miolos de Elmer Bernstein. Sai do autocarro e atrás dele a rapariga de MacLaine, Ginnie simplesmente chamada, que correu atrás do magala pois a bebedeira desse tudo lhe prometeu. Hora e palco perfeito para o sagrado e a porcaria tomarem conta da interacção, de tudo. Ele, muito naturalmente, nem se lembra dela. Ela, já tinha feito todos os planos do mundo e agradecido aos sonhos. Hirsh afasta-a, corre com ela, como que a abraça. Oferece-lhe dinheiro como a uma prostituta descartada, pede desculpa, é carinhoso e amargo. Uns entre nós podem achar comportamentos destes genuínos, outros apelidar de bestas e de porcos os seus autores. Isto para não referir muito esse encontro feio entre a Ginnie de má fama e a sua rival de tacão alto afamada, onde sobre alta cultura ou sobre sexo masculino ambos dizem o mesmo, sendo a primeira muito mais singela e por isso mesmo complexa e clara. Mas Minnelli, e Jones, não fazem julgamentos, apenas seguem o fluxo, possuídos, na caneta e na câmara, por tal febre. 

Ficando agora no temperamental e ainda hoje não consensual cineasta – tantos diriam "realizador" – do povo e dos largados, mas também de artistas e dançarinos, muitos especialistas têm dividido a sua obra entre o género musical e o melodramático, a comédia e a tragédia. Mas basta ver a sequência da morte de Ginnie, que depois da desgarrada culmina com uma junção em torno do seu corpo e da sua aura, próxima das composições renascentistas mas tocada pelo bailado da Hollywood quintessenciada, num equilíbrio e num derrapanço de forças e de centro que vai além da fasquia da modernidade – e para quebrar ainda mais o charco basta lembrar uma entrevista em que Minnelli a propósito de Yolanda and the Thief e outros fala da sua admiração pela pintura surrealista, de Max Ernst a Salvador Dalí, ganhando a questão dimensões completamente alucinantes (atenção ao sonho/Dalí/Luis Buñuel de Spencer Tracy Father of the Bride) - para se perceber e sentir que tudo na arte e no respirar de Minnelli é uno e igualmente indestrinçável, consanguíneo, sem fórmulas prontas-a-vestir; sequência que ao lado da aurora sinfónica do coro de animaizinhos que vai acordando em The Clock, será o exemplo supremo. O deslizar esvoaçante e os engates corriqueiros, os insultos sem intenção e o triste crime, o canto dos pássaros enlaçado com o vociferar dos incompreendidos. Assim como se disse e é evidente que em Orson Welles a poesia entra na prosa e a prosa é logo poesia, também no caso de Minnelli o dito musical e o dito romanesco correm nas mesmas veias, sem prejuízo de rebentamento. A varinha de condão das fadas sempre fez parte do repertório e da vasta gama de recursos do cineasta, tanto como a alucinante e descarnada sensação de realidade e de chão. Por isso não há gaveta nenhuma onde se possa arrumar disto. 

Resquícios de Western e melodrama sem amarras. O cinemascope ao nível dos sentimentos e o technicolor a rebentar em encarnados incendiários no instante lancinante. Miséria, companheirismo e redenção. Dave Hirsh, que não queria mais escrever por nada deste mundo, que tinha deitado para o balde do lixo o seu último manuscrito - mas que trazia na mala junto com as garrafas de whiskey as obras completas de Faulkner, Hemingway, Wolfe, Steinbeck e Fitzgerald - descobriu uma tal energia e candura secreta na menina de Ginnie, um modo de viver pacificado e livre mesmo na dor no estóico Bama, o personagem de Dean Martin, e que aprendeu também decisivamente com a professora que o rejeita ou com o irmão cheio de sede da decência e do dinheiro, fez o que tinha a fazer e acabou o romance, emergindo forte à sua condição ambiguamente afastada. Como fez o que tinha a fazer aquando do primeiro encontro – mais do que encontro, reconhecimento de uma estirpe fortíssima, frágil e irmã na moral do tudo ou nada – com Martin: "quando tinha a tua idade eu sabia bem como arranjar bebida" dispara Sinatra ao miúdo pusilânime que não consegue um trago, e logo Minnelli oferece a Martin um dos grandes-planos mais rasgados, bondosos e genuínos da história do cinema; grande-plano do tamanho dos prédios modernos ou das montanhas seculares, como um tronco de Manoel de Oliveira; contracampo para Sinatra e está selada uma amizade imune a todo e qualquer acontecimento, ego, deriva. No plano final, Bama a retirar para Ginnie o chapéu que jamais tirara, dá-se o afastamento pleno de todas as distâncias lamentosas, em comunhão suprema. Entre as crianças cheias de tempo e ainda imunes ao seu passar e os adultos trapalhões em constante corrida que nada sabem fazer direito, essa vénia. 

