quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Zabriskie Point (1970) de Michelangelo Antonioni



por João Palhares

Como Glauber Rocha (efusivo, pelas ruas de Lisboa, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974, a arder de fervor revolucionário depois de ter passado ou estar prestes a passar pelo Congo, por Cuba, pelo Peru, por Roma, por Paris e pelo Chile de Salvador Allende, e fazendo perguntas aos populares e aos militares para o filme realizado pelo Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, As Armas e o Povo, com enérgicos “Acriditá ná révulução?”, “Há quanto tempo você lútá?”, “O sénhô sofreu com á ditadura?”, “O quê achá dá situação atuau?” “Porque é qui não foram ao primeiro di Maio, porqui não estão ná Práça?”) ou Nicholas Ray (chegado à América no final dos anos sessenta, em plena ascensão de vários movimentos revolucionários como os Black Panthers – Black Panther Party - ou os Yippies - Youth International Party -, depois de assistir às grandes manifestações estudantis na Europa, e interessando-se pelo julgamento dos “sete de Chicago”, jovens em que Ray reconheceu certamente a juventude traída e incompreendida de They Live by Night, Knock on Any Door e Rebel Without a Cause, junta-se a eles e vai também filmar as ruas: “Não me importava que levasse cinco anos, é um filme que eu ia rodar. Ia montá-lo e tentar dizer esta única coisa: que não há nada tão importante como uma ideia cuja altura chegou. Vou tentar fazer com que a espontaneidade dos últimos oito anos ganhe vida.”), Michelangelo Antonioni interessou-se muito pelas revoltas generalizadas dos anos sessenta e setenta. 

O realizador italiano tinha um filme completamente diferente em mente durante meados dos anos sessenta: “Tinha criado uma história que girava à volta da figura de um poeta imaginário que vivia nos Estados Unidos e a visão dele, as atitudes dele, eram muito mais individuais – diria quase mais abstractas – que as das personagens do filme que acabei por rodar. Era uma história substancialmente diferente, mais introspectiva, talvez mais sugestiva. E então, enquanto estive em Chicago no verão de 1968, testemunhei um incidente que contribuiu para mudar todo o rumo do filme. Vi a Guarda Nacional a investir contra alguns jovens que se estavam a manifestar em frente ao edifício onde se estava a realizar a Convenção Democrática. (…) Nessa ocasião, entrei em contacto com um grupo de pessoas de ambientes muito diferentes do meu, pessoas que tinham ido lá maioritariamente para protestar contra as políticas dos Democratas (…); havia vários jovens. Portanto juntámo-nos e re-escrevemos o argumento todo (…).” Em entrevista a Alberto Moravia, Antonioni disse também que “a minha relação com a América reflecte a divisão dos Americanos em categorias muito distintas: de um lado estão dois terços da população, gente irritante e insuportável; o outro terço são pessoas maravilhosas. O primeiro grupo é a classe média; o segundo é a juventude dos dias de hoje. Há uma indiferença absoluta em relação ao dinheiro entre os jovens, há pureza, desinteresse, revolta e mudança. À classe média, por outro lado, eu chamaria uma classe social de gente louca porque, no fim de contas, apesar de toda a sua alienação, são incorruptíveis e bem intencionados. Percebe, a classe média europeia é corrupta e portanto não é louca.” 

Mas como se pode adivinhar, o interesse destes cineastas por estes acontecimentos não é político. Ou, pelo menos, não apenas político. Abbie Hoffman, um dos “sete de Chicago” e co-fundador do Youth International Party, durante os meses em que Nicholas Ray esteve ao seu lado, costumava dizer muito (segundo Susan Ray) “What are politics? Fuck politics! Politics is living!” E é Mark Frechette - um jovem membro da comunidade de Mel Lyman (comunidade para onde reverteu o dinheiro que Frechette recebeu por entrar no filme) que foi escolhido entre milhares de candidatos num processo que durou um ano (foi encontrado em Boston pela assistente de Antonioni, Sally Dennison) –, que diz no início do filme que “I'm willing to die... but not of boredom.” Antonioni: “Se eu quisesse fazer um filme sobre dissidência estudantil, tinha continuado pela direcção que tomei na abertura com a sequência do encontro de estudantes. Se alguma vez chegar o dia em que os jovens radicais Americanos concretizem as suas esperanças de mudar a estrutura da sociedade, vão chegar desse tipo de ambientes e ter caras como aquelas. Mas eu deixei-os lá, e segui o meu protagonista num itinerário completamente diferente.” 

E a direcção e o itinerário tomados, em Antonioni, sabem-se ir já rumo ao mistério e ao desconhecido, despojando-se gradualmente do que é reconhecível até se acabar sem pontos de referência e se ter forçosamente que começar tudo de novo e de uma maneira totalmente diferente. Forçar até ao limite as barreiras do tangível e acabar, como em L'Eclisse, Blowup e The Passenger, às portas da abstracção pura, fazendo perguntas até deixar de haver respostas. Perdendo-se nas paisagens americanas tal como as suas duas personagens, Antonioni não esconde o seu assombro tanto diante de grandes e coloridos painéis publicitários como diante do imenso deserto que associa à vida e à fecundidade e não à morte, deixando-se levar pelas imensas contradições e paradoxos que tornam a América num dos países mais fascinantes e ricos em sensações do mundo. Vanishing Point, o belo filme de Richard C. Sarafian do ano seguinte (1971), deve o seu nome ao ponto imaginário na perspectiva em que se intersecta todo o espectro visível (que os tradutores portugueses não perceberam, dando-lhe o título de “Corrida Contra o Destino”) e junto a Two-Lane Blacktop de Monte Hellman ou a The Conversation de Francis Ford Coppola mostra o quão importante foi Antonioni para esta década de tantas questões sem resposta e de aventuras em que o asfalto se cruza com o horizonte e a mente com o insondável. 

Bem-vindos aos anos setenta.

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