No mais, Some Came Running não tem movimentos de câmara elegantes, sofisticados ou subtis, tal como The Tarnished Angels, o filme de Sirk que vimos na semana passada, não os tinha. Nem os encarnados da paixão e da morte, como os cinzentos do fumo ou os dourados da bebida não são ilustração escolar ou psicológica. Toda esta imensa edificação está destituída de visionarismo ou do cálculo cerebral, pois trata-se da arquitectura das entranhas. O tal do irracional e do calejamento dos vividos são a mão-de-obra e a argamassa deste caso inaudito e irmão da banal novidade da publicação sensacionalista. Travellings e temperaturas em acordo, camaleónicos, conforme o orgão e a víscera em toque. Era uma vez... e não se sabia da morte, já foi uma vez... e tanto dela se tacteia. O filme, o livro, a vida, acontece: Sinatra a insultar MacLaine indesculpavelmente num segundo para no seguinte lhe pedir ajoelhado que esta se case com ele. Dean Martin a desenvolver que nasceu para beber tal como o seu amigo nasceu para escrever e por isso vive e morre conservado na bebida como Dave na fogueira literária. Alguns, como estrelas cadentes, tudo em milésimos, de passagem, amando o efémero, à maneira de Eugénio de Andrade.

sábado, 4 de junho de 2016

17ª sessão: dia 7 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Frank Sinatra, Dean Martin, Shirley MacLaine. O escritor em busca, o bebedor e jogador profissional, a bela perdida da vida. Numa vilazinha afundada no interior Americano. Resquícios de western e melodrama sem amarras. O Cinemascope ao nível dos sentimentos e o Technicolor a rebentar em encarnados incendiários no instante lancinante. Miséria, companheirismo e redenção.

O mais belo dos filmes, que urge redescobrir sempre.

Martin Scorsese falou do filme, de Vincente Minnelli e do Cinemascope em A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies, dizendo que "poucos foram tão hábeis como Vincente Minnelli a usar o Cinemascope para efeitos dramáticos. (…) No trágico final de Some Came Running, os actores parecem misturar-se com o espaço circundante. O suspense na verdade deriva da integração deles com o ambiente, não se sabe quando e se o assassino e a sua presa incauta se vão encontrar no mesmo espaço. O Cinemascope permite a Minnelli implementar uma imagem mais complexa e portanto mais ameaçadora: quanto mais aberto o enquadramento, maior a impressão de profundidade e mais surpreendente a ilusão de realidade. É-nos exposta uma tela vibrante e caótica e cabe-nos a nós explorá-la e interpretá-la."

Jorge Silva Melo, encenador, realizador e cronista extraordinário, concedeu-nos um daqueles testemunhos impagáveis porque apaixonados e por isto e por tudo o mais a próxima sessão é imperdível.

Fiquemos com João Bénard da Costa, que amou o filme como ninguém:

« Dos melodramas de Vincente Minnelli, há dois entre os quais sempre hesito quando me pedem hierarquias de preferência: The Clock, realizado em 1945, e que em Portugal se chamou A Hora da Saudade, e Some Came Running, estreado em 1959, e que em Portugal se chamou Deus Sabe Quanto Amei.

The Clock, que já alguém comparou - e não fui eu - à Aurora de Murnau, é talvez o mais belo dos breves encontros do cinema, encontro de 24 horas entre o mais magoado dos actores dos forties - Robert Walker - e a mais magoada das actrizes de sempre - Judy Garland. A mesma velha história do soldado em licença na grande cidade, que encontra uma rapariga, ela apaixona-se por ele, ele por ela, casam à tardinha, têm uma noite e depois ele volta para a guerra. Quem sorri e diz que já viu cem vezes, é porque nunca viu The Clock, onde tudo isso acontece mas acontece como se nunca tivesse acontecido.

Mas se Deus sabe quanto amo esse filme, apesar de tudo, escolho hoje Some Came Running, até porque há hipóteses de ser ouvido por mais gente (o filme é mais conhecido e passou há pouco tempo na RTP, embora não em scope, sem o qual só por memória funciona).

Os dois filmes - para lá da marca específica de Minnelli, o homem que, como a varinha de condão, transformou em ouro tudo quanto tocou - têm em comum uma aproximável concepção do tempo e uma aproximável variação dos desígnios do destino nos limites daquele. Em The Clock (de que aqui me despeço), Judy e Bob corriam contra o título e a favor do título. A lentidão dos movimentos do ponteiro só era inevitável porque o ritmo da paixão deles o era também. Em Some Came Running, só se corre aparentemente no final, esse final alucinante, das múltiplas montagens paralelas, com Dean Martin e o assassino (Steven Peck) a tentarem ser mais velozes que os fados na busca de Shirley MacLaine e Frank Sinatra, recém-casados e engolidos pela multidão que comemora, na feira de todos os carrosséis, o centenário da cidade de província (Parkman, Indiana) onde a acção decorre. Só nessa altura descobrimos que o tempo correu todo o tempo, e que todos o perderam. A sensação que temos, quando relembramos o filme, é que houve tempo para tudo e subitamente não há tempo para nada.

Houve tempo para conhecermos a família de Dave (Frank Sinatra), com o irmão pusilânime, a cunhada sinistra e a sobrinha bonita. Houve tempo para conhecermos a professora puritana, essa Miss French (Martha Hyer) que às vezes lembra Eva Marie Saint e que usava carrapito com medo que lhe soltassem os cabelos, como Sinatra fez naquela única e incrível tarde de amor deles. Houve tempo para muitos batoteiros e muitas pegas, paisagem acidental e essencial para dela emergirem Bama (Dean Martin), o homem que nunca tirava o chapéu, e Ginny (Shirley MacLaine), a mulher que nunca largava a mala de mão em forma de coelhinho de peluche. Houve tempo, até, para uma bela e efémera secretária, Miss Barclay (Nancy Gates), que rima com todo o resto. Só não houve tempo para o tempo do mais belo amor da mais bela mulher, Ginny-Shirley, essa que veio a correr e morreu no fim para salvar Sinatra, que lhe deitou a cabeça em cima da berrante almofada encarnada que a pedido dela lhe dera, e que era a coisa de que ela mais gostava no mundo.

“Menina e moça me levaram de casa da minha mãe. Qual fosse a causa daquela minha levada, era pequena não na soube então.” Some Came Running fez-me lembrar o começo da novela de Bernardim. Quando Shirley MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos (a câmara só nos mostrara Sinatra a dormir), depois de ler o anúncio da companhia transportadora (“and leave the driving to us”) ou de ouvir o primeiro diálogo dela com Sinatra (“You’re a nice kid. I like you. Take care.”), sinto essa sensação de “levada”, um dia, menina e moça (Shirley MacLaine que o não era, era-o mais do que outra nenhuma), de “casa da minha mãe” (sempre gostei mais dessa variante do texto do que da usual, que diz “de casa de meus pais”) por causas que os pequenos nunca sabem, que faz parte de serem pequenos nunca saberem. Há, no filme de Minnelli, uma mesma dupla acentuação da inocência, a mesma saudade por um quente mundo perdido, a mesma viagem, o mesmo lento sublinhar do tempo, do “então”. E, mais importante ainda, a mesma equivalência nas cores, no décor e nos olhos de Shirley MacLaine para as labiais de Bernardim, com o corte final (a “dental”) do “então”, no movimento sublime, duma rapidez feita tanto de reflexo, como da ausência de reflexo, com que a moça menina se atira para cima do corpo de Sinatra, apanhando em cheio nas costas a bala que a ele era destinada.

Centro deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no sentido em que também se diz “mulher perdida”, “mulher da vida”, tão belas expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que, se Dean Martin nunca tirou o chapéu, foi para tirar nesse momento, para a única mulher que a esse gesto obrigava.

Metera-se, uma noite, num autocarro e atravessara centenas de quilómetros porque Sinatra, sentimental demais quando bebia demais, a convidou a segui-lo. Passada a bebedeira, na manhã da chegada a Parkman, ele já nem se lembrava dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares que Sinatra lhe metia à mão.

E ficava, atrapalhada, atrapalhante, sem perceber de que terra era, sempre com coisas a mais nas mãos (a tal carteira, a tal almofada, as flores artificiais), sempre com os penduricalhos, sempre a pintar os olhos, a pôr rimel nas pestanas, “leaving the drive to others”.

E há as duas sequências mais inesquecíveis.

A primeira é quando decide ir à escola, conhecer a professora por quem Sinatra se apaixonara, para “tirar a limpo” aquela história. A professora ensina literatura e explica aos alunos que as bebedeiras de Poe, as drogas de Quincey, a “neurótica promiscuidade” de Baudelaire não os tornavam menores. “Eram grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”. A campainha toca no fim desse parvo discurso. E, enquanto os estudantes saem, aparece na frente daquela mulher que sabe tudo e não percebe nada, a mulher que não sabe nada e percebe tudo. Vem nervosíssima, timidíssima, amedrontadíssima. Se a professora gostar tanto de Sinatra quanto Sinatra gosta dela, todos os seus sonhos morrerão ali. Como ela própria diz, na profundidade de campo da aula vazia, contra um quadro onde está escrito um texto de Zola: “You don’t know how scared I was.” “I want him to have whatever he wants. Even if it means you instead of me.” Durante toda a sequência, não disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o campo-contracampo porque a professora era incapaz de olhar para além do campo dela e ver para além das aparências a “rival” que não tinha nada, “not even a reputation”.

A segunda sequência é pouco depois, quando Sinatra chega à casa, possesso de dor de corno, porque Miss French lhe dera com os pés (“I don’t like your life. I don’t like what you think. I don’t like the people you like”) na ressaca desse face a face com a “pega”.

Sinatra insulta-a a despropósito. Há uma panorâmica sobre ela e ela a dizer: “You gotta remember I’m human. I’ve feelings”. Depois, Sinatra arrepende-se. Mas tudo quanto tem para dar àquela mulher que antes tinha dito que era capaz de fazer tudo, tudo quanto ele lhe pedisse (e veio a fazer mais) é perguntar-lhe: “Do you clean that place for me?” E o que a frase podia ter de horrível ou frustrante é salvo pelo sorriso de Shirley e aquele “Oh! Could I?”, como se acabasse de receber o mais belo dos presentes.

Corte e Sinatra lê-lhe o romance com que acabara de ganhar um prémio. Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. E, quando ele a acusa de não ter percebido uma palavra do que ouvira, ela responde com esta tirada prodigiosa: “No, I don’t. But that don’t means I don’t like the story. I don’t understand you, neither, but that don’t means I don’t like you. I love you, but I don’t understand you. What’s the matter?” Vira a cara para o lado, amuada. Há uma “pausa côncava de assombro” preenchida apenas pela espantosa partitura de Elmer Bernstein. A câmera fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumulara nele (tempo, décor, cidades, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. Segue-se a incredulidade de Shirley (“Não deves brincar com essas coisas”) e depois o abraço, abraço incrível de entrega e doação. Há o degrau e a coda volta ao início: “You gotta remember, I’m human.”

Nestas duas sequências como na sequência final do crime, como em todo o filme - Minnelli atinge o apogeu da sua arte. Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros. Como diria Shirley MacLaine: “Thanks, awfully, so awfully much.” »

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Apresentação de The Tarnished Angels, por Mário Jorge Torres

The Tarnished Angels (1957) de Douglas Sirk



por José Oliveira

O filme que hoje vamos ver é uma das obras-limite de Douglas Sirk, o grande cineasta Alemão que antes de se refugiar na América para poder continuar a trabalhar se chamou Detlef Sierck e se negou a pactuar com o regime nazi de Hitler. E é completamente suicidária porque indefinível de uma temperatura inaudita, pois trocou as cores garridas e o género melodramático que o cineasta reinventou nos anos precedentes por laivos de ficção cientifica – influência do produtor Albert Zugsmith que anteriormente concebeu desde maquinações com extraterrestres até pornografia – e de romantismo sem almofada nem travões que de chicana em chicana finta a bebida e a perdição da lost generation de Faulkner e dos seus comparsas chocando com a nostalgia em Nebraska de uma escritora tão importante para a Americana como Willa Cather e o seu My Ántonia

Como no livro em que se baseou Sirk e o argumentista George Zuckerman tudo se passa em Nova Orleães e no epicentro embrulhado de um carnaval que tudo devora e espelha em soturnas relações com os protagonistas, as suas ambições e escolhas. As máscaras, os mascarados e os monstros deste corropio incestuoso – ou os extraterrestres - vão perfurar e esconder-se em cada cena, revelando a um mesmo tempo a condição além-humana de cada qual e expondo a sua participação no baile e no susto, para se perceber que não é impunemente que se ousa a coragem de seguir as motivações e o clamor do sangue. Como disse Tag Gallagher, o ciclópico crítico americano : "No crime como no amor só existem os que fazem e os que não se atrevem." O que é catártico é que neste delírio onde o amor e a loucura são finalmente irmãos em risco e sagrados na certeza individual é que a personagem de Rock Hudson entrevê a verdade precisamente no meio do falso e dos disfarces mais desgarrados, carnívoros e pulsantes. "O Que é a verdade?", perguntou há muito tempo Pilatos a Jesus, para uma conclusão talvez suspensa até hoje. Rock Hudson, e quem souber ver e sentir sem condicionantes desleais, vai perceber a verdade, ou seja, da fonte inicial até ao abismo ou às bocas da morte, todos vão desfilar indecifrável e inaceitavelmente nus – é o cerne do livro e do filme. 

Pylon é uma das grandes obras de William Faulkner, tecida numa aparente linearidade que é a cada instante estilhaçada precisamente pelo presente atropelado, pelo "agora" que consome cada um daqueles seres sem passado nem horizonte. Tal como uma tecedeira que sutura tecido injuntável e sabe a causa impronunciável de tal, quem o trajou e o que nele fez, como rasgou e o que secou. Passados e horizontes em corpo presente e exposto, sendo a memória uma memória do presente, transformando-se os longínquos mosaicos e o compósito Faulknariano em parede ou ecrã reflector concentracionário, cegante. A epifania do jornalista que se espanta ao descobrir mentes e carnes sobre as quais não é possível resumir como manda a regra da profissão só pode ser aguentada no álcool, esse purgatório dos muito honestos. Mentes e carnes frias, mecânicas, conservadas e a trabalhar nos óleos e pelos combustíveis que nos permitiram ganhar asas, entrever o derradeiro abismo e a imortalidade. Veias de aço, ossos como inquebráveis tubos, sentimentos objectivos, electricidade e instinto. Órbitas avessas que olham para dentro do próprio crânio. A fome e o sexo e a dor em circuito programado. Sem união para lá da união desconhecida permitida à tecnologia. Vida e morte fundidas e carentes de importância como no sono profundo e sem despertador. É disto que o jornalista cadavérico que se parece com um espantalho dá de cabeça quando pensava que de tudo já tinha visto e rasurado. A corrida dele com os limites e a justiça, a poesia e o ininteligível, vai arder e enlaçar no fogo dos pilotos, dos pára-quedistas, das esposas petrificadas e desses mecânicos que só parecem realmente existir nos breves segundos onde no céu procuram a meta como quem por Deus grita. Não é curiosidade mórbida ou antropologia oportunista o que faz mover o homem das letras em direcção aos super-homens suicidas, antes algo da ordem, visceralmente, do puramente humano, isto é, tocar uma sensibilidade que de tão aflorada e antiga corre o risco de ser percebida e cristalizada em altares patológicos. Todos eles, e o jornalista alcançando-os, são especiais pois não se prenderam ao suposto e no seu tudo ou nada clamam o absoluto, nada menos, bilhete para os nossos sanatórios oficiosos. A prosa de Faulkner alinha-se para rebentar numa violência de realismo inacreditável que assim é pela nossa imemorial tendência de amarrar o fácil e o óbvio, e pinta-se num gótico que é tão lancinante e complexo e inaugural como escravaturas e bíblias. A peça final para o jornal ou para nada que nos é dada a cheirar, a descarnada e a polida, vinda do céu e do lixo e do whiskey, manda o cosmos putrefacto da perpetuação do dia-a-dia manipulado para o inferno engomado. “A integridade de uma pessoa encontrar-se-á sempre naquilo que não consegue fazer? Penso que, em geral, sim, porque o livre-arbítrio não significa um só arbítrio, mas vários, que se confrontam no mesmo indivíduo. A liberdade não pode ser concebida simples. É um mistério, um mistério que a um romance, mesmo um romance cómico, apenas pode ser pedido que aprofunde” , isto é o que Flannery O'Connor pergunta e responde no prefácio da segunda edição do seu Wise Blood, e que se torna verdade simples e geométrica da tragédia de Pylon

The Tarnished Angels, visão e sangue fervente de Douglas Sirk, tem dentro uma das mais belas personagens de todo o cinema e de toda a vida, Burke Devlin, o jornalista, aqui nada cadavérico e tão lúcido como o de Faulkner, comoventíssimo e estóico Rock Hudson familiar de todos os dissidentes com causa, cheio do som e da fúria e da raiva e coração dos que já não admitem a lenta e porca burocracia do adormecimento imposto, alguém que não hipoteca a casa para agarrar sucessos mas que simplesmente a oferece a quem precisa, desligado da posse e da carreira. Perdido que se acha nessa perdição fatal, inscrita na sua têmpera, patrão ou alma de todos os seres abandonados e sem lugar, numa reza cósmica e rumorejante, sem lei nem aprovação política. Talvez a pele e os órgãos desgalgados e estripados de Faulkner se tinjam aqui de romantismo secreto, velado em amor puro para lá dos altos, vindo num vento que urge amarrar antes que se esfume para todo o sempre. Como é que um herói de guerra intempestivo, uma mulher estonteante como os anjos da terra, um miúdo atormentado e um mecânico fiel demais à desregra se contentam com circos, feiras e humilhações? Parece ser tudo isto e o segredo deles o que começa por interessar Burke. Assim, suspende a bebedeira crónica para tentar, sempre tentar e talvez nunca alcançar, ver o brilho inaudito que só na mácula reflecte e se esconde revelado. O grande carnaval que no livro se aproxima do deboche, em Sirk, e apesar da horrenda troca sugerida para o piloto conseguir a nova máquina, gira e rói em terrenos e sussurros da solidão, unindo bem e mal e tudo na liberdade e no desejo sem margem para dúvidas do estômago queimante. Burke tem com a pára-quedista aparecida Dorothy Malone igualmente a mais bela das paixões, concretizando-se nos olhares e nos dentros da alma, até ao fundo - irmandade e Mulher, ídolo e carnação. O rodopio e a entrega de Burke, o genial discurso sobre a fascinação do homem pela superação e pelos sonhos superiores, máquina de precisões e comoções, as mãos vazias, a música da infância - pela câmara de Sirk, o espaço agiganta-se para o mínimo e o íntimo sobressaírem, infindável scope para invisíveis fluidos e calores, onde no mundo pós-apocalipse são necessárias novas e letais emoções, mundo assim que concorre para todos os tempos em que a veracidade é lei, utopia suprema a agarrar como o tal vento. R. W. Fassbinder amou o filme e falou a propósito do medo que todos têm, esse desamparo, fragilidade, mesmo sacrifício. Medo que não nasce das dúvidas do modo de vida mas de certeza da possibilidade (sempre a maquinar) de se inserirem na intolerável máquina outra e de travões bem menos afiados e rasteiros, a máquina da realidadezinha fabricada, cobarde e mascarada que marca e engaveta por cartão de identidade e demais papelada como se marca o pobre gado. “Tomorrow? I'll probably be drunk” é o que o tão belo de olhos raiados das lágrimas da verdade esfaqueia a quem lhe manda fazer amanhã o que ele pode fazer hoje. Se só existisse o ontem não havia aflições, disse Faulkner certo dia. E é aqui a medida de todas as coisas. Como a ferida a respirar. 

- Porque devem eles matar? Porque é necessário matar? Cyrus estava profundamente comovido e falou como nunca tinha falado. - Não sei. Estudei as coisas e talvez saiba o que elas são, mas estou muito longe de saber porque são. E não deves esperar encontrar pessoas que te compreendam o que fazem. Tantos actos são instintivos: a abelha fabrica o mel e a raposa caminha no riacho para enganar os cães. A raposa não sabe porque age desse modo, e qual a abelha que se lembra do inverno e prevê que ele há de voltar?” 

A Leste do Paraíso, John Steinbeck 

Burke Devlin - que Mário Jorge Torres comparou a um comentador teatral, reenviando às tragédias gregas – compreendeu, fora dos limites e dos estratagemas terrestres, essas pessoas como as outras que encontrou em circunstâncias que só são extraordinárias pois a coragem iniciática de novos seres na terra já há muito se foi. Não os tivesse ele encontrado e a vida deles continuaria, morrendo e ressuscitando como as flores selvagens, mas porque ele os achou quando nada esperava e lhes contou a sua história, lhes fixou o fogo e a beleza da ousadia simples, a raça mais uma vez evoluiu no aparente retrocesso, nessa ode de violência doce que é o acreditar de cada um por si. Sendo assim possível a comunidade justa e, resolutamente, livre e unida. Tudo a ver com The Fountainhead, o filme de King Vidor ou o livro de Ayn Rand com que estivemos há uns meses neste cineclube. Das sublimes dádivas gratuitas